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“Todo o discurso humano é um discurso de trânsito”

O autor português Helder Macedo esteve no país, onde passou sua infância, para participar no debate “Literatura, Cultura e Identidades”, organizado pelo Camões. Nesta passagem, Macedo defende que a literatura é a transformação do efémero por uma coisa que possa permanecer, porque, na sua percepção, “todo o discurso humano é um discurso de trânsito”.

É autor de Tão longo amor tão curta a vida. O livro começa com a seguinte frase: “O facto é que sempre tive mais dúvidas do que certezas”. Como autor, é esta a ideia que lhe norteia e que lhe leva a escrever?

Sem dúvida, porque mesmo a afirmação da dúvida tem que ser posta em dúvida. Quer dizer, a razão pela qual se escreve ficção e não História ou reportagem é a margem das probabilidades e das dúvidas. O tipo de criatividade que há numa ficção é de mundos possíveis, de especulações. Portanto, está baseado na dúvida. Enquanto a ensaística, em princípio, lida com factos. Uma grande qualidade da escrita de ficção põe em dúvida a própria factualidade, o presente e o passado, e lida com alternativa. A literatura é um artifício a fingir que é a realidade.

 

Com propósito de atingir alguma meta?

Com o propósito de chegar a aquilo que num momento transitório a pessoa acredita que possa ser verdadeiro, mas sabendo que é transitório. Todo o discurso humano é um discurso de trânsito, como a própria vida das pessoas é uma passagem. O que se pode é cristalizar esses momentos. A literatura é transformação do efémero por uma coisa que possa, talvez, permanecer.

 

Neste Tão longo amor, uma entidade considera que é função dos escritores libertar as personagens e proporcionar-lhes futuros. Concorda com isso?

Sim, concordo… porque a vida é inconclusiva até morrermos. Não acredito no autor que sabe tudo sobre as personagens. Eu, enquanto romancista, sei o início do livro como hipótese. A partir de um terço do livro, é uma dialética muito complexa entre mim, o autor que está a tentar desenvolver aquela personagem, e essa insipiente personagem que quase como uma pessoa responde a coisas que não faz. Por outro lado, não se pode inventar uma personagem que nós não a tenhamos em nós em potência ou em potencialidade. Este é um jogo que, inclusivamente, tem a ver com silêncios.

 

Está a querer dizer que existe uma relação umbilical entre o autor e as personagens?

Existe uma relação de potencialidade. Em História vale a pena fazermos uma investigação para escrever sobre as coisas que, em princípio, são factuais. Um romance escrito por alguém que julga que sabe tudo que vai dizer, não vale a pena. O romance tem de ser especulativo e chegar a um fim inesperado e surpreendente em relação ao ponto de partida. Tem de ser uma tentativa de tactear no escuro, lidar com o desconhecido e de dar forma ao que está informe. Eu não seria capaz de escrever um livro que já sei o fim.

 

Então, como começa um livro?

Geralmente com uma frase, com uma proposta de personalidade ou com uma situação que permita que essa personalidade se desenvolva. Às vezes, com uma localização, mas sempre é algo embrionário. A partir de um terço do livro, há uma ruptura entre mim e o que escrevo, em que o livro organiza-se por si próprio. Um escritor ou um ficcionista é um louco, porque está a falar de gente que não existe, a falar de coisas que não estão a fazer e a tentar persuadir-se a si e aos leitores que aquilo tudo é verdade – isso em ficção, que em ensaística é outra coisa.

 

E por quê dar azo a essas loucuras?

Porque, às vezes, dizer as coisas tal como elas são é menos verdade do que as coisas que podiam ser e até como não são.

 

Em Tão longo amor existem tempos e espaços históricos que nos conduzem à segunda metade do séc. XX. Escreve tentando manter alguma memória?

Neste caso, não. O ponto de partida deste livro foi uma cantora que perdeu a voz. Isso torna-se metafórico. Ao transformar-se essa personagem numa cantora que perdeu a voz (onde e como isso vai acontecer? Onde se dão as divisões?), surge a metáfora da separação do muro de Berlim. Temos aqui uma transformação em factualidade. Seja como for, todos os escritores que se prezam ambicionam preservar uma memória, nem que seja a memória da sua perspectiva em relação a forma como vêem as coisas. Escrita e memória são coisas muito parecidas, porque nós imaginamos uma coisa que não aconteceu. E, quando falamos em memória, estamos a (re)imaginar coisas que achamos que aconteceram, mas não estão a acontecer. Nem o que se imagina e nem aquilo que a gente se lembra está a acontecer.

 

Isto parece filosófico ou contraditório…

Ou então poético… o que está a acontecer é muito difícil de exprimir em palavras porque é uma coisa transitória. A gente acaba a frase quando aquilo que estava a acontecer deixa de acontecer. Torna-se memória.

