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Wiriamu – Tributo aos Padres de Burgos

(Para Miguel Buendia, meu amigo, meu irmão)

 

O dia 16 de Dezembro de 1972 calhou num sábado, como acontece este ano. O massacre de Wiriamu poderia, naquele dia ignóbil, ter sido apenas mais uma página negra esquecida ou ignorada para sempre, como outras tantas que permanecem no sepulcro do desconhecimento e da ignomínia. A coragem dos Padres de Burgos que o denunciaram trouxe-o para a ribalta internacional, quando um jornal britânico concedeu capa e deu destaque a esta história, no mesmo momento em que Marcelo Caetano, que chefiava então o regime português, estava de visita a Grã-Bretanha. Escusado será dizer que Portugal negou e tentou desmentir aquele facto irrefutável, tendo inclusive promovido uma campanha para desacreditar Adrian Hastings, antigo missionário em África, que relatou o massacre, na edição de 10 de Julho de 1973 do The London Times. Peter Pringle, enviado a Moçambique pelo Sunday Times para investigar o massacre, produziu um corajoso e decisivo testemunho. Mustafah Dhada, historiador nascido no Buzi, em Moçambique, e professor universitário na Califórnia, publicou um estudo intitulado O Massacre Português de Wiriamu, no qual faz a anatomia deste acontecimento trágico. Pringle assina o prefácio da edição inglesa, que foi incluído na sua tradução em língua portuguesa.

 

Peter Pringle: “Na manhã de 16 de Dezembro de 1972, tropas coloniais portuguesas reuniram os habitantes de Wiriamu, incluindo mulheres e crianças, no largo principal da povoação, e ordenaram-lhes que batessem palmas, que cantassem para se despedirem da vida. Em seguida, os soldados abriram fogo. Os que escaparam às balas foram mortos por granadas. Incitados pelo brado “Matem-nos a todos”, os militares levaram o morticínio a quatro povoações vizinhas ao longo do Rio Zambeze, onde o território de Moçambique se estende para o Zimbabwe (Rodésia, à data dos acontecimentos), a Zâmbia e o Malawi – uma região designada pelos missionários católicos como “a terra esquecida por Deus”. No final do dia, perto de 400 aldeãos tinham sido mortos, e os seus corpos eram lentamente consumidos pelas chamas em piras funerárias ateadas pelos soldados com o capim que cobria as palhotas.”

 

Usaram os mais hediondos argumentos: conspiração internacional, Wiriamu não existia, invenção dos padres, ficção. Marcelo Caetano estava de visita a Londres para a comemoração dos 600 anos da aliança Luso-Britânica. Para além dos jornais e das notícias sobre a brutalidade do regime que representava, tinha manifestações nas ruas de Londres. Os padres não esmoreceram. Hastings foi até às Nações Unidas. Quando fez o seu testemunho e a sua denúncia, tinha Marcelino dos Santos na assistência. Vicente Berenguer e Júlio Moure apresentam-se, em Londres, nas instalações do London Times, a 6 de Agosto de 1973, e afirmam que conhecem a localização exacta de Wiriamu. A história era verdadeira. Eles não só conheciam o terreno, como as vítimas. Berenguer tinha cruzado com os fugitivos e sobreviventes perto de Wiriamu. Mais do que isso, ele e os seus colegas tinham participado no estabelecimento do relatório que tinha fornecido os elementos à denúncia promovida por Hastings. Há meses, numa entrevista de despedida, 50 anos depois de Moçambique, Vicente Berenguer falou também de Wiriamu.

 

Vicente Berenguer: “Após o massacre, eu, juntamente com o padre Ferrão e o padre Sangalo, fizemos um relatório que foi publicado pelo padre Hastings em Inglaterra. Isto criou uma polémica, mas Marcelo Caetano, mesmo assim, desmentiu os factos. (…) Viajámos para vários países europeus para expor as atrocidades cometidas pelo regime colonial contra o povo moçambicano”.

 

Conheci Vicente Berenguer através de Miguel Buendia, outro protagonista desta história destemida. Há mais de vinte anos, perguntei ao meu amigo Miguel algo sobre esta história e ele foi lacónico e sóbrio, sublinhando o papel de Adrian Hastings. Próprio de um homem admirável, de um homem probo, de um protagonista que não procura a ribalta. No entanto, foi Miguel Buendia, vim a saber mais tarde, que, correndo o risco de ser preso – estavam presos uma data de missionários – levou os documentos clandestinamente de Moçambique para Espanha, quando recebeu, ele e o padre Moure, ordens de expulsão, em Fevereiro de 1973, do território moçambicano. O padre José Camba, que fizera 200 km de Chimoio, a pretexto de se despedir dele, ao entregar-lhe  o subscrito disse-lhe: “Miguel, leva isto para Espanha. É sobre Wiriamu.”

 

A acção dos Padres Brancos e dos Padres de Burgos era incómoda para as autoridades coloniais. Eles estavam do lado da justiça, da liberdade, da dignidade dos moçambicanos. Não o afirmavam, mas apoiavam e tinham linhas de contacto com a FRELIMO. Eram a defesa da população que sofria as atrocidades do regime colonial. Estes padres tinham chegado a Tete, que até 1962 pertencia à diocese da Beira, por via de um convite do Bispo D. Soares de Resende. A Igreja iria tornar-se num agente transformador da sociedade, sobretudo através da acção das ordens dos Padres de Burgos, na diocese de Tete. A actividade deles, sobretudo a sua formação de cidadãos, é crucial. Veja-se o testemunho deixado no jornal Notícias pelo Padre Vicente Berenguer, em Julho. Muitos deles foram presos, outros tantos interrogados e expulsos. Domingos Ferrão, o primeiro padre negro da diocese de Tete, chegou a ser preso.

