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Um poeta dividido pelo mar: a Geografia do Olhar segundo Amosse Mucavele

Um convite à viagem: olhar a cidade com outros olhos

O primeiro livro de Amosse Mucavele, “Geografia do Olhar. Ensaio fotográfico sobre a cidade” , publicado no inicio de 2017, inaugura a coleção Filhos do Vento, exclusivamente dedicada à poesia, que se inscreve no projecto esboçado por Mbate Pedro (Cavalo do Mar edições, Maputo, Moçambique), para dar expressão aos autores moçambicanos, de diferentes géneros literários. O titulo tão sugestivo e o interesse do conteúdo talvez merecesse uma organização mais cuidada, sobretudo um índice completo, para facilitar a leitura, embora tal pormenor não faça diminuir a qualidade nem o interesse da obra.

Entre as múltiplas leituras a que o livro se presta tocou-me o convite implícito à viagem pela geografia intima do autor, que nos guia pelos lugares, reais e imaginários, que feriram a sua sensibilidade poética, situados tanto aquém como além das suas fronteiras naturais. O autor está focado na cidade, propondo uma viagem no espaço e no tempo, como “um rio calado pelo tempo” (22), onde se sedimentam registos intemporais das suas memórias e quotidianas deambulações. O olhar pessoal balança, pois, entre reflexões sobre a cidade, do conceito mais abstrato às vivências mais pessoais, fazendo forte zoom sobre Maputo e Lisboa.

O viajante que percorra estas duas cidades e tenha este livro como guia constata o apego do autor pelo mar e a importância da água e dos rios no desenho urbano. O mar e os rios têm a capacidade impar e ambivalente de separar e de unir. Será por isto que o rematou com um veemente apelo á cooperação, a uma mítica terceira margem, como no conto de Guimarães Rosa, que apenas se pode alicerçar a partir dum efetivo diálogo baseado na cultura e nos afetos. É sempre comovente imaginar a fusão entre as águas do Atlântico e do Índico ou o Tejo, o Zambeze e o Incomáti desaguarem no Amazonas.

Os poemas são enquadrados, aqui e ali, por citações que apontam o rumo e delimitam o território onde o autor almeja poetar. Cavalo do mar, o nome da editora, provêm, ficamos a saber, dum “animal do século treze” que, “segundo a tradição, só vem à costa pelo cheiro das éguas”, se fizermos fé no Livro dos seres imaginários, publicado por Jorge Luís Borges, em 1957. A arte poética de Amosse Mucavele tem, por outro lado, a incerteza da linguagem cara a Maurice Blanchot, cuja trave mestra assenta no sentimento e na dimensão mitológica para a existência, na senda do que foi insistentemente perseguido por Louis Aragon e outros modernistas. Porque o autor foca o seu olhar na cidade, abre o livro, naturalmente, com um extenso poema, “Lição de urbanismo”, publicado por JL Tavares, em 2008, para quem “uma cidade é essa intérmina ameaça/ de luzes”, uma “feérica paisagem” que para “colori-la com demão,/ é oficio de prosa obesa”, já que para “da cidade mostrar/ a agudeza e a simetria, requer poesia chã”.

É neste chão que Amosse Mucavele pretende cultivar a sua poética e se dispõe lavrar a sua Geografia do olhar.

 

Geografia do olhar: é obrigatório olhar com outros olhos

A geografia vivida deste “sonhador por excelência” resulta dum intenso trabalho de campo no seu território de afetos em demanda de fragmentos que alimentem a sua poética. O caminho que percorre é profundamente autobiográfico, como se depreende dos temas que aborda e dos lugares onde demora o olhar, ora contemplativo ora reflexivo, que revisita amiúde para alimentar uma geografia tão intima e particular.

A obra está, pois, impregnada de profunda e latente geograficidade a avaliar pela recorrência de temas que fazem uma agenda de reflexão, assente em palavras-chave que estruturam um discurso concreto. As múltiplas geografias que a leitura dos versos proporciona mostra que não estamos perante um simples ensaio como, modestamente, insinua no subtítulo. A sê-lo, nunca seria exclusivamente sobre a cidade nem meramente fotográfico. Embora o insinue quando refere que “reescrevo com os olhos/ a fonte do imaginário desta cidade/ sem rumo” (24), o olhar, porque poético, nunca se deixa resumir a um simples olhar fotográfico. Apesar de fotografia, etimologicamente, não deixar de ser uma forma de escrever com a luz.

