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“Somos prisioneiros dos fantasmas do nosso passado”

A liberdade é um tema que preocupa Paulina Chiziane. Por isso, o novo livro da autora, O canto dos escravos, investe na libertação individual e colectiva como recurso fundamental. Falando do livro, Chiziane explica por que aposta, desta vez, numa obra em verso ao mesmo tempo que tece um comentário sobre a actualidade do país: “Somos independentes, mas os fantasmas do colonialismo ainda vivem connosco”. E a escritora não fica por aí, neste quesito, avança que a dívida externa pode acabar num neo-colonialismo que prejudique todos os moçambicanos. Para que tal não acontece, a escritora sugere que a luta pela liberdade seja cada vez mais permanente. Além disso, depois de ano passado ter dito que não voltaria a escrever, Paulina Chiziane volta a falar do assunto, com um esclarecimento aos seus leitores.

O canto dos escravos é título do seu novo livro, que aglutina, em 120 páginas, muitos séculos de História. Por quê?
Este livro foi inspirado no nosso hino nacional, que nos diz, a certa altura: “Na memória de África e do mundo”. Então, comecei a caminhar, em busca dessa memória e da nossa História. Primeiro, escrevi um texto muito grande, era massudo. No entanto, com esses anos todos que tenho de escrita, apercebi-me que, algumas vezes, a leitura de um livro volumoso é um privilégio de poucos. Fui comprimindo o texto até que aparecesse, agora, em verso, O canto dos escravos, no qual falo do percurso dos africanos no país e fora do continente. Com este livro celebro a existência do negro, da dor, da alegria e da esperança em seis capítulos, de modo a torna-lo um diálogo entre o passado, o presente e o futuro.

A Paulina Chiziane que temos neste livro parece mensageira da liberdade. Concorda com isso?
Não gosto da palavra mensageira. Os meus livros todos, se for a verificar, têm um denominador comum: a liberdade, da mulher, dos grupos socialmente silenciados, do pobre e de todas as coisas, embora os temas sejam diferentes. Eu canto a liberdade que quero para mim e para os que me rodeiam. Por outro lado, verifiquei que na verdade o planeta terra tem dois continentes africanos: uma África que é esta que temos aqui e outra na América. Mas não há comunicação perfeita entre as duas Áfricas. Por isso, o livro não é tão simples assim porque move sentimentos, emoções, pensamentos e vivências, colocando esperanças nesta vida de ser negro. Este livro é para todos, porque nas escolas falamos da escravatura apenas em duas linhas e mais nada.

Os escravos aqui parecem ser a metáfora de um cidadão oprimido. Quis que assim fosse?
É assim, eu não quero falar de metáforas. O que quero é dizer que esta realidade existe. O escravo, ao morrer ontem, de certeza que tinha um sonho, a liberdade que possuímos hoje. Portanto, sou independente hoje porque alguém um dia lutou, sofreu e morreu. Custa-me ver que, algumas vezes, deitamos fora esta independência e liberdade que temos hoje. E não estamos a ensinar o suficiente para que as novas gerações saibam que têm responsabilidades. Ter independência não é estar livre. Somos independente, mas os fantasmas do colonialismo ainda vivem connosco. Então, este livro também é uma chamada de atenção que pretende nos lembrar que a liberdade ganha-se e perde-se. Por exemplo, a dívida externa, não sabemos como foi contraída, mas pode vir a renovar um colonialismo ou mesmo uma escravatura contra o nosso povo.

E mesmo a propósito disso, uma voz do livro diz: “os colonos já se foram, mas deixaram capangas/ Fiéis guardiões dos fantasmas do passado”…
As pessoas em Moçambique têm medo, de dizer a verdade, de trabalhar e de dizer aquilo que não foi revelado. Os meus últimos livros provam isto, porque, com a sua publicação, levantaram-se vozes que falaram de proibições no lugar onde não existem. Nós somos prisioneiros dos fantasmas do passado. Por exemplo, quando estava para lançar O 7º juramento, algumas pessoas daqui de Moçambique escreveram artigos para publicar nos jornais de Portugal, de modo a frisar que “o que a Paulina escreveu não é propriamente a nossa cultura e nós não concordamos muito com esse tipo de escrita”. Mas, porque o livro ganhou uma vida própria, os capangas do passado tiveram que refazer os seus discursos.

