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Se ligar e não me atenderes, bazo

O sol está em frente à garagem, quase a estacionar. Em quase todas estações, os dias exigem-lhe o mesmo vigor no cumprimento do seu papel na orquestra. Uma vez e outra fraqueja, muitas vezes chameja e queima tudo. Hoje foi um desses dias em que cumpriu a sua missão com brio. A pérola do índico aqueceu tanto que só uma caixa de geladinhas ajudou a sossegar as gargantas mais religiosas.

Vivemos todos numa competição desenfreada. Tudo depende do que o nosso ego nos pede. O meu sofrimento é maior que o teu. A minha alegria é maior que a tua. A minha tristeza é maior que a tua. Sou mais ético que tu. Às pessoas interessa sempre trazer à tona a parte má da história. As fofocas que nestes dias vêm se tornando questões de interesse nacional não são nada mais que uma estratégia que encontramos para nos sentirmos melhores que os outros. Perdemos horas que poderiam ser despendidas para coisas mais úteis a vilipendiar os outros. Todos afundamos cegamente no mesmo mar, inclusive eu que te escrevo.  

A natureza, também, interiorizou o nosso espírito competitivo. A noite prepara-se para dar início ao seu concerto. Está decidida a superar o dia. Se aquele se serviu do sol para dar o show, ela quer trazer mais que a lua e as estrelas. "O segredo de tudo está na inovação", dizem os mais sabidos. Enquanto a hora não chega vai aproveitando os últimos minutos para fazer as afinações.

Anita não queria perder o show. Quando tudo aconteceu passava quase uma hora desde que recebera a chamada que a dera a esperança de viver aquela noite como deve ser.

? Oiiiii – a rapariga atendeu o telemóvel com uma voz sensual, tentando fazer que cada i compensasse o período de espera que o seu interlocutor suportara para ser atendido.

? Te ligo não me atendes, qual é a cena? ? Perguntou o interlocutor com um ar chateado.

? Desculpa, Brito! Estou a cozinhar, a velha não está… ? respondeu a miúda com um ar de quem pedia desculpas sem se humilhar.

? Qual é a ideia mais logo? ? o interlocutor lançou a isca.

? Ah Brito, estás a me perguntar qual é a ideia mesmo? Por que és assim?

? Claro que estou a perguntar qual é a ideia! Ainda não me respondeste por acaso…

? Mas Brito é para eu dizer o quê? Tu é que és homem. Eu já te disse que estou a cozinhar, a velha não está. Só daqui a uma hora terei acabado tudo!

? Não zanga então, estava a fazer papo! As dzoito passo te pegar.

? Aonde vamos?

? Surpresa! Relaxa, vai ser uma cena doce. Mas vê se me atendes logo.

? Mas Brito eu disse que estava a cozinhar, era para eu fazer o quê?

? Arranja-te, boneca! Se ligar e não me atenderes, bazo …

Os pés molhados roçavam as chinelas à cada passo e faziam nascer um som molito. É como se um dos dois expressasse um sentimento que apenas aquele ruído inconfundível que vem do alto da montanha é capaz de exteriorizar. A rapariga chegou ao quarto. A caminhada cessou. A capulana que trazia amarada à cintura enxugou religiosamente os riachos no corpo negro e formoso. Enquanto vestia, pensava na panela de arroz que deixara a cozer no fogão. Fazia tudo às pressas, mais alguns minutos e Brito ligava. Os olhos não saiam do telemóvel.

Está quase tudo pronto, pensava ela enquanto caminhava apressadamente para varanda onde estava o fogão. Como sempre foi desde que recebeu a chamada do Brito, o telemóvel estava com ela. O vestido vermelho, apertado, que deixava o corpo mais salientado não tinha bolsos. Pelo que o brinquedo teve de vir na mão esquerda. Quando chegou onde estava o fogão, manteve o corpo distante para evitar que o vestido ficasse em contacto directo com o calor que o carvão libertava. Com um pano roto que andava por ali, sem tirar o telemóvel da mão esquerda, esticou os braços, pegou a panela pelas orelhas e levantou-a. Estava pronta para caminhar quando de repente sentiu algo a vibrar. A mão a assar na chapa da panela despertou o grito que saiu da boca e molhou os olhos que viram o telemóvel no chão, o arroz espalhado na areia e a panela vazia.

 

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