O recurso à fotografia tem de ser entendido como um recurso, um meio mas nunca um fim, uma mera técnica de produzir ou simular imagens, sobretudo quando “os olhos vagueiam sob a multidão em chamas” (35). O permanente jogo de sombras que resulta do olhar condicionado pelo sol remete para uma permanente alternância entre o dia e a noite, a luz e o escuro, na tentativa de almejar a profecia de Jorge Luís Borges: “eu vi o sol em toda a sua glória”. O sol que daqui emana percorre todo o livro: “haverá ainda este sol/ a murmurar na água” (23); “anoiteço no corpo do poema/ onde voa o sol em toda a sua glória” (24); “contemplo na voz do barco/ a condução do sol em toda a sua glória” (29); “o Sol transborda/ no caminho apagado” (38).

Será sempre “Luz do mistério” (33), mesmo quando “com luzes apagadas/ faço da escuridão a condição pela qual vivo” (20). O subtítulo, ensaio fotográfico sobre a cidade, sugere, explicitamente, a preocupação de centrar o olhar no urbano, evitando com isto escapar a outro tipo de catalogações.

 

Palavras e temas chave: coordenadas para uma cartografia

O livro é percorrido por um permanente confronto (poético) entre a terra e a água. A terra firme, normalmente mais desbravada pela prosa, é aqui representada pelo chão da cidade, enquanto o elemento aquático, predominante, é representado pelo mar, a praia, as ilhas e os rios. A obra é ainda percorrida por um discreto e subtil erotismo: as praias douradas e o azul cobalto do Indico convidam a “esconder-me/ na floresta densa/ de um naufrago/ que toca as conchas do silêncio/ com o trompete do tempo” (Ilhas nua: 33); “mãos leves/ sem retorno/ festejam por detrás do amanhecer// (a verdade deste silencio que nos ilumina)” (Ponta do Ouro, o caminho longo: 31); tentando remar para o mesmo lado (Magumba: 26), há a expetativa que se “dispa o baton que ensurdece o teu destino/ caminhe com a saudade no deserto/ onde repousa a esperança” (A carta que nunca te escrevi: 39).

Com a terra e o mar sempre no horizonte é-nos proposta uma viagem que se desdobra em diferentes caminhos paralelos e complementares: o movimento constante entre a cidade e o mar, o permanente vaivém da cidade para a costa acaba por regressar do mar à cidade. Este vaivém expande-se, posteriormente, quando a deslocação chega a Lisboa, cidade doutro continente. A escala aumenta em dimensão e em complexidade quando a geografia abrange os dois hemisférios, do sul e do norte.

 

O itinerário desta geografia tem alguns temas e certas palavras como referências, verdadeiras bússolas que pautam o rumo imposto pelo autor. O livro é percorrido por três temas centrais: a cidade, em sentido lato, que se expande do centro aos subúrbios; o mar, esse litoral marítimo povoado de praia, de ilhas e de sereias; a viagem, esse caminho longo que fica cada vez mais longe, quando se procura o outro e se demandam lugares de aquém e além-fronteiras.

(i) A cidade e o (impossível) silêncio. A cidade é-nos apresentada como um território de angústia, de silêncio e de exclusão, onde é mais fácil depararmos com ”os carris da incerteza” (32), sobretudo para os amarrados às suas margens e se veem obrigados a ter de “pernoitar na estação” (32). Só a “veloz saudação dos chapas” (19) acaba por romper os pesados silêncios que habitam a cidade, onde há sempre “um eco que se fecha em silêncio” (19), razão para nos sentirmos sós no meio da multidão, porque é aí “onde o sonho se abre em charco” (20). A cidade é, pois, um permanente vaivém de esperas, paragens, regressos, chegadas (34), de engarrafamentos de chapas, comboios, passageiros, distâncias (32). A rugosidade deste lugar dificulta o quotidiano e acirra o violento confronto entre o formal e o informal, entre o estado que reprime ao tentar impor a sua ordem e um povo que resiste numa permanente luta pela subsistência. Na versão do autor, esta tensão atinge o seu clímax no Mercado Xipamanine: “Como se fosse um cemitério,/ todo o mundo chora/ os vendedores ambulantes,/ os chapeiros/e a polícia com as multas anuncia/ a melodia da tristeza” (36). Apesar de todos estes silêncios e incertezas a cidade nunca deixará de nos atrair nem perderá a capacidade de nos surpreender “na melancólica procura de um sonho” (21).

