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Suleiman Cassamo: a viva voz do conto*

Com um considerável atraso, Suleiman Cassamo desembarca no Brasil. O regresso do morto, que vem marcar a estreia do escritor entre nós, teve sua primeira edição em 1989, tempos conturbados em Moçambique. Passavam-se 14 anos da tardia independência e o país estava imerso nos sobressaltos de uma guerra que perduraria até 1992. Nesse período, a literatura, que tinha integrado o eufórico coro da utopia nos anos 70, já observava os desvios do sonho e as dificuldades do projeto nacional que a partir de 1964 mobilizara a luta armada.

Sem perder de vista a noção de originalidade que é condição da obra literária, Suleiman Cassamo nos traz, revitalizados, personagens que fizeram sua entrada na literatura produzida em Moçambique pelos poemas de José Craveirinha e Noémia de Sousa. Como nos poemas dos anos 50 e 60, os contos de O regresso do morto estão povoados pelos trabalhadores pobres da cidade, os deslocados do campo, os Magaíças a retornar do duro trabalho das minas sul-africanas, carregados de bugigangas, fantasia e a memória do desterro. Na narrativa que dá nome à coletânea, é um deles, o emigrado que vem da estranha terra do “Jone” a irromper na cena, trazendo uma das poucas imagens de alívio e alegria de toda a obra.

Optando pelo conto, modalidade literária bastante presente no contexto moçambicano, Suleiman Cassamo nos traz dez narrativas que compõem um instigante painel das diversas realidades abrigadas num conjunto espaciotemporal que se desenha para além das fronteiras que teoricamente dividiriam o colonial e o tempo da independência. São muitas e de muitas ordens as contradições que estão no centro das vidas que se movimentam nos diferentes cenários. A aproximar os personagens está a experiência da exclusão, que, em muitos casos, é temperada por actos violentos.

Física e simbólica, a violência constitui uma presença de relevo nas vidas que se representam em cada conto. De maneira intensa, ela toca a mulher, que está situada na ponta extrema da injustiça social e individual nessas sociedades em que a sobrevivência é uma luta diária, e tantas vezes fadada ao fracasso. Pelas narrativas de Cassamo, podemos observar como as personagens femininas condensam em si as duas pontas: a da dor e a da resistência. Os dois primeiros contos são exemplares desse lugar que tocado pela humilhação gera respostas insubmissas. Seus títulos – “Ngilina, tu vai morrer” e “Laurinda, tu vai mbunhar” – têm a mesma estrutura e traduzem uma espécie de ameaça que, ao se realizar, confere uma especial dignidade a inarredáveis destinos.

Sem se referir explicitamente ao colonialismo, o autor confronta-nos com a sua face mais cruel, trazendo-nos as gentes que ele explora e segrega e apontando-nos as suas mais profundas contradições. A brutalidade maior desse sistema talvez seja precisamente a sua capacidade de prolongar-se, arrastando-se para além do celebrado tempo das independências nacionais. E, assim, algumas das cenas não se identificam especificamente com os anos de vigência do sistema. A condição colonial ultrapassa os limites cronológicos e a tinta das iniquidades surge, por exemplo, na “caça” ao pão do já referido “Laurinda, tu vai mbunhar”. Intensamente marcadas, as imagens asseguram ao conto uma envolvente tensão, fazendo do contista, nas palavras de Júlio Cortázar, “um pescador de momentos singulares”.

Conhecedor dos riscos de uma avaliação superficial, Cassamo empenha-se em mergulhar em profundidade na rede armada pelo sistema e mostra como se amarram alguns de seus nós, dos quais não escapa o colonizado, dividido, ou melhor, emparedado entre os mundos em que cresceu. Em “Madalena, xiluva do meu coração”, na angústia de Fabião Neves, temos a machucada consciência de quem se vê perifericamente num mundo sem deixar de pertencer a um outro. A experiência da dualidade que se nota está longe do hibridismo suavizado por alguns discursos pós-coloniais. Sob a temática do dilaceramento amoroso, o enredo evoca, a célebre conferência intitulada “Cultura e colonização” de Aimé Césaire: “A colonização é esse fenômeno que inclui, entre outras consequências psicológicas a seguinte: fazer vacilar os conceitos sobre os quais os colonizados poderiam construir ou reconstruir o mundo.”

Erguendo-se das ruínas de uma sociedade, sobre as quais era preciso erguer outra, a voz de Suleiman Cassamo busca projetar na linguagem esse mundo feito de estilhaços, refratário às hipóteses de harmonia em que tantos africanos tentaram acreditar. Daí deriva uma escrita feita de pedaços, constituindo-se a partir de fortes imagens, apoiando-se numa sintaxe que contraria a norma da língua portuguesa. A expressão por ele cultivada elege como eixo um léxico que, mesclando ao português palavras e construções das línguas moçambicanas que fertilizam a língua herdada/imposta, faz da oralidade não um recurso, mas uma poderosa matriz. Na diversidade de tempos, de espaços, de enredos, o ritmo da oralidade assume a mediação e coloca-se como a face viva de um universo historicamente cindido. Isso explica o peso das lacunas na modulação da escrita. Montado com fragmentos, construído sobre e sob escombros, o mundo que emerge não pode prescindir da elipse como uma importante chave de estruturação.

Conferindo visibilidade a um conjunto de seres marginalizados, os “esquecidos” que desfilam pelas ruas de tantas cidades africanas, e não só, O regresso do morto supera os domínios da denúncia e apresenta-se como um fascinante trabalho literário. Vemo-nos diante de um exercício capaz de conduzir o leitor a um singular universo de sentidos, recordando-nos que a literatura nos permite ver aquilo que a vida, a um só tempo, mostra e esconde. Venha de onde vier.

*Texto extraído do prefácio de O regresso do morto, publicado pela editora Kapulana no Brasil.

 

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