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Toda merda que ela faz, cheira-me a perfume!

Em 1965, foi considerado o poeta mais charmoso e sensível da televisão. Construiu o seu físico na Academia do Príncipe Real, bairro ao lado do seu. Com os seus exclusivos 1,85 metros de altura, esguio, moreno de olhos verdes, nada mais precisava para receber oficialmente o troféu de conquistador de mulheres. Quando saísse por volta das 7 da manhã, estava uma fileira de raparigas solteiras a acenarem-lhe com a mão, a partir das suas janelas, naquela rua tão estreita. Mesmo sendo casado, rumores corriam que, a ele lhe encantavam mulheres jovens e intelectuais. Casado há 20 anos com uma lavadeira, que ora tinha bigode ora não tinha, dificilmente podia enamorar-se no seu próprio bairro pois a sua sra passava os tempos livres à porrada com as suas supostas amantes.
 
Ninguém lhes percebia a relação. Os seus estudos, o gosto ávido pela leitura e pesquisa transformaram-no num fidalgo. Percebia-se a distância que existia entre ele e a sua sra lavadeira, embora tivessem ambos vindo de lares sem berço.
 
Se as suas amantes e verdadeiras musas eram legítimas fidalgas, o que precisava ele da lavadeira que lhe reduzia em público? Não tinham filhos. Por que é que ele não se perdia numa ida à tabacaria para comprar cigarros, por exemplo?
 
Uma coisa é certa: com as ditas musas, tinha relacionamentos fugazes. Era como que para alimentar o seu ego. E esse ego parecia prescíndivel de acordo com a sua disposição ou servia apenas para alguns compartimentos do seu cérebro já que em casa, quem partia, insultava e batia era ela. Qual era então o segredo do sucesso da lavadeira?
 
As putas gritavam: “Fode bem!”
 
As psicólogas elaboravam: “Há algum trauma que ele tenha sofrido na infância e que ela sabe gerir bem. Pode ser que o ambiente de abuso lhe seja mais familiar. Não se tendo libertado dele, só assim se sente verdadeiramente amado. Os abusos que sofre podem ser por ele interpretados como reflectindo o que é real. Viver o tradicionalmente belo e prazeroso lhe é desconfortável a longo prazo”.
 
As poetisas devaneavam: “O contacto constante com o que é triste e lúgubre faz dele o poeta que é. Um poeta deve por natureza ser cismático, mesmo que produza textos gáudios. A essência das coisas é melhor esmiuçada na angústia”
 
As advogadas disparavam: “Não faz sentido nenhum! Ele não deve ser o espertalhão que pretende transmitir. ‘o coração tem razões que a própria razão desconhece’ apenas serve para quem não chegou ao grau mais elevado da razão!”
 
As feiticeiras acertavam: “Ela enfeitiçou-o. Deu-lhe chá de calcinha, com especiarias vindas do oriente. Aquele amor é eterno, por mais que ele tente desfazer-se dele.”
 
Qual é a verdade? Como é que se processa o amor? É relativo?
 
Ouvi de gente que sabe decidir amar e deixar de amar. Outros acrescentam que amar é um processo, que, tal como todo ele, tem os seus procedimentos. Ou seja, nesta linha de pensamento, começa-se por se decidir amar e existem depois passos que se lhe seguem para se chegar ao resultado final. Adiante, haverá um outro processo para se nutrir o amor.
 
Uma outra doutrina defende que o amor começa a partir do momento que se encanta por alguém. Ao que, na vida, vai-se amando. O amor não é monogâmico. Monogamia é uma decisão contrária ao amor. Monogamia é baseada em decisão e não no amor.
 
Como era do conhecimento geral que Pedro Fonseca da Cunha Pantano era casado com uma encrenqueira, toda a sociedade portuguesa estava grudada à televisão para ver a entrevista mais pessoal que ele iria conceder sobre o seu casamento.
 
– É casado há 20 anos com Maria – a lavadeira. Alcunha que lhe foi atribuída devido a sua profissão.
– Sim, senhor!
– É feliz?
– Sou, sim senhor!
– Mas e os abusos de que sofre e se vêem reflectidos em alguns dos seus poemas?
– Sou feliz porque toda a merda que a minha Maria faz, cheira-me a perfume!
– … desculpe mas não está a relativizar o abuso doméstico?
– Não! Estou é a pôr em perspectiva a relatividade do amor.
– Está a defender que se pode admitir abuso doméstico?
– Não! Estou a dizer que o meu amor assim se manifesta.
– Mas não estará desta forma a desencorajar quem seja vítima de abuso doméstico a denunciar o crime?
– Não. Já lhe disse que toda a merda que ela faz, cheira-me a perfume! Quem sofre de abuso doméstico deverá com certeza denunciar o crime!
– Mas os crimes são definidos de forma objectiva, oh Pantano …
– Errado! Os crimes são definidos pela ocorrência de vítimas. Deverá haver uma relação de causalidade entre ambos!
– No seu caso, quando passara a ser vítima?
– Não me cabe a mim responder.
– A quem é que caberá?
– Ao universo!
– Enquanto o amor durar?
– Enquanto o cheiro a perfume durar.
Fim

 

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