(ii) A água e o mar: imaginário oceânico povoado de praias, de ilhas, de sereias. A terra ou é imanência ou tem sempre por perto o mar: “Hoje de novo sigo o rumo do mar/(…) aqui a distância mantém o seu laço com a terra”(29), na presunção de “a fome dos barcos alcançar a terra” (23). Para um agrónomo a terra não devia ter semelhante carga nem tamanha conotação negativa, porque é sempre eminente que “O resto da terra caiu em lágrimas” (22), onde parece que reside toda a origem do mal. A geografia que prevalece é líquida, um imenso lago amniótico formado pela omnipresença da água, sobretudo do mar: “Morri no mar/ e ressuscitei no rio/ tenho saudades do sal” (37); os rios são mais distantes, longínquos, destinados, quando muito, em desespero de causa, a poder ressuscitar. “Num rio calado pelo tempo/ feito de náufragos” (22) mostra como a água pode ter vários desideratos, incorporar múltiplos condimentos, onde “remo os dias todos/ como uma pedra na água” (27), na expetativa de alcançar o “porto de águas profundas” (33), onde “Haverá ainda este sol/ a murmurar na água” (23). É constante a presença do mar, onde “Haverá esta tamanha glória/ no corpo insaciável dos remos/ que sugam o mar todo” (23). O imaginário do autor está amarrado a um litoral batido por marés, temperado pelo sol e pelo sal, com ilhas no horizonte, onde se impõe o apelo inabalável de conviver com pescadores, barcos e remos. A dialética entre o peixe e o pescador ou entre a palavra e o horizonte deixou-a expressa quando remeteu para o mar a (im)possível (re)conciliação: “Ouvi dizer que no mar/ o peixe tenta conservar tudo que lhe resta/- a palavra – o pescador sobre o barco/ desperta a aliança/ que se estende em torno do mar/ – o horizonte” (28). Ao pescador são dedicadas diversas canções (27e 28) e os barcos circulam, “os barcos vacilam geometricamente/ no corpo húmido do silêncio” (25). Este constante fluxo e refluxo é tão errante como o que se inscreve “Na maré do meu diário” (24); entre o litoral e a ilha cede perante “a ilha/ um anel/ sem voz” (30); mais adiante avisa que “partirei para a ilha/ encarcerado de conchas e garças/ no litoral da espera” (38). Não será por acaso que “é no mar onde se desnorteia a vítima” (26), pois é aí que está mais vulnerável e definitivamente à sua mercê. É lá que “sigo o rumo do mar/ para o silêncio” (29) em demanda de remos e de rumos: “Se tu remas e eu remo/ eu me remo rumo a ti” (26).

 

(iii) A viagem: entre a cidade e o caminho longe. Viajar na cidade é um pesadelo imposto pela dificuldade de transportes, que deixam o transeunte à mercê dos chapas. Mas é aqui que “costuro a inadiável viagem” (33) e, apesar de tudo, persiste “com os olhos continua(r)mos a desfolhar a distância?” (23). Nestas viagens quotidianas, de proximidade, de cabotagem entre bairros, que percorre o “caminho apagado pelas cinzas da memória” (38), onde ousa aventurar-se e a sonhar em chegar “No porto de águas profundas/ celebro o batismo do caminho longe” (33). Esta ambição de fazer tal caminho, de percorrer o caminho longe, acaba por o levar até As Flores-de-Lisboa. A deambulação na cidade alheia faz-se em terra, roteiro que passa pela Lapa, Chelas, Rato, Amoreiras, S. Pedro de Alcântara. Completam este itinerário incontornáveis lugares que qualquer sentimental não dispensa: Fado(54), Silêncio (52) e Rio Tejo (51). O incontornável Solar dos Galegos, qual catedral gastronómica, também se atravessam no caminho; é lá que é possível “Pensar que as nuvens não descem do céu com os seus próprios pés” (50) ou “que a sinfonia dos copos tombados de alegrias é uma carta sem destinatário e cheira a exílio” (50). Rematar o livro com Mafalala x Kinaxixe não é só homenagear José Craveirinha e Luandino Vieira, mas colocar Luanda na rota do vértice de um triângulo que não fica completo com apenas três lados.

 

O universo real e imaginário de Amosse Muscavele têm as suas fundações em Maputo, varanda sobre o Indico, fronteira azul definida por um rosário de praias e ilhas dispersas no mar que fecha o horizonte. Este sucinto mapa mental, tem outras fronteiras além-mar, terrestres, multicolores, que se espraiam das franjas urbanas aos subúrbios mais longínquos, lá longe onde a cidade penetra e se começa a confundir com a savana. A juventude urbana, formada nas margens da cidade grande, imagina o interior do país como uma enorme ausência, um imenso espaço vazio violado por um ou outro rio. A reduzida extensão do livro não significa conter que a peregrinação deste filho pródigo seja breve pois o inevitável regresso às suas origens é uma constante sempre anunciada.

