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Vim buscar o cadáver do meu irmão

Síndrome do pequeno poder. Riu-se antes de continuar. Falar à Freud não iria adiantar. Quem o compreenderia? Era preciso uma linguagem mais ligeira como a nossa música. A marrabenta ou o Pandza? Abanou-lhe, repentinamente a dúvida. Então para evitar equívocos suspirou um: senta baixo, que te explico. Ando impressionado com a quantidade de ditadores que se forma lá terra. Afinal produzir é isso? Multiplicar autoridades autoritárias? Decidiu ir directo ao assunto. Quantas angústias cabem no choro de uma mãe?

O choro daquela mulher na televisão… um filho morto à pancadas por aqueles que deviam o proteger. Ainda por cima pediram refresco para libertar o moribundo. A autopsia do autoritarismo não podia ser tão alucinadora. Um homem morre massacrado, torturado, triturado pela polícia… E o crime?… tentou denunciar a barbárie. A lei do silenciamento. Que fazer?

Não permitir que as lágrimas daquela mulher sequem antes que se faça justiça. Um irmão morreu nas mãos dos carrascos. Vai lá Alboury reclamar o cadáver do nosso irmão. O choro da velha não deixará ninguém dormir. Alboury, Alboury… Faltam Alboury’s lá na terra, uma mão corajosa que se erga contra a injustiça, cada dia mais trivial, cada dia mais convertida em normalidade. Alboury, Alboury, alguém que desconfie e questione as regras. Alboury…

A mulher chora em pleno telejornal, o juiz muda de canal, o procurador finge que não vê, e amanhã a vida segue o seu percurso… mais uma morte ficou por reclamar.

A sombra noturna da buganvília deve ter devorado o nosso Alboury. Ficamos órfão de vez. Lamenta-se a resignação embrulhada em véus de capulana. O luto pede chá às toneladas e muwuguelo de carapau. O fardo das despesas multiplica a dor. Assim família não guenta, desaba ainda mais na pobreza. Mataram o meu filho. A mulher continua inconsolável. Clama por um Alboury, mas a sombra noturna da buganvília, a sombra noturna da buganvília… Alboury, Alboury, alguém que desconfie e questione as regras. Alboury…

O canhão da repreensão estacionou na avenida. Quem se atrever vai comer chumbo até dizer chega. proclama a sombra noturna da buganvília. Ninguém mais pergunta por Alboury, o clamor silenciado pelo medo das represálias. Mas a mulher não se cala. O seu choro mais perturbador que a azáfama do dumbanegue, clama por Alboury… alguém que reclame o cadáver do seu filho. Alguém que responda ao seu grito. A mulher vai chorar a noite toda, todas as noites, Munhava não vai dormir… a mulher clama por alguém que vá lá e diga:
– Chamo-me Alboury, senhor. Vim buscar o corpo do meu irmão.

Lisboa, 24 de Abril de 2020

 

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