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Revisão Pontual da Constituição III – Outras questões

Na minha abordagem destaquei até aqui três questões, a saber: a da observância do n°2 do artigo 291, a da necessidade ou não da «dupla revisão» e a da composição dos Governos Provinciais, Distritais e dos Conselhos Executivos autárquicos.

De fora ficaram algumas questões cuja solução, não me parecendo muito problemática, caberia, sem grande controvérsia, no âmbito do trabalho de aperfeiçoamento e de garantir a coerência jurídica da própria Proposta de Revisão, trabalho a fazer-se na AR.

Mas pelas dúvidas e questionamentos que se têm levantado, e porque perfilho algumas delas, sou levado a crer que, provavelmente, subestimei o potencial de controvérsia que pelo menos uma dessas questões pode encerrar.

Trata-se do previsto na alínea h1) do Artigo 159 (Competências gerais), nos termos da qual,

«Compete ao Chefe do Estado no exercício da sua função:

…………………………………………………………………………………………………………………..

h1) nomear o Governador de Província, dentre os membros da assembleia provincial e de acordo com a proposta por esta submetida, nos termos da alínea d) do número 3 do artigo 270-K».

Por sua vez esta alínea d) do n°3 do artigo 270 estabelece que,

 «Às assembleias provinciais compete, nomeadamente:

……………………………………………………………………………………………………………….

d) submeter ao Presidente da República a proposta de nomeação do Governador de Província, apresentada pelo partido político, coligação de partidos políticos ou grupo de cidadãos eleitores que obtiver maioria de votos nas eleições para a assembleia da província;»

Sobre a inconstitucionalidade desta previsão, que desloca a titularidade da soberania do povo para os partidos, reitero o que já disse: é insanável e insusceptível de referendo.

O aspecto que deve ainda merecer atenção é o da própria formulação destes dispositivos. Formulação que carece, por um lado, de conformação com o conceito de descentralização em que assenta esta proposta de revisão constitucional, e, por outro, de rigor jurídico.

Da conformação com o conceito de descentralização

A descentralização consiste essencialmente no reconhecimento da prerrogativa de os cidadãos se organizarem para a solução dos problemas próprios das suas comunidades e de promover o desenvolvimento local através do aprofundamento da democracia, para isso elegendo órgãos deliberativos e executivos para a prossecução desses fins. É nisso que se concretiza «a autonomia dos órgãos de governação provincial, distrital e das autarquias locais» que o Estado consagra e respeita, nos termos do Artigo 8 (Estado unitário) da presente proposta de revisão pontual.

Significa que esses órgãos eleitos pelos cidadãos são autónomos, possuem uma legitimidade democrática directa e subordinam-se apenas à lei. Na esfera da sua actuação exercem poderes próprios e não por delegação do Estado, como acontece no caso de mera desconcentração.

Ora, estes órgãos, tanto os deliberativos como os executivos, que surgem no quadro da descentralização, são eleitos, não são nomeados. Com efeito, nestes casos, não há, não pode haver, lugar a nomeação, porquanto eles possuem uma legitimidade directa resultante do sufrágio universal directo.

Por isso é absurdo que se preveja a sua nomeação como prerrogativa do Chefe de Estado. Talvez o objectivo por detrás desta formulação “nomeação pelo Chefe do Estado” fosse o de salvaguardar, aos olhos dos cidadãos preocupados com a defesa do Estado unitário, que os seus receios estavam a ser tidos em conta.

Mas achamos que não era preciso ir tão longe. Senão vejamos.

Se o Chefe de Estado, actualmente, nomeia os Governadores, ao abrigo da alínea b) do n°2 do Artigo 160 da Constituição, é porque, nos termos do n°1 do seu Artigo 141, «O representante do Governo a nível da província é o Governador Provincial». Portanto, estes Governadores, os actuais, subordinam-se e respondem perante o Presidente da República, que os nomeou.

