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Um novo começo

A vontade de Deus jamais nos levará aonde a sua graça não nos pode alcançar;

Chico Xavier

 

O cinzento do céu e os tenebrosos relâmpagos prolongaram, por mais algumas horas, o tempo de trabalho de Marisa. Quando se apercebeu que as águas que seguiram a tempestade cairiam por mais tempo do que o esperado, ela decidiu retornar à casa.

Voltar a casa transformou-se num calvário diário para Marisa. De dia, mulher bem-sucedida, directora de uma das empresas cita na majestosa cadeia dos edifícios mais luxuosos do país, mas, ao cair do sol, ela arrependia-se por estar viva.

Os vidros escuros do seu carro testemunharam o diário funeral do olhar altivo e dominante que reinava durante o dia. Os dias eram todos iguais, sem nada de novo para viver. Quis o destino que aquele dia fosse diferente. O destino, justamente ele, que ela tanto odiava.

Ao parar o seu carro ao lado dum jardim, que ficava a escassos metros dos edifícios onde ela trabalhava, viu uma criança que tentava, a luz dos faróis dos carros, usar um papelão como colchão e um plástico como manta para que as águas da chuva não o atingissem.

Marisa tentou ignorá-lo, mas as forças invisíveis da natureza, novamente, não colaboraram. Uma árvore caíra perto do semáforo impedindo momentaneamente a progressão das viaturas que já se tinham enfileirado, daqueles eventos típicos em dias de chuva. Minutos passaram-se e, por detrás dos vidros escuros, Marisa continuava a observar o rapaz que empenhava-se cada vez mais em evitar que as águas da chuva o atingissem. Foi nessa incomum atenção que a mulher se apercebeu que jaziam, na face do menino, pequenas gotículas de água. Não era, indubitavelmente, a água da chuva que escorria pela sua face, ela conhecia aquele estado. Era febre.

Subitamente uma preocupação tomou conta de si, reflexões que nunca tivera invadiram a sua mente. Como é que aquele menino foi parar na rua? Os seus pais? Os familiares? Se realmente ele estiver doente, quem o socorrerá sob aquela chuva? A mulher olhou a volta e enxergou que o mundo continuava a girar e as pessoas continuavam a sua vida normalmente ignorando aquela situação. Ela também o fizera durante a vida toda.

Já na casa dos 40, os eventos da sua vida a ensinaram a ter sensibilidade para aqueles casos, porém, ela continuava sem saber o que fazer. Ficou por muito tempo a pensar, a ponderar diversas hipóteses, que nem se apercebeu que os restos da árvore tinham sido removidos e o tráfego fora reestabelecido. Foi o ruído das buzinas dos outros carros que a fizeram retornar à terra.

Movida pelo instinto, a mulher decidiu encostar o carro e chegar perto do menino. Ao abrir a porta do carro teve consciência do quão frio estava no exterior e do quão necessitado aquele menino, provavelmente, estava.

Ao se dar conta da presença da elegante mulher, o menino tentou reagir, mas em vão. A febre não o deixou. Pacificamente o menino deixou-se levar pela mulher e enroscou-se no seu colo enquanto era transportado para o banco traseiro do carro. Nem as lendárias histórias do Tatá Mamã e Tatá Papá o assustaram, afinal isso só servia para quem tinha pai e mãe.

Ao chegar a casa, apesar de ter o banco traseiro do seu carro inundado, a mulher sentia-se renovada, tinha um motivo para viver. A casa não estava mais vazia. Lembrou-se, por instantes dos tempos em que ela andou cheia, com brinquedos a voar por todo lado, as colunas a expelirem um som alto, o uísque a marcar o seu território no odor da casa, a cheirosa comida do entardecer pronta na mesa para, em família ser devorada…  Apressou-se em colocar o menino na banheira, imergindo-o de seguida em água morna. No fogão estava em ebulição uma sopa de legumes, que a fez lembrar do sr. Martinho que, sempre solícito, deixava todo santo dia uma sopa no fogão. Sorriu ao lembrar como ela era feliz e uma lágrima escorreu-lhe o rosto ao lembrar como, num sopro, a vida fora dura com ela. 

Enquanto Marisa empenhava-se em lavá-lo à banheira, o menino mantinha os olhos fixos nela. Parecia querer falar com ela, mas algo o impedia. A mulher pegou nos pés do menino, analisou a sua altura, adivinhou a sua idade. Ele deveria ter entre 7 e 8 invernos. Marisa caminhou lentamente para o compartimento esquecido, o quarto proibido, onde reinavam as memórias mais doces e mais tenebrosas da sua vida. De lá trouxe algumas roupas, bem engomadas e cheirosas, todas coloridas que serviram na perfeição o menino, dos pés a cabeça.  Amaldiçoou a perfeita coincidência.

