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Tânia Tomé, entre a encenação da voz e o canto

Algumas vozes femininas na poesia moçambicana do século XXI (cont.)    
 
Tânia Tomé nasceu em Maputo em 1981 e publicou Agarra­?me O Sol por trás (2010, Índico Editores). Em 2008, realiza e produz o espetáculo “Poesia em Moçambique”, em tributo a José Craveirinha, onde todas as artes interagem para tornar vivo o poema. Introduz o conceito de Showesia (neologismo criado por ela), actuação com que faz espetáculo de poesia com uma banda de músicos, ao lado da qual Tânia canta e recita poemas, havendo dramatização da poesia, dança da poesia, entre outras componentes. Em 2009, lança o primeiro DVD de poesia em Moçambique, com base no espetáculo “Poesia em Moçambique”. Em seguida, lança oficialmente a página web www.showesia.com.

Talvez esta partilha entre escrita e oralidade/música/ encenação/actuação revele também um dos traços originais da escrita da poesia feminina moçambicana actual. Lembro outra recente voz ligada à música, de uma outra forma, Melita Matsinhe, de quem falarei noutra ocasião. Com efeito os poemas de Tânia Tomé oscilam entre a vontade do canto e a consciência da escrita numa desenvoltura criativa inesperada. O sentido da representação temática dilui­?se na força das imagens e na força de uma voz que se procura.
O seu primeiro livro surge com aparato gráfico inovador e os poemas terminam com o título no final em letras maiusculadas. Vejamos o início do poema de abertura:

Um murmúrio de vozes em uníssono no meio da noite desperta­?me,/os espíritos makwas kimoenes./E o sonho meio sonâmbulo desata­?se­?me: /escorro numa chuva de pálpebras, uma estrela azul e luminosa/ criva­?me/ o peito./Grilos, uma orquestra, trilo na sombra./ É Deus/ que fecha os olhos na cor do espanto/ para te ver? (11)

A força enunciativa desta voz feminina é plena de energia e os poemas, ora longos, com uma e duas páginas, ora mais curtos, parecem procurar esse lugar de origem em que a música se cruza com a palavra, e se desfaz e refaz nela: “Meu poema infinito/ Meu poema infinito/ tu escreves­?me tão bem:/esse amor todo nos teus dedos/ escrevive­?me exactamente/ como me sonhei // POEMIM” (41).

Simultaneidade na erotização do som/música e do corpo do sujeito lírico: “E tu comigo, cá dentro, lá fora/ amando­?me na medida do ritmo/ de um jazz cálido frenético./ Abraço do Índico, o piano/ atravessa as fronteiras que nos distam,/ recria o sopro do teu sax/ no meu corpo” (48).

No poema Poesia tu és o meu canto ou no poema Showesia –Poema vivo, notamos essa celebração do poema palavra que se desentranha do corpo, se mostra e canta, ganhando voz e quase autonomia:

(…) E dentro das palavras há melodia, dependurando­?se sobre as arestas do verso/e dançando os murmúrios constantes dos voos das aves//E o poema ganha rosto:/ uma árvores cheia de cabelos ao vento como teias de aranha/onde nos pés das raízes habitam os sarcófagos diversos no húmus da loucura/ E onde as mãos de asas são janelas/ por onde as pupilas escancaram o mundo entre os dedos// SHOWESIA –POEMA VIVO (17).

A sensualidade percorre a escrita/corpo e o som numa fusão quase total; somos surpreendidos por uma poesia que quer sair da página e ser som, e por um corpo que se quer transmutado em poema, enfim, uma procura da totalidade do som corporificada: “E como sou/onde me toca baixo/no nó que dá a carne/quando tem futuro/ no parto de um poema,/sob este rosto em mar vermelho/ onde redonda/diviso nas raízes as estrelas/ – ah, bendita a hora da posse! ARDO” (51).

