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Uma burguesia sem cultura é oca

A pretexto do “M&M”, o mais recente CD de Moreira Chonguiça, onde partilhou a magia dos sopros com Manu Dibango, o saxofonista falou ao “O País” sobre a sua trajectória, perspectivas e o seu pensamento sobre a música, precisamente sobre o jazz, que é para si mais do que ritmo. É vida!

Na altura que ingressou na Universidade de Cape Town previa o futuro que teria, este presente que vive agora?

Não. Nunca previ chegar a este nível. Um bocado antes de ingressar na Universidade de Cape Town, quando ainda estava cá a tocar com grupos como Kappa Dech, Ghorwane e Clube Jazz Maputo não previa chegar a Cape Town. Foi ironia do destino, porque música para mim nunca foi prioridade. Foi uma actividade extracurricular. Em todas as escolas do mundo, em países com mais condições que nós, desde a creche, tens aulas de música, aulas de ritmo, harmonia e por aí fora. São actividades que ajudam a desenvolver diferentes “paladares” do mundo. Só que comigo, aquilo, foi continuando até chegar a Cape Town.

Acredita que a sua carreira não estaria neste patamar se África do Sul não cruzasse o seu caminho?

Temos de ser honesto, África do Sul tem um papel importante na carreira de Moreira Chonguiça. Mas eu comecei a ler música em Moçambique não na África do Sul. Moçambique deu-me bases. Comecei a ouvir jazz em Moçambique: ir aos clubes de jazz e à Escola Nacional de Música. Moçambique preparou-me em termos de literatura e teoria musical, comportamento humano e respeito mútuo. Nós não íamos à escola para ser músicos, íamos à escola para aprender a ser gente, só que se usava a música como um veículo para se alcançar esse objectivo. A Escola Nacional de Música deu-me isso, só que chegou a um nível que Moçambique não tinha capacidade para continuar os meus estudos a nível superior. Sai de Maputo em 1996 e é daí que entra o factor África do Sul, em particular Cape Town. África do Sul é uma Champions League do jazz: uma lista de 50 saxofonistas todos super bons, cada um com sua ambição e vindo de diferentes partes do mundo. Uma comunidade cosmopolita: negros, brancos, mestiços e asiáticos. Por isso, África do Sul ajudou a restruturar a minha ambição e ajudou a ver os meus limites.

Quais foram as etapas que teve para a construção da sua carreira?

rtistas como Jimmy Dludlu, John Hassan, Jaco Maria e a banda The Loading Zone foram as minhas primeiras referências lá. São os artistas que estavam perto de mim socialmente. Por exemplo, com Jimmy trabalhei durante cinco anos. Esta trajectória não se queima etapas. Eu nunca almejei uma carreira a solo, só pratiquei e acreditei. As pessoas viram-me a tocar com The Loading Zone, depois Jimmy Dludlu, a seguir toquei com Judith Sephuma; toquei nas discotecas e na igreja… Seguindo esses passos todos, está se adquirindo experiência de estar e conviver com outras pessoas que não estão na tua zona de conforto. Segundo, estás a ouvir outros idiomas dentro da música e, naturalmente, assumes que já estás preparado para entrar no “ringue” e começar a sua própria coisa. Mas isso faz sentido quando tu tens várias estórias para contar, porque a tua carreira a solo é a consolidação de tudo o resto que já viveste. É que não se sai da Universidade para logo se ter um CD, aliás, até podes fazer e ficar famoso e ter muito dinheiro, mas não terás mais de cinco anos de carreira exactamente pela falta de experiência.

Como é que a sua carreira ganha mais pujança no meio de tantos colossos da música africana?

Flexibilidade, disponibilidade, audácia, resiliência, determinação, astúcia, paciência, paciência e paciência…

E com quem aprendeu essas lições?

