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Xilogravura e sensualidade, provérbios e surrealismo: o universo visual de Hugo Mendes

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Quando Hugo Mendes está a desenhar, sente-se como se estivesse numa terapia. Para o artista visual, igualmente, desenhar é uma forma de representar o mundo a partir da sua perspectiva. Nesta entrevista, o autor de Sunday nood conduz-nos ao seu processo criativo; refere-se à importância da xilogravura e ao que gera sensualidade feminina na sua obra; explica como os provérbios africanos abriram-lhe portas ao nível internacional e ainda menciona os movimentos artísticos essências para a sua formação artística. Lá mais para o fim, Mendes ainda lamenta o facto dos artistas moçambicanos trabalharem separados sem necessidade.

 

A sua primeira exposição individual foi o Sunday nood. Alguns autores não se reconhecem na primeira obra, passados muitos anos. É ou não o seu caso?

A minha primeira exposição foi uma experiência muito boa. Entretanto, na altura, tive alguns receios que, agora, passado algum tempo, já estão ultrapassados. Normalmente, quando fazemos uma exposição colectiva, há vários suportes que podemos ter e pessoas que nos podem apoiar ou conduzir. Quando estamos numa individual, as coisas ficam todas na nossa conta. Às vezes, isso é um grande desafio.

 

O que é mais apaixonante para si, entre a exposição colectiva e a individual?

Sei lá. Eu acredito que quando há muitos cozinheiros na cozinha acaba havendo um bocadinho de confusão. Quando se tem a oportunidade de se expressar num tema particular, podemos nos abrir de uma outra forma. Na individual há mais liberdade para o autor criar, porque é mais pessoal. Agora, em alguns casos, a exposição colectiva pode dar mais visibilidade, quando ainda não se é um artista estabelecido. Eu acho que a colectiva acaba sendo uma boa escola, que nos introduz no meio, com pessoas que nos moldam e dão-nos direcção. Isso nos garante uma certa autoconfiança.

 

Que técnicas inaugurou em Sunday nood que ainda fazem parte do seu interesse criativo?

Eu sou muito interessado na cultura de entalhe de madeira moçambicana. Se formos a ver, cá no Sul temos os psikhelekedana e no Norte temos a arte makonde, desde as máscaras às esculturas. Eu quis trabalhar numa técnica que remetesse a esse processo, daí que pensei em utilizar a xilogravura. À primeira exposição não levei essa técnica, mas preocupei-me em usar o preto e o branco para nos lembrar da xilogravura. Nessa exposição usei a serigrafia, e é como se eu quisesse tornar algo artesanal num processo mais artístico.

 

Além da xilogravura e da serigrafia, faz parte do seu interesse criativo a manipulação digital. Como é mesclar todas essas técnicas numa única obra?

Tenho formação em designer e tenho alguns interesses pessoais na arte japonesa, por exemplo – os asiáticos  usam a técnica de xilogravura há muito tempo. Então, a mim interessou perceber como é que poderia trabalhar com o computador, tendo domínio numa técnica manual, podendo manipular as imagens como se isso fosse algo novo, diferente e com expressão que teria sendo feito com madeira.

 

O ambiente, a mulher e o mar são tópicos recorrentes na sua obra. O que cada um destes elementos significa para si?

Gosto de reaproveitar os materiais, como ferro velho, zinco e papelão. Penso que todos nós devemos ter essa preocupação de reaproveitar e recriar o ambiente, ao invés de apenas fazer lixo e destruir.

 

Na inauguração da exposição colectiva Ligados pelo Índico, com artistas das Ilhas Reunião, no Franco, disse que se preocupava em estabelecer uma conexão através do oceano. Como é que acha que isso se pode concretizar num contexto em que estamos próximos, mas estranhamente distantes?

Acredito que o que nos une é a cultura. Historicamente, foram levados escravos daqui para as Ilhas Reunião. Até hoje, a cultura moçambicana mantém-se presente lá. Claro, a cultura não é estática. Por isso, há mutações daquele lado e deste. Penso que esse pode ser a nossa partida rumo à conexão pelo Índico. A partir das nossas diferenças, podemos tentar encontrar o nosso ponto comum.