A poesia de Tânia Tomé desvela uma dicção erótica e sinestésica, em que a reflexão sobre o fazer poético se revela sintonizada como desejo de entrega ao amor: “Não me salves, selva­?me” (17). Simultaneidade na erotização do som e do corpo do sujeito lírico: “E tu comigo, cá dentro, lá fora/ amando­?me na medida do ritmo/ de um jazz cálido frenético./ Abraço do Índico, o piano/ atravessa as fronteiras que nos distam,/ recria o sopro do teu sax/ no meu corpo” (48).

A poesia, oscilando entre palavra escrita e som musical, nasce do e com o entusiamo de um sujeito, que se descobre, também nascente, nela: “e não me perguntes/ quem é esta mulher/ que cresce comigo/ nas raízes profundas/ da flor do meu corpo” (30).

O segundo livro da autora, intitulado Conversas com a Sombra, (Showesia, 2011),  é um pouco diferente do primeiro. Junta a fotografia a uma escrita de registo dramático; o livro lê­?se entremeado de fotos de raízes de árvores antigas, é um cântico, unitário, em trinta e dois fragmentos, que começa por perguntar: “Quem serei do que fui? Olhava à volta. E o algodão/crescia­?me na carne, depressa como água/ na areia, como o sol esquenta na palhota/ da minha vida. Onde eu me exilei, eu/com mais meu futuro por vir.”

M’bique, abreviatura de Moçambique, é a figura (nação, mátria, mulher?) que motiva o longo poema que se estende, ora como exortação, ora num fluir reflexivo, que se alimenta do diálogo e da interpelação:
 
M’bique? Sim é a Moça da minha vida.
Sabor de cacana. Sabor amargo, mas que faz bem à alma,
cura­?me de mim, aquela dor de ser. (10)
(…)
Ah M’bique, falar dela é a emoção mais completa
que vibra no alto. No alto do grito.
No alto da estrela. Dentro.
Eu nasci com ela com todo meu acredito. (14)
 
       Escrito no feminino, em torno de uma biografia desejada e arquetípica, nascer, renascer, tornar o país mulher encanto, natureza gestante, recuperação do sonho, este longo poema mostra uma fusão entre a voz da lírica e narrativa, entre o singular e o plural do corpo social do país, em que o corpo feminino da nação e  da poeta  se sintonizam com os elementos naturais; os desejos de descoberta de sentimentos individuais e colectivos coincidem numa ligação e partilhas íntimas: “Quando eu conheci M’bique, eu nem apercebi. Vinha enredada em capulanas, até no rosto, as capulanas, como gaze. Nas suas mãos brilhavam inteiras as sementes. E éramos tantos, todos as desejávamos como fruta despida para comer. Desejando­?a em caroço para a ver”(42).

Um único poema-livro, organizado entre imagem e voz. Uma voz oral, dramatizada, que ganha presença e encenação. Um livro bastante diferente do primeiro. Que merece uma leitura mais demorada. Esta segunda obra é nitidamente mais discursiva do que Agarra­?me o Sol por Detrás, permeada de incursões narrativas, apresenta­?se com um fluxo mais dramático, interpelativo, mais reflexivo, numa palavra, um livro em que a lírica se recompõe em dramática escrita. Aguardamos outros livros….
Emmy Xyx, a desconstrução dos sentidos

Emmy Xyx, pseudónimo de Manuela Xavier, nasceu em Vila Coutinho, actual Ulóngwé na província de Tete em 1958. Publicou, entre outras, Espelho (prosa 2011), Contar Ser Gregos (2012), De Sol acções a Sol unções (2013) e Escritas na Mão do Mar à Ria (2015).

A poesia desta autora desafia o leitor pela sua aparente ausência de sentido. Fortemente moralizante e crítica, por vezes chegando ao descrédito de ser escrita, vive da desconstrução das palavras e dos significados. Mostra na sua herança literária alguns dos procedimentos retóricos que caracterizam a produção de Grabato Dias e de Filimone Meigos.

Alguns poemas mais longos, outros bem mais curtos, encenam proverbialidade e talvez até uma moral e, mesmo assim, também a desconstroem. A crítica é sobre os comportamentos femininos, sobre as emoções, sobre a corrupção social, económica e política. Erres de heróis: “Os erres dos heróis são apagados?/Os erres são livres de ficar?/Quantos erres tem o vento?/Quantos ventos tem o mar?” (32).

