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Um visitar o chapa-cem no metro de Lisboa

Reconstruo esta memória, sentado a comer amendoim torrado que me chegou de Maputo, num dos assentos do metro de Lisboa. O metro tem como destino a Baixa-Chiado, lá onde todos se juntam e tudo acontece.

Todas as vezes que embarco numa viagem no metro desta cidade, onde todos os mundos se encontram, lembro-me das vozes, dos cheiros e dos apertos dos chapas de Maputo. Este acto de retecer andanças e lembranças nunca me ocorreu tão forte quanto nesta viagem. Cada amendoim engolido é mais um quinino que atiça a memória a revisitar de modo profundo as viagens da rota Zona Verde-Baixa, que em tempos passados eu fizera nos chapas de Maputo. 

O silêncio é o som que mais se ouve nesta e em todas as viagens que faço neste comboio subterrâneo. De quando em vez o mesmo é interrompido por um abrir ou fechar de portas quando chegamos à estação seguinte ou pelos incontidos galanteios que as rodas fazem aos carris. Cada pessoa entra, senta, namora o silêncio e chegado seu destino levanta e se vai embora sem a quem dizer um singelo tchau.

Para quem já andou de chapa, à primeira vista, a realidade revela-se uma patranha deveras estranha.

Faço contínuo requerimento à memória para que ela me conceda o obséquio de visitar uma viagem em que o silêncio fez morada nos chapas de Maputo e em jeito de indeferimento tudo que ouço é "Baixooô, Baixa, Baixooô" que um jovem que se apoia na porta de uma viatura de marca Toyota Hiace grita como se de uma música se tratasse. Em seguida, como que seduzidos por tal cantar vejo gente em catadupa correndo para aquela viatura. Depois de uma forte luta vejo-a cheia de alguns dos que há instantes trocavam empurrões para nela garantir o seu assento. Estão sossegados e prontos para assistir o concerto clássico que terá lugar no seu interior. A lotação da viatura é de quinze lugares, contudo quando me esforço para contar vejo um pouco mais de vinte e cinco pessoas, umas sentadas e outras que nos próximos minutos, quiçá horas, permanecerão de pé. Não tarda para se acomodarem naquele desconforto e a viatura começar a ganhar movimento.

As imagens e os sons que a memória me faz revisitar tornam-se opacos quando paro para tirar a casca do pouco amendoim que me sobra.

Deglutido o amendoim tudo volta a ganhar luz. No fundo ouve-se "Massinguitane" de Mr. Bow e este é abafado por uma cacofonia de vozes, algumas discutem política, outras se queixam do preço da couve que subiu, outras narram com tanto orgulho as proezas conjugais que protagonizaram na noite passada. Contudo, o que mais me chama atenção é um jovem que se encontra no seu melhor, a paquerar uma rapariga. Diz ele à rapariga "U xonguile wene", que significa tu és bonita. A rapariga como um girassol galanteado por aquela luz incandescente que ilumina os dias de Maputo deixa o sorriso escapar-se-lhe pela boca.

Junto à porta do chapa protagonizam uma cena menos romântica duas senhoras que a falta de assento e o ardente desejo de seguir viagem as obrigou a embarcar naquela viatura onde tudo se mistura. 

– Senhora não me pisa! – grita uma delas.
– Não te pisei, te encostei mamã! – responde a outra com um tom jocoso.
– Me pisaste sim! Sabe o que é encostar alguém? – responde a ofendida num tom de voz que denota que o céu está nublado e nos próximos minutos terá lugar uma tempestade se as coisas continuarem no mesmo estado.

Segundo findo tudo fica escuro, Lisboa e Maputo partilham o mesmo espaço.  Num rodopiar sem legenda, noite e dia se confundem. Desta vez as lembranças não se tornam opacas, mas sim se esvanecem por completo. Dou-me conta que acabei o amendoim que minha querida mãe enviara, e o metro acabara de parar numa estação com o nome Baixa-Chiado. É o meu destino, penso.  Com as lembranças mais vivas que nunca, o meu semblante fica enrubescido e abandono este comboio subterrâneo sem alguém a quem dizer um simples adeus, tal como muitos que por aqui passam. 

 

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