 

Pensar o Índico é também pensar nesse ponto comum?

Sim. E o que é curioso é que para nós, moçambicanos, o mar é um lugar de cura, com vários mitos. Por exemplo, dos nyamussoros. Nas Ilhas Reunião, por causa do tráfico de escravos, o mar é um lugar perigoso, para onde não se deve ir. Penso que a partir daí já se pode estabelecer um diálogo. Nós temos pescadores que trazem peixes do mar ou os ziones que se baptizam lá. Do outro lado, o mar é uma espécie de tabu.

 

O que mais lhe entusiasma nesta ligação com o mar?

É esta ligação mitológica, essa memória cultural do mar como um sítio fantástico, essa história de pescadores que partem e, depois, não voltam; a história dos espíritos que nos dão dádivas, com curandeiros que, ao fazerem diagnósticos, recorrem às conchas…

 

Como é que, no seu caso, sendo o mar um espaço de partidas e de regresso, se processa em termos de representação artística?

Para mim, o mar representa-se como ponte.

 

E a sensualidade da mulher?

Acho que não tenho como separar esse lado animalesco do meu lado intelectual ou criativo. Eu sou isso tudo e mais algumas coisas. Uma das coisas que eu gosto de fazer na minha arte é trabalhar com temas de representatividade. E se é sobre representatividade que quero falar, falo sobre as coisas que gostaria de ver, mas que não estão disponíveis para mim. Então, que seja eu a criar as coisas que gostaria de ver.

 

Há uma “influência” poética na representação sensual da mulher, no seu caso?

Sim, há. E, a certo momento, tive de me questionar sobre por que fazia aquele tipo de desenhos. Percebi que sentia falta de algo, que não estava presente. Isso levantou-me questões sobre musas, como se a minha vida fosse uma telenovela.

 

Significado e Mensagem. Estes dois termos são essenciais para si?

De certa forma, sim. Mas, às vezes, posso começar do fim para o início. Às vezes temos um conceito que nos leva a resultado final com um leque de obras.

 

Ao representar a realidade procura ser leal ou, pelo contrário, o interesse é fugir disso?

Qualquer tipo de representação da realidade, por um artista, é sempre subjectiva. É como se representasse a realidade a partir dos meus olhos. Quando estou a observar algo, já estou a influenciar essa acção que estou a observar. Eu gosto de fazer algo que é fiel à minha realidade, mas também gosto de explorar o subconsciente, esse lado obscuro da própria natureza.

 

Mesmo a propósito do obscuro, na sua exposição (Des)construções procurou desvendar realidades ocultas da cidade de Maputo. Quais são?

Sou uma pessoa que gosta de andar pela cidade, ler sobre as cidades e saber quais são os edifícios da cidade. Interesso-me por essas questões que muitos dão por garantidas. Por exemplo, quando olhamos para a cidade de Maputo, conseguimos ver várias grades nos prédios. Se prestarmos atenção, vamos notar que todas as grades são diferentes e, além de segurança, desempenham uma função estética da própria casa. Falando particularmente de(Des)construções,que teve curadoria de João Roxo, quis explorar mais o lado boémio da cidade, a parte do porto, conhecida como a zona quente da cidade. Isso exigiu de mim mergulhar nesse universo. Esse é o lado escondido da cidade.

 

O que a representação da realidade lhe dá a preto e branco que não seria possível se usasse outras cores?

Uma das vantagens de fazer algo a preto e branco é o minimalismo – acredito que sou uma pessoa minimalista. Há vezes em que só precisamos ter duas cores, que o cérebro preenche tudo o resto. É esse lado meio psicodélico e, ao mesmo tempo, meio minimalista que gosto de explorar.

 

Além de Maputo, já expôs em Inglaterra…

No início da minha carreira, um dos projectos que me deu visibilidade internacional foi a representação dos provérbios africanos. A partir daí, pude estar em certos radares de plataformas internacionais. Foi assim que surgiu a oportunidade de expor em Londres, numa iniciativa virada para talentos africanos que vivem na diáspora, embora eu não viva na diáspora. Além de Inglaterra, já expus na África do Sul e em Angola. Agora, gostaria de ir a Nigéria e explorar a parte islâmica em países como Marrocos, Egipto e Argélia.

