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Xindau e Xissena

Xindau chegou, devagar, silencioso, como o ar antes de ser vento. Xissena, num gesto feminino, puxou a capulana de pouca cor e cobriu os joelhos. Estava sentada, entre o sol pardo e o chão resignado, sobre uma esteira de palha antiga, único bem que pôde resgatar da fúria recente do vento, das águas e dos espíritos, com os filhos ao colo, impotente às chapas paredes da sua casa a serem sentenciadas pela tempestade. 

O chão gretado estalou. Eram as lascas quebradiças de terra a cederem às pisadas de Xindau. Xissena percebeu a presença mas não olhou para trás. Deixou-se estar na esteira, o olhar no chão, no entrelaçado da palha antiga, na mosca sobre o prato metálico vazio, na sombra fria do homem. 

Os filhos cederam ao olhar da mãe e afastaram-se como as águas deveriam ter recuado, no dia em que, com as crias e a esteira ao colo, ela ancorou-se num galho a gritar rezas insultuosas aos deuses.
Levantou-se, deixou o cansaço no chão. “Uma mulher não se cansa, minha filha”, ecoou o conselho da mãe. O joelho estalou com o esforço guindaste de erguer o corpo, a coluna chiou quando se baixou para recolher a esteira. Deslizou para um espaço entre estacas firmes, que antes das cheias fora o interior da casa. Estendeu a esteira sobre as chapas para a reconstrução. Deitou-se, sem olhar para o homem, não na posição de se dar, mas na de se deixar levar.

Ouviu-se o som do desabotoar urgente, da fivela do cinto, dos atacadores e da ganga das calças a friccionarem as pernas até aos joelhos. Xindau deitou-se sobre Xissena. Ela não sentiu o peso do homem, sentiu arrepios quando sombra fria se aproximou, com a lentidão voluptuosa das nuvens escuras que, naquele dia, trouxeram o vento que trouxe a chuva que veio com as águas do mar que molharam tudo.  O coração saltou. Apetecia-lhe levar a esteira e as crianças ao colo e fugir. Xissena fechou os olhos e o rosto.

Aos poucos inundada de suor como as águas inesperadas que vieram com a tempestade. Os dedos sulcavam desesperadamente o chão da esteira. O corpo balançava. As chapas de zinco sob a esteira chiavam: txim!, txim! Sob a tempestade Xissena corria, nadava, gritava, engasgava o grito: socorro!, mas não chorava, não fossem as lágrimas aumentar as águas muitas da inundação.

Quando o vento, a chuva, o mar e o rio, amainaram a fúria, as chapas deram o último demorado gemido: txuiiiim! Xindau desfaleceu, ofegante, sobre o ombro travesseiro de Xissena. 

Xindau abotoou as roupas que se colavam ao corpo húmido. Vestiu o colete da instituição que cuida das vítimas. Empurrou com o pé, para perto do corpo deitado de Xissena, os sacos trazidos há pouco. Ela reconheceu o óleo, a farinha, o sabão, outras embalagens de coisas urgentes e a escrita: “Gestão de Calamidades”. Puxou a capulana, cobriu-se, ficou deitada a ver a sombra de Xindau, abotoando-se, a afastar-se como as águas e o vento pós estrago recolheram para o rio… para mar. 

Xissena cobriu-se com a capulana. Xindau foi-se embora, devagar, silencioso, como o ar depois de ser vento.    

 

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