Há aquele ditado que diz Roma não foi construído num só dia, e não foi… O nosso Hino Nacional, este hino pelo qual sou apaixonado, diz isso: “(…) Pedra a pedra construindo novo dia. Milhões de braços uma só força”. Ninguém se faz sozinho. Se quiseres ir sozinho hás-de ir até rápido, mas se quiseres ir longe leve mais pessoas contigo. Cria uma equipa. Se o teu telemóvel tocar enquanto estás ocupado, veja as chamadas perdidas e liga de volta, porque não sabes quem é que está doutro lado da linha. Quando tiveres um espectáculo e só estiver uma pessoa na audiência, enquanto estavas à espera de 500 pessoas, toca como se estivesses a tocar para um milhão, porque tu não sabes quem é aquela pessoa. Nunca atrasar e estar sempre bem apresentável. E é importante saber parar, viajar, reinventar-te, ouvir outras pessoas. Isto é um cocktail de emoções muito perigoso e por detrás desse cocktail há o negócio. Quando tu decides ter uma carreira, há uma palavra que tu tens de saber dizer, que é “não”. Primeiro, “vou pensar, vou reunir com a minha equipa”. Ainda que te prometam um milhão de dólares deves saber dizer não. Porque os artistas são empresas e são uma marca, por isso tem de saber qual é o seu mercado. Não é fácil fazer música em Moçambique ou em outra parte do mundo. Quando eu digo “não” não significa ser arrogante. É importante a gente lembrar quem é, o que vai conquistar, porque, muitas vezes, as pessoas aceitam tudo pelo dinheiro.

Tem licenciatura em Etnomusicologia. Além disso, participou em diversos festivais pelo mundo e já tinha uma carreira sólida na África do Sul. Porque apostar em Moçambique?

É meu país. Eu fui de férias a Cape Town, fui emprestar ideias, tal como posso ir para um outro sítio. Foi uma decisão difícil, porque estou no pico da minha carreira a nível internacional, mas tinha que operar de Moçambique para o mundo e não da África do Sul para o mundo. O meu endereço é Moçambique.

E o que dizer dos artistas que foram mais cedo que Moreira e até agora não voltaram?

Nós temos que começar a pensar e dedicarmo-nos em nós. A questão do jazz em Moçambique é muito importante. Se calhar estou a passar por um jovem parvo. Talvez estaria preocupado com o negócio do gás e do petróleo, viver em grandes mansões, mas uma burguesia sem cultura é uma burguesia oca. É responsabilidade nossa como artistas não de criticar, mas trazer soluções. Sei que não é fácil. Eu tenho o privilégio e a honra de dizer que tenho uma equipa fantástica que nem sempre concorda comigo e eu nem sempre concordo com eles, mas a discórdia e a diferença é a melhor coisa que temos, porque nos faz pensar e crescer… Faz-nos ambicionar.
Pelo seu inesgotável papel na promoção do jazz em Moçambique, alguns assumem Moreira como um embaixador deste ritmo.
Eu sou o jazz! Eu vivo o jazz. Existem muitas interpretações erradas em alguns círculos, mas o que importa é que se está a celebrar o jazz. É importante conhecer a essência do jazz.
Acredita que os moçambicanos percebem a tal essência do jazz?
Percebem. Se não eu não estaria aqui. Eu sou moçambicano!
E não se assume como um ritmo de um circuito fechado?
As pessoas estão livres de dizer o que quiserem. Nós vivemos num país democrático e hoje com Whatsapp e Facebook pior ainda.

Agrada-lhe o estágio do jazz actualmente no país?

Estou feliz com o estágio do jazz neste momento. É onde devia estar. Daqui há dois ou cinco anos vamos falar…

Com o projecto More Jazz Big Band é uma forma do jazz ter seguidores?

A intenção deste projecto não é de nenhum dos miúdos ser músico. É usar a música, o jazz em particular, para dar bons modos, ideologia, perspectivas de vida, respeito por si para poder respeitar o próximo. Se naqueles 40 miúdos alguém acabar por ser Manu Dibango deste mundo será fantástico para Moçambique e eu fico feliz, mas se for arquitecto há-de ir a todos concertos de jazz e levar à família. E se for um fotógrafo há-de fazer boas fotos.

Em Moçambique há pouca visibilidade de jazzistas. É o mercado moçambicano que não está preparado para os integrar?