Quem são esses capangas, esses escravos?
Alguns, são bem formados, mas a mente está presa, com medo de um patrão invisível. Não se libertam a si próprio e nem permitem que o seu povo se liberte também. O meu diálogo com o leitor neste livro é para uma autolibertação.

Como a Paulina vê a liberdade? É uma possibilidade?
Vejo como uma necessidade que se deve alcançar e preservar.

Por quê faz do canto, ao invés das armas, por exemplo, um instrumento propenso à liberdade?
Procuremos perceber como é que os negros que foram para a escravatura sobreviveram, vivendo numa tortura sem fim. O canto, a dança, são artes que preenchem o lado invisível do ser humano, fazendo do Homem muito forte. E quem for a ler atentamente este livro, vai perceber que alguns dos versos são letras de música, dá para ler e cantar.

Escreveu o livro chorando?
Não vou mentir. Até agora, há textos que leio e fico deprimida. Por exemplo, o primeiro texto do livro, “O testamento de um escravo”. Quando o leio, ainda divago no espaço. O último, “O canto de esperança”, também mexe comigo. É um texto que me coloca de pé e deixa-me com vontade de enfrentar o mundo.

E o que lhe faz pensar que o canto pode triunfar?
O canto não pode, vai triunfar, se cantarmos, resistirmos e estudarmos em colectivo. Se trabalharmos em conjunto, não haverá força que nos derrube. A liberdade é esta possibilidade de fazer com que a minha voz possa ser ouvida.

“Em nome da salvação conheci os caminhos da perdição”. Este seu verso é muito profundo.
É verdade, e qualquer negro no mundo pode-lhe dizer isto. É o discurso do opressor, uma realidade amarga.

Não teme que a chamem “escritora racista” pelo compromisso que este livro tem com Homem preto?
Já me chamaram vários nomes e não é isso que me vai preocupar. Pensar no que me vão chamar pode ser uma outra prisão, outra escravatura. Mas repara que não falei de raça, falei de genocídio. Agora, se o genocídio foi para os pretos, de que mais vou falar? Não se trata de promover xenofobia. Falo da humanidade.

O FIM DA ESCRITA OU O PRINCÍPIO DE UM RECOMEÇO?

Num dos programas que fizemos juntos, disse que já não voltaria a escrever e que estava farta de tanta incompreensão. Um ano depois, as prateleiras ganham mais um livro seu. Mudou de ideia?
Não, não mudei de ideias. Uma coisa é publicar e outra é escrever. Quando conversamos há um ano, já tinha esse trabalho pronto. Agora é que publico. Aliás, tenho uma série de trabalhos escritos, apenas à espera de ocasião para publicar. Escrever? Já chega.

Neste O canto dos escravos as entidades não cedem a qualquer tipo de submissão. Pelo contrário, lutam para ultrapassar dificuldades. Por quê a autora não teria a mesma persistência, nessa árdua tentativa de fintar o que a faz dizer basta à escrita?
Cansaço é um estado físico. A vista, a coluna, às vezes, cansam-se. E a vontade de escrever diminui. Às vezes, essas dificuldades são um motor. Mas quero agradecer a todos aqueles que não confiaram em mim. Sou daquele tipo de pessoas que, quando enfrenta uma dificuldade ou quando não é bem compreendida não desiste, porque acredita que um dia vai ser compreendida. Enfim, olhar para o computador, agora, hiiii…, cansa… Entre as mulheres que escreveram ou escrevem neste país sou das que trouxe mais polémicas e assuntos para reflexão. De Vez em quando é bom sossegar. Quando se fala muito da pessoa, às vezes, a mesma pode não se sentir em paz, por haver demasiada invasão da sua vida íntima. Enfim, acima de tudo, estou cansada e gostaria de convidar àqueles que um dia julgaram que estivesse enganada no meu percurso que mostrassem também a força que têm. O meu percurso foi feito de muita luta, sempre em busca da compreensão.  