 

Mustafah Dhada: “O papel da Igreja no massacre de Wiriamu não é singular, nem simples. Uma das razões que o explicam prende-se com o surgimento de uma liderança senciente disposta a deixar-se moldar pelo ardor da experiência vivida. Soares de Resende, o novo bispo, mudou o rumo da igreja de Tete. Felizmente, a escassez de sacerdotes em Portugal permitiu-lhe seleccionar padres que considerava adequados às necessidades de Tete sob o seu episcopado. Daqui resultou um grupo de sacerdotes “importados” extremamente diversificado e ecléctico, que assumiu as responsabilidades inerentes à sua missão com grande seriedade e acolheu uma vida de isolamento nos lugares mais recônditos de Tete como um trunfo para a construção de uma comunidade de crentes socialmente activa. Os Padres Brancos e os Padres de Burgos notabilizaram-se neste tipo de trabalho: os primeiros, graças à sua experiência sacerdotal em África, e os segundos, devido à sua formação e experiência com paróquias assoladas pela pobreza em Espanha franquista e pelas suas personalidades individuais.”

 

O massacre ocorreu a 16 de Dezembro de 1972. O primeiro artigo a denunciá-lo surgiu no The London Times a 10 de Julho de 1973. Segue-se-lhe um verdadeiro terramoto  sobre o regime português, incapaz de ganhar na frente de guerra – em Moçambique havia perdido na famosa campanha Nó Górdio, apesar de afirmar o contrário -, mas estava em perda em outros importantes teatros de guerra. Esta denúncia abriu uma frente diplomática importante para a causa da libertação. A 25 de Abril de 1974, menos de 1 ano após aquela denúncia de Adrian Hastings, com base no relatório e na acção dos Padres de Burgos, o regime cai em Portugal. Perdera na frente de batalha, com a luta de libertação em direcção a Manica e Sofala – foi, aliás, com base na acusação de que os wiriamu davam cobertura aos combatentes no seu avanço para Sul que perpetraram este e outros massacres – e perdera na frente diplomática, que ganhou outro impulso com esta revelação e permitiu desacreditar Caetano e Portugal.

 

Domingos Kansande, antigo aluno de Vicente Berenguer e protegido de Domingos Ferrão, o primeiro padre negro da diocese de Tete, cruzou-se com o horror quando naquele sábado ia de visita a Wiriamu onde iria reencontrar a sua amada. Kansande elaborou a primeira lista das vítimas. O relatório teria, por assim dizer, vários autores. Foi inicialmente redigido pelo padre Ferrão com ajuda de duas freiras. Os Padres de Burgos protegeram-no, dado que ele tinha sido preso e levaram adiante a missão de denúncia. Os dados mais importantes do acontecimento são conhecidos desde 1972: o número de mortos, o local, as causas – o facto de ser um corredor dos combatentes na sua marcha para a frente Manica Sofala – e aqueles que o perpetraram.

 

 

Mustafah Dhada: “O padre Catellá serviu-se engenhosamente dos dois protagonistas do conflito para servir a sua Igreja. Enrique Fernando recorreu à sua escrita para registar situações de violência em massa e, ao mesmo tempo, defender os direitos dos mais pobres. Alfonso Valverde de León não descansou enquanto não expôs o que considerava ser a verdade nua e crua. Miguel Buendia tinha a habilidade de convencer os colegas mais indecisos a tomarem uma posição apresentando os argumentos adequados com ardor e paixão. Dividido entre o medo e a fé, o padre Ferrão registou o número de mortos na sua lista de vítimas, enfrentando o risco de prisão. Entre eles estava também o padre Berenguer. Os seus truques de magia conquistaram a lealdade dos rapazes mais novos da sua paróquia. A sua calma aristocrática permitiu preservar a consistência da história apesar das tentativas dos detractores para ferir a sua veracidade. O mais excêntrico de todos talvez fosse o padre Sangalo, filho de um toureiro e um ás ao volante de uma Suzuki. O seu dom para travar amizade com representantes da autoridade em pleno território inimigo salvou a sua vida e a de uma testemunha, o que acabou por inverter o rumo da contranarrativa promovida por Portugal.”

 

Mustafah Dhada recorre em O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique 1972 (originalmente The Portuguese Massacre of Wiriyamu in Colonial Mozambique, 1964-2013) a uma aturada investigação, consulta diversas fontes, consegue relatos das vítimas e dá voz aos sobreviventes, manuseia uma profusa documentação escrita. Para além de ser uma obra importantíssima para a demanda da história deste massacre e uma denúncia documentadíssima do mesmo, este livro é um pungente hino aos que nele (no massacre) pereceram, uma denúncia exemplar do regime português, que nunca se retractou, e um hino comovente ao futuro.

 

Dos protagonistas desta história soberba conheço e sou amigo de Miguel Buendia. Através dele conheci Vicente Berenguer. Quando o vi partir, em Julho, senti que todos nós devíamos uma homenagem nacional não só a ele – Vicente Berenguer -, mas a todos os que denunciaram corajosamente o massacre de Wiriamu. A história e os relatos da saga dos moçambicanos são ainda registos lacunares. Talvez por isso se cometa, muitas vezes, a injustiça da omissão. Aqui está uma página exemplar e luminosa da nossa história recente escrita pelos Padres Brancos, pelos Padres de Burgos e pelo padre Adrian Hastings –  pelo Bispo D. Soares de Resende muito antes – e tantos outros, como os jornalistas que a imprimiram e lhe deram um destino global. O país deve-lhes um tributo. Eu quis lembrar-me de Wiriamu, lembrando-me deles. Do muito que lhes devemos.

 

 

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