Não existe nenhum mercado preparado para algum produto. Os mercados criam-se e forçam-se. Não é de dia para noite. Agora há aqui uma pergunta: Será que nós temos a paciência para construir ou queremos retornos imediatos? É difícil. Não podes plantar uma árvore de mangas e ir arrancar os frutos à noite.

Como singrar num país sem editora, com pouco apoio, sem salas de espectáculos e outros dilemas que tornam a música no geral insustentável?

Em Moçambique não é fácil. Eu sou privilegiado. A minha editora não está em Moçambique, está baseada em Cape Town, fruto das relações que criei fora. Tive sorte. As salas de espectáculos tem de ser o privado a fazê-las e não o Estado. Estão a criar-se classes, essas classes é que devem investir na cultura também.

More Jazz Series é um festival que traz à Moçambique grandes ícones da música jazz internacional. O que faz esta máquina funcionar há seis anos?
É uma máquina muito grande. Uma coisa de que tenho orgulho é que respeitamos os standart globais de produção. More jazz não é um evento, nós fazemos marcas. É uma maneira de estar diferente. Não fazemos espectáculos. O show foi espectacular! (risos) Celebramos a vida, mostramos tudo de bom que existe nas pessoas. Vendemos o que Moçambique tem de melhor para oferecer.
Será desta vez que Jimmy Dludlu vai participar do More Jazz Series?
Jimmy Dludlu é um grande amigo meu. Ainda não tocou no More Jazz, porque ainda não houve oportunidade para acontecer. Não houve nenhum comunicado de imprensa de Moreira Chonguiça a dizer que Jimmy Dludlu nunca vai participar do festival. Eu não vou ao Facebook responder fofocas e especulações. Se ele não tocou pode ser por uma razão qualquer e não pelas questões negativas. O que se passa? Por que a gente não pode ver o lado positivo das coisas? É negativo! Tanto na política ou na economia é tudo fofoca. Eu não posso responder expectativas de pessoas. Vamos trabalhar, vamos mandar mensagens de amor. Por que há sempre um tom que não faz bem?

O que foi para si esta parceria com Manu Dibango que tem como fruto o álbum “M&M”?

Eu ainda não acredito que isso aconteceu. Lançámos o disco há três semanas precisamente. Manu Dibango não fez nada por mim, fez por Moçambique. Do pouco que conheço é o natural dele, ele vive assim todos os dias e é assim que devíamos viver como irmãos, como africanos. Nós mostramos o mundo que não temos tempo para gerir negatividade, temos tempo para nos amar, juntar forças e mostrar o mundo o que temos de melhor ao em vez de perdermos tempo a falar à toa.

Este álbum de 15 faixas resgata sons que inauguram a história do jazz norte-americano, mas aqui aparecem com um retoque africano. É uma forma de reivindicar algo?
Também. De lembrar donde vem tudo. Ninguém vai lembrar por ti. Lembrar no sentido positivo. Lembrar quem é o teu pai, a tua mãe, a religião do teu avô.

Saxofone que sopra para o mundo

Moreira Chonguiça é saxofonista, etnomusicólogo, produtor, compositor, empresário e activista social, nascido a 13 de Fevereiro de 1977, na cidade de Maputo. Aos 7 anos começou a frequentar a Escola Nacional de Música. Para continuar os seus estudos em música, Moreira mudou-se para Cape Town (África do Sul), onde se licenciou pela Universidade de Cape Town Jazz em etnomusicologia.
É autor de seis álbuns, nomeadamente: “The Moreira Project Vol I – The Journey” (2005); “The Moreira Project Vol II – Citizen of the World” (2008); “Khanimambo” (2011), álbum que Moreira Chonguiça homenageia as “Lendas de Moçambique”; “MP Reloaded” (2013); “Moreira Chonguiça Live at Polana Serena Hotel” (2015) e “M&M (2017), fruto de uma parceria com o saxofonista camaronês Manu Dibango. Já participou em uma centena de festivais e amealhou uma dezena de prémios. Moreira Chonguiça é patrono do projecto More Jazz Big Band em parceria com a Escola Nacional de Música e director do Festival More Jazz Series, evento que há seis anos cruza grandes vozes do mundo em Maputo. Além disso, Moreira intervém

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