Sente que ainda é alvo dessas “cotoveladas’ que existem na literatura moçambicana?
Ainda sou e agora piorou. Há pessoas que só ficam à espera de ver o nosso trabalho para apedrejar ao invés de nos aproximar para propor melhorias à nossa obra. Esse sentido de ajuda, colaboração, é o que gostaria de ver dos donos da língua.

Nos últimos livros seus temos uma escrita muito virada ao real. Deixou para o passado a ficção que calha em A balada ou em O 7º Juramento?
Todos os meus livros têm um denominador comum, o que muda é o crescimento. Apercebi-me que, se quero dialogar, tenho de ser curta, incisiva, breve e, algumas vezes, mesmo cesárea, reajustando-me de acordo com a minha experiência. E eu estou a escrever o que me apetece.

É o que é graças aos seus primeiros cinco livros. De tal forma que, por mais que não tivesse escrito mais, a sua marca continuaria bem registada. Se tivesse começado a carreira com os seus cinco últimos livros, acha que também seria essa menina do mundo que hoje merece tanto reconhecimento?
Não fiz nada de novo. Se for a ver a literatura de Noémia de Sousa e Craveirinha, fizeram este tipo de percurso. Noémia de Sousa fez denúncia e foi reconhecida dentro e fora do país. Não me venham dizer que é preciso escrever para agradar o outro, de modo que possamos ter reconhecimento. Sinceramente, acredito que teria reconhecimento da mesma maneira, porque reconhecimento é um produto de luta, não é nenhuma dádiva. Teria sucesso na mesma, pode crer.

Já agora, teve dificuldades de publicação ao longo desses anos?
Internamente, sim, mas fora não. E essa é outra parte da estória interessante. Tive muitas mais dificuldades no país do que fora, sempre. E continua assim.

Como é que Paulina Chiziane quer ser lembrada pelos seus leitores?
Sei lá. A única coisa que me dá alegria é saber que os meus livros são cada dia mais reconhecidos. E é muita sorte, porque há escritores que são reconhecidos só depois da morte. Eu não. Tive a oportunidade de olhar para traz e dizer que trabalhei e colhi. Para mim isso basta, o que vier virá. Não estou preocupado com o futuro. Se alguém leu o meu trabalho e inspirou-se, que faça melhor do que fiz. Há uma geração muito mais nova, com melhores tecnologias, que deve continuar a luta pela liberdade.

Uma luta pela liberdade que inclui perdão pelos que nos escravizaram. Por quê perdoar?
É preciso perdoar para limpar o coração. O ódio é um peso, faz mal à cabeça e destrói o relacionamento com o outro. É preciso perdoar, esquecer é que não.

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?
Que leiam O canto dos escravos, porque, quem quiser compor, até pode conseguir boas cantigas.

Perfil
Paulina Chiziane nasceu em Manjacaze, já lá vão 62 anos. Estreia-se em livro em 1990, com o lançamento de Balada de amor ao vento. O seu repertório literário inclui Ventos do apocalipse; O 7º juramento; Niketche; As andorinhas; O Alegre canto da perdiz; Na mão de Deus; Por quem vibram os tambores do além? Ngoma Yethu e, agora, O canto dos escravos. É Prémio Literário José Craveirinha e soma várias condecorações e homenagens, como Grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, pelo governo português. Em 2015, foi homenageada pela SOICO, pelos 25 anos de carreira e 60 anos de vida. Este ano foi homenageada no FliPoços, no Brasil, e condecorada com a Ordem do Cruzeiro do Sul pelo governo brasileiro, em Maputo.

 

 

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