 

Logo, as palavras acabam sendo uma forma de tentarmos compreender…  

Sem dúvidas. E tornam-se num objecto – isto é um paradoxo – de abstractos que representam aquilo que, por definição, é memória ou imaginação, e que não está a acontecer. Um exercício que eu fazia com os meus alunos em Londres era o de lhes pedir que fossem a varanda observar o que estava a acontecer. Quando regressassem, a estória que contavam sobre aquilo que estava a acontecer era diferente. Um observava que havia um cão, outro via cortinas de um hotel, totalmente diferente, mas o momento era o mesmo, a rua era a mesma e os factos eram os mesmos.

 

A verdade é manipulável.

Ou então é um testemunho parcial. E depois há convergências de vários testemunhos. E é isso que, de alguma forma, cria a literatura de um tempo e de uma época: convergências de perspectivas que ajudam a configurar uma época, sem verdades absolutas, que isso é uma metáfora do desejo que haja verdades absolutas.

 

Ocorre-lhe usar as suas personagens para projectar um retrato social, por exemplo, aos seus leitores?

Isso aparece como uma consequência inevitável do que se escreve. Um escritor não existe fora do contexto ou em abstracto. Mas isso é diferente de literatura de intencionalidade política.

 

O que lhe fascina, quando um livro seu acaba?

É difícil responder. Mas sei quando o livro acabou. Eu não sou um escritor que explica demais, e uso muitos silêncios entre as coisas, deixando espaços para as coisas reverberar. Enfim, sei que um livro acabou quando uma personagem diz aquilo que a mim me satisfaz. Depois de acabar um livro, fico pelo menos um ano a não escrever esse género literário, porque há também o perigo de estarmos a escrever sempre o mesmo livro. Há escritores que passam a vida a escrever sempre o mesmo livro.

 

A sua escrita também mexe muito com África. Pedro e Paula é um exemplo disso.

Sim, porque estive aqui continuamente até aos 12 anos. As minhas primeiras memórias são moçambicanas, da Zambézia, depois do Sul do Save e Lourenço Marques, agora Maputo. Esses foram os meus anos formativos. As primeiras estórias que ouvi foram-me contadas por africanos, moçambicanos da Zambézia. Os primeiros pontapés na bola que dei – isto foi um grande orgulho meu – foi com instruções do Coluna e Costa Pereira. Gente séria! Gente boa! A minha formação é de uma infância passada em Moçambique. Isso foi fundamental para quilo que me tornei, o que não significa que me considero moçambicano, porque o contexto histórico era complemente diferente.

 

Em Pedro e Paula coloca Pedro, no livro, para representar a evasão dos que, como ele, tiveram que deixar parte de si ao sair de Lourenço Marques para Lisboa?

Sou muito contra o saudosismo colonialista, dos portugueses que sairam daqui e que falam com nostalgia de Lourenço Marques, do café Continental ou do raio que o parta como se a independência de Moçambique fosse uma traição a eles. Nesse sentido, acho que uso Pedro para representar aquilo que de mais negativo há nesse saudosismo colonialista.

 

Regressa a Moçambique para falar de literatura. O que encontra nesta viagem ao presente?

Não estive tempo suficiente, mas, como dizia na minha conversa com Borges Coelho, a mim interessa mais do que qualquer outra coisa a diferença. Vim a Moçambique com o desejo de ser surpreendido por coisas que não conhecia e não podia imaginar.

 

Já gora, como prevê o futuro da literatura escrita em português, considerando que, actualmente, não interage de forma categórica?

Se isso está a acontecer, é pena. O facto de podermos ler literatura estrangeira na nossa língua é um factor de enriquecimento. Você e eu temos uma vantagem em relação ao leitor culto inglês. Nós podemos ler Shakespeare, Eliot, Miller ou o que for. Mas eles não sabem ler Guimarães Rosa, Mia Couto e Camões. Nós ganhamos culturalmente. Mas se nós não tornamos essa diferença numa valia nossa, lendo em Moçambique os brasileiros e em Portugal os angolanos, aí empobrecemo-nos. O sentido que me parece extremamente importante de celebrarmos a língua portuguesa, que é nossa língua comum, é inclusivamente em termos de sobrevivência cultural de cada um de nós com as nossas diferenças específicas, uns em relação aos outros.

 

Helder Macedo também é ensaísta e crítico literário. Este campo da literatura ainda tem conseguido cumprir a sua função?

Estamos a passar por uma fase um bocado de crise da crítica literária e da ensaística. Em Portugal, por exemplo, a crítica literária nos jornais é muito fraca.

 

Sugestões de duas obras artísticas para os leitores do jornal O País?

Leiam Camões.

 

Perfil

Helder Macedo é escritor, poeta, ensaísta, crítico literário e professor universitário. Vive em Londres e, no passado, foi Secretário do Estado da Cultura, em Portugal. Nasceu em 1935, tendo passado a sua infância em Moçambique. É autor de vários livros, como Vesperal, Viagem de inverno, Pedro e Paula, Partes de África, Camões e a viagem iniciática, Tão longo amor tão curta a vida.

 

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