Manuela Xavier encena uma espécie de anti­?lirismo da sua escrita na procura de sentido numa sociedade e humanidade que não o têm. Assim os símbolos poéticos como a cotovia e a lua perdem­?se no novelo da serpente e na moeda de compra dos amores:

Cotovia: Fugida do inverno acústico/a cotovia/ acotovela a vizinha./ Serpentes em violoncelo/ esperneiam vozes/ que se espezinham. (17)
Frases da lua: Fazes da lua/tua amante/ cheia de novas faces/ as frases da lua endoidecem/ quem escuta/ num quarto/ crescem promessas/ noutro/ mínguam diamantes…(16)

Chama ardente: Acende esta ardente chama/ da união aquecida/ ao baptismo que clama/ a verdura pretendida.// Entre labaredas crescentes/ o laranja actua/ querendo livremente/ atingir a lua. (5)

O cepticismo da poeta implica a anulação de uma sintaxe racional, em que o sentido se ordena na frase, ou a mostra de um verso que produz “verdades”. Leia­?se nesta perspectiva o poema Degrau a Degrau:

Línguas coladas em reboco/ cimentam poisos articulados/ dívidas perdidas em cocos/ assumem dizeres em quaisquer lados.// E assim caminha a história/ de vontades, aspirações e crueldades/degrau a grau sobre a glória/ despida de consumos e de ver tardes. (27).

O que a poeta procura demonstrar nos seus livros é que a hipocrisia social e o lugar dos sonhos e das utopias é uma ficção sem sentido. Desta forma o desregramento das palavras, que se procuram numa irmandade rimática e aliterante, exibem a teatralidade da escrita, cujo sentido se esboroa, em cantantes sonoridades. Contar ser gregos:

Contar um dia ser gregos/ Contar segredos infinitos/ um por um, viver do rego/ em chuva de meteoritos// A gregória vem sem glória/ nesta quinta categoria/ contar ser gregos ou contar a história/ fica­?se nesta alegoria// Ser grego quem conta sem medo?/ Conta em que canto a saia curta?/ Consta que santo perdeu e cedo/ segrega ao poente a gula fruta.// Crer segredos /impôr degredos/ comungar de gregos/ desencontrar medos/ desapontar dedos/ segregar toledos/ contar cem gregos. (24).

Manuela Xavier usa a língua retirando­?lhe o poder organizacional, desmontando­?a e brincando ludicamente com ela como se fosse um puzzle, sem formas/ significados definidos, mas volvendo significante, som em formulação, em desconcerto. O leitor pergunta­?se, o que quer dizer esta escrita? Humor, distopia crítica, desarticulação dos sentidos, lúdica procura?
 
Entre Dedos: Entre dedos me passa o vento/ entre os lábios a frase se corta/ pela suavidade do convento/ a frase apareceu morta.// Se disse alegre pelo destino/ liberdade conquistada/ mata­?se a morte de um menino/ p’ra dar vida ao fim da estrada? (44)

Versos: Versos clonados/ esperam sua vez/ abominados pela sensatez (37).
Minha Estória: Minha estória entreguei/ ao mar ondulante/ o fato desarma o rei/ que conte a qualquer navegante! (42)
Milagre: Está o mundo a escancarar/ por instantes/ acorda o defunto/ do tubo de escape/ ventres se abrem/ por toques rasgantes/ dá­?se o milagre: mundos sonantes” (31)

Mas em um ou outro poema de Emmy Xyx espreitam a esperança e a harmonia do sentido, como neste  poema intitulado Chama Ardente, em que a cor do fogo parece reacender a pálida presença de uma lírica lua, desacreditada:  “Acende esta ardente chama/ da união aquecida/ ao baptismo que clama/ a verdura pretendida.// Entre labaredas crescentes/ o laranja actua/ querendo livremente/ atingir a lua.” (5).

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