 

Essa será uma maneira de reivindicar a “influência” islâmica em Moçambique?

De certa forma, sim. Quando as pessoas por vezes me pedem para descrever o que é viver em Maputo, eu tenho dito que esta é como se fosse uma panela de várias culturas. Quando olhamos para a arquitectura, por exemplo, sentimos a presença portuguesa, oriental e do nosso local.

 

Que autores e movimentos artísticos foram determinantes na sua formação?

Gosto muito do cubismo e do surrealismo. Quanto aos autores, Picasso, Salvador Dali, Katsuya Terada (Japão), Mike Giant (EUA) e Lady Skollie (África do Sul) me dizem muito. Eu acho-lhes super interessantes e originais na sua representação.

 

Ousadia é uma das coisas que lhe caracteriza?

Sim. Como fazer isto sem ser? Acho que é por aí.

 

Como é que a crença no que vai criar apresenta-se fundamental para si?

Tudo o que eu faço, é a pensar em mim. Quando estou a desenhar, é como se estivesse numa terapia ou numa meditação. No momento em que desenho apenas me concentro nas linhas e não no gás que não existe em casa.

 

O erro é algo que o preocupa?

Ultimamente, talvez mais do que antes. Há dias estava a ver um documentário que dizia que a vida do artista é como se fosse algo exponencial, em que vai crescendo até atingir a crista da onda. Depois, começa a decrescer. Com a experiência, vamos tendo uma espécie de sensibilidade e vamos pensando que só devemos fazer coisas boas, mas não é assim. Uma vez li na biografia de Van Gogh que quando esses sentimentos de dúvida aparecem, o que temos de fazer é continuar a desenhar, que eventualmente vão se calar.

 

É mais fácil fazer um primeiro trabalho do que um quinto, por exemplo?

É mais difícil fazer um segundo trabalho do que o primeiro. O primeiro é como se tivéssemos tido a vida inteira para preparar. Mas o segundo, numa cultura em que queremos tudo para ontem, fica mais difícil. Isso vale para todas as artes.

 

Trabalha ou trabalharia à vontade com encomendas?

Essa é uma outra questão que ando a explorar. Às vezes, é difícil dizer não. Somos um país do terceiro mundo, não temos muitos meios e nem muitas posses. Quando aparece alguma oportunidade, o que queremos é segurá-la com as duas mãos. O problema é que quando chega a altura de apresentar o trabalho vem aquela dúvida… ficamos sem saber se queremos nos deixar associar à encomenda porque não é algo em que acreditamos. Trabalhos por encomenda é algo que ainda estou a explorar. Houve uma fase em que eu dizia sim a toda gente, mas agora estou bastante selectivo.

 

O que dizer das artes visuais em Moçambique?

Nós ainda estamos num patamar um bocadinho embrionário, posso dizer assim. No estrangeiro, talvez, as pessoas sabem mais sobre literatura moçambicana do que sobre artes visuais moçambicanas. Acho que Malangatana, Naguib, Gonçalo Mabunda e Mário Macilau são alguns artistas que já conseguiram deixar um marco no estrangeiro. Outra coisa, acho que nós, os artistas, estamos um bocadinho separados sem necessidade.

 

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro Resgate, da Mahla Filmes; O tempo dos leopardos, de Zdravko Velimirovi?; Ualalapi, de Ungulani Ba Ka Khosa; e a obra de Ondjaki.

 

 

Perfil

Hugo Mendes nasceu e cresceu em Maputo. O artista visual inspira-se no artesanato e na escultura em madeira. Através do seu trabalho, tenta representar os aspectos do quotidiano, referindo-se à história colectiva dos moçambicanos, aos seus sonhos, e procurando explorar elementos mais íntimos, relacionados com o lado mais obscuro do seu próprio imaginário. É licenciado em Design, pelo Instituto Superior de Artes e Cultura (ISArC).

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