1. Origens: cidade, bairros, subúrbios; entre o centro e a periferia. Os poemas que abrem o livro situam-nos e enquadram a cidade, dão-nos o mapa onde o autor desenhou a sua perspetiva da morfologia social e urbana que irá desbravar. A geografia urbana do percurso que irá fazer vai levar-nos do centro à periferia, arranca na cidade de cimento, onde se desenrola uma “Guerra popular”, pois “a cidade é um inventário de angústias” (19), primeiro verso que abre o livro e, em jeito de epitáfio lapidar, retrata uma facetas da vivência contemporânea. Nascido para a vida algures “num bairro onde confluem a estação ferroviária, o aeroporto internacional, a vala de drenagem e o vaivém dos chapas” (57), o “Passageiro clandestino”, como se define o autor, guia-nos a desbravar a periferia, a sua pátria de afetos, onde tem as raízes, como demonstra a sucinta biografia que serve de posfácio ao livro: assim atravessaremos o Bairro Magude (20) a caminho do Subúrbio (21). A rugosidade urbana impõe contrastes agrestes que atinge o seu auge na periferia, realidade comum às cidades de todos os continentes. Nestes territórios de exclusão, social e urbana, como o Bairro Magude, o vocabulário é mais palpável e tangível, donde se faz o “regresso ao avesso/ com luzes apagadas” (20). Nesses territórios, “Nas margens das cidades/ as acácias são como almas adiadas” (20), uma vida fervilhante convive com os abandonados à sua sorte, onde “nenhum peão resistirá aos buracos” (21).

2. Peregrinação: entre a terra e o mar. A cidade imaginada é aquática cujo limite parece mergulhar no mar, donde sobressaem as praias e as ilhas que abundam no litoral de Moçambique. Esta geografia tem por coordenadas Macaneta onde, segundo Manuel Gusmão, facilmente se perde o caminho para o mar (22). Com o mar sempre por perto, chegamos a Magumba onde, como já sabemos, é “no mar onde se desnorteia a vítima”. Um simples encontro, contudo, pode mudar o rumo dos acontecimentos: “se tu remas e eu remo/ eu me remo rumo a ti” (26). Na Inhaca, “a distância mantém o seu laço com a terra/ sem nenhuma rede a espelhar o destino” (29); Xefina, a ilha, parece “um anel sem voz” (30), há A ilha nua (33) e a longínqua Ilha do Ibo (38). Na praia da Ponta do Ouro (31) é possível um fraterno convívio enquanto se escuta a recorrente Canção do pescador (27 e 28).

3. Regresso: a cidade aqui tão perto. A primeira parte do livro fecha uma viagem interior, entre a terra e o mar, mas com o regresso à cidade sempre na agenda. O regresso é atribulado, pode ter pernoita na Estação (Comboio dos duros, 32), dos que ficam “À espera do chapa/ numa paragem qualquer” (34), com passagem por Xiquelene, “na veloz hora de ponta/ desnorteado, o chapa fala outra língua” (35), pelo icónico e incontornável Mercado Xipamanine (36). O roteiro de regresso a casa é entremeando de divagações, de visitas a locais longínquos (Ilha do Ibo, 38) ou a “oásis” que funcionam como portos de, enquanto se espera que “dispa o baton que ensurdece o teu destino”, em “A carta que nunca te escrevi” (39). Na hora do regresso, quando faz “a síntese da fuga” e tem “a avenida Julius Nyerere” à vista é mais clara a consciência que “o vulcão chora/ da boca da lixeira” (Bocaria, 40).

 

A terceira margem: (re)construir o diálogo perdido

O autor viajante tem o propósito de alcançar a terceira margem do oceano para encetar um diálogo mais abrangente que não se resuma a Maputo e Lisboa, como deixou explicito no poema final dedicado a José Craveirinha e Luandino Vieira. Mafalala e Kinaxixe (56), locais emblemáticos de Maputo e de Luanda, viveiros de futebolistas e outros artistas, tiveram sortes diferentes: se Mafalala permanece como bairro semiperiférico que preserva uma certa identidade, Kinaxixe pode preservar alguns edifico modernistas, construídos em Angola, durante as décadas de 40 e 60, por vários arquitectos formados em Portugal, mas viu demolido o Mercado do Kinaxixe, provavelmente o mais emblemático de todos, para no seu lugar nascer um centro comercial com seis pisos e duas torres.  

Os melhores exemplos desse "modernismo tropical" não resistem aos sinais dos tempos nem à forte gentrificação que não respeita a memória das cidades. “As flores são luzes”, diz o poeta, enquanto “os frutos são o escuro/ que elas iluminam/ na penumbra do subúrbio” (56). Que mais flores desabrochem para um frutuoso diálogo de reciproca e fraterna cooperação entre gentes que, embora longe da vista, não deixam de estar perto do coração.

 

Amosse Mucavele (2017) – “Geografia do Olhar. Ensaio fotográfico sobre a cidade”. Cavalo da Mar Edições, coleção Filhos do Vento, Maputo, Moçambique.

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