Encaminhou o rapaz para a sala de estar e o pousou no sofá. “Ainda consigo”, pensou ela. Foi buscar a sopa e, colher a colher, foi o dando de comer e ele a saboreava no silêncio dos deuses e no final deu-lhe um analgésico. Marisa não insistia que ele falasse e o menino continuava sempre com o olhar fixo nela e um sorriso misterioso.

Marisa foi novamente ao quarto proibido e desta vez trouxe consigo um cobertor. Colocou sobre o rapaz que, sem nenhuma resistência, deitou-se no sofá. Voltou a passar-lhe a mão na cabeça e no seu pescoço e, para a sua alegria, certificou-se que a febre baixara. Desajeitadamente ela deu um beijo na testa dele e ele a puxou para um abraço mais demorado. Marisa sentiu uma energia passar entre os dois e uma paz interior a invadiu.

No corredor, em direcção ao seu quarto, a choradeira foi inevitável. Em silêncio, gritou, deixou as lágrimas escorrerem-lhe o rosto, deixou a dor desvanecer, um sentimento há muito sedimentado em seu coração. Agachou-se, viu as águas da chuva escorrerem pela janela, lembrou-se do dia em que o seu filho foi diagnosticado um cancro em fase terminal, lembrou-se do momento em que lhe disseram que sobravam-lhe apenas dois meses e, no final das contas, tudo resumiu-se em apenas um mês. Marisa chorou, chorou como no dia em que velou o próprio filho diante de uma plateia de olhares acusadores.  Desta vez já não chorava em silêncio, gritava como uma criança.

Os dias seguintes ao velório foram tenebrosos. O Marido foi o primeiro a quebrar silêncio, segurou nas suas malas e saiu de casa. Culpou-a pela morte do filho, o único herdeiro. Acusou-a de se concentrar demais no trabalho e de ignorar os sinais de uma doença que há muito consumia o rapaz.

Marisa desistiu de ir ao seu quarto, foi novamente ao quarto proibido. Dispensara, logo após o trágico evento, o sr. Martinho, fiel zelador da casa, e abraçara a solidão desde então. Cheirou, ainda em pranto, as roupas do falecido filho. Se tivesse prestado mais atenção nele, se tivesse faltado àquela reunião, se tivesse adiado àquela viagem, se tivesse cancelado àquela formação, certamente o teria levado mais cedo para o hospital e provavelmente ele estaria, naquele dia, correndo pela casa. Ela era a culpada, a única culpada daquilo tudo, como se o filho fosse somente dela e, foi no meio da choradeira e do cansaço que ela pegou no sono, ali mesmo, naquele quarto.

Marisa acordou no dia seguinte sob o barulho da diarista que vinha zelar pela casa. Atordoada foi a correr para a sala e não havia nenhum sinal do rapaz. Questionou a diarista e ela disse que não vira ninguém e não havia nenhum rasto de sopa no fogão e nem loiça suja, que tudo estava como ela deixara no dia anterior. Correu para o carro…. Estava seco, sem sinal de ninguém ter estado lá. Recorreu as camaras de vigilância e, infelizmente, tiveram um apagão de cerca de duas horas que foi devidamente justificado pela direcção do condomínio. O porteiro não pôde atestar se ela estava só ou não, pois, os vidros do seu carro eram escuros.

Marisa percorreu desesperada a casa toda a procura de algum sinal da presença daquele rapaz e quanto mais procurava nada encontrava. Desesperada voltou para o quarto do falecido filho e procurou pela roupa que ela vestira o rapaz. A roupa estava lá, engomada e bem cheirosa, como se ninguém a tivesse mexido. Terá sido apenas um sonho? Não! Marisa jurava que não. Remexeu nos bolsos da calça que vestira o rapaz e lá encontrava-se um bilhete. Marisa leu-o, como se fosse um poema. Olhou para o alto, agradeceu e pôs-se novamente a chorar.

Um ano depois Marisa dava entrada na sala do parto para, mais uma vez, dar à luz a uma nova vida. Quando dava o grito final relembrou-se do escrito no bilhete.

Mãe, não foste a culpada. Os desígnios de Deus são sempre incompreensíveis aos corações humanos. Obrigado pela sopa, estava boa, como sempre me habituaste.

Mãe…. voltarei, e vamos começar tudo de novo, desta vez rodeados de pessoas que confiam em ti e apoiem os teus sonhos

 

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