Com a presente Proposta de revisão pontual, a situação é bem diferente. Com efeito, vai-se completar, a este nível, a descentralização já iniciada com a introdução das Assembleias Provinciais no Artigo 142 da Constituição, provendo-as com o respectivo executivo, o que não fora possível fazer aquando da revisão constitucional de 2004 que consagrou essas Assembleias. Assim os Governadores deixam de ser representantes do Governo Central e passam a ser eleitos por sufrágio universal directo, tal como as respectivas Assembleias Provinciais, que já o são, e perante as quais passam a responder, e deixam de responder perante o Presidente da República que apenas lhes confere posse.

Após a eleição, estes órgãos, os Governadores, ou os Presidentes das autarquias, não são propostos á nomeação, eles são, eles foram, designados pelo sufrágio universal directo para tomarem posse ou serem investidos. Quem confere a posse não tem a prerrogativa de não a conferir, ou de a conferir a outros que não a quem foi eleito. Portanto não decide sobre a decisão já tomada pelo eleitorado, não nomeia, apenas limita-se a cumprir aquela decisão conferindo posse aos órgãos eleitos.

Pelo que deve ser necessariamente corrigido o texto da Proposta substituindo o conceito de nomear pelo conceito de conferir posse.

A mesma objecção vale para o previsto nos números 4 e 5 do Artigo 275 da Proposta. O órgão executivo da autarquia é dirigido por um presidente que será, propusemos nós, o cabeça de lista da lista mais votada, dos partidos, grupos de cidadãos, ou designado pela coligação pós-eleitoral com maioria de assentos na Assembleia. Do mesmo modo o Presidente da Assembleia não o nomeia, não tem esse poder, apenas lhe pode conferir posse.

Um ponto merece atenção: o sistema de cabeça de lista como o dirigente do executivo (Governador, Administrador, Presidente de Conselho Municipal) deve ser consagrado na Constituição bem como a provisão de que em caso de impedimento definitivo do cabeça de lista, a sua substituição é automaticamente feita pelo segundo da lista e assim por diante, retirando pois todas as virtualidades da “lista”. No que aliás é uma aplicação do mesmo princípio que neste momento vigora ao nível de deputados

Dos Governadores e dos Secretários de Estado nas Províncias

Como os Governadores, com a descentralização, passam a ser eleitos e deixam de representar o Governo Central, isto é o Estado, este precisa de garantir a sua representação por outra via, uma vez que continuamos , por definição, Estado unitário.

 Essa via é o Secretário de Estado na província.

É frequente o argumento de que tal vai criar conflitos. Para esclarecer este ponto é essencial entender a distinção entre funções centrais e funções locais. As funções centrais são aquelas que já na comunicação do Presidente da República foram citadas (funções de soberania, exemplo relações diplomáticas, delimitação das fronteiras, organização do território – uma Província não pode delimitar-se a si própria!). As funções locais são como regra aquelas que permitem aos cidadãos exercer o seu cometimento e empregar o seu talento ao serviço dos interesses comuns

A governação provincial, a exercer por quem tem maioria na Assembleia Provincial – e que em anterior artigo propus que fosse inclusiva dos outros grupos representados na Assembleia – ocupa-se de funções relacionadas em linha geral com o desenvolvimento local e prestação de serviços locais: assim para tomar um exemplo de como funciona o sistema vejamos os transportes públicos. Os grandes serviços de transporte terrestre ou aéreo que cobrem várias províncias são de âmbito central, que os pode realizar ou licenciar a privados, a governação provincial ocupa-se do transporte inter-provincial e as autarquias do transporte urbano e peri-urbano.

Por isso,  e para além de idiosincracias pessoais, não há confusão nem sobreposição de tarefas.

Por isso é-me difícil entender toda a controvérsia sobre a própria existência do Secretário de Estado como representante desse Estado unitário, que «respeita na sua organização e funcionamento a autonomia dos órgãos de governação provincial, distrital e das autarquias locais…», como se pode ler no Artigo 8 (Estado unitário) da Proposta de Revisão…Ou será que se deveria antes prever que as Províncias, os Distritos e as Autarquias, é que respeitam na sua organização e funcionamento, o Estado unitário, e nele designam seus representantes?!

O que seria um contra-senso porquanto nós estamos num processo de descentralização a partir de um Estado unitário (é esse o processo histórico), e não num processo de união ou de unificação a partir de Estados ou de entes autónomos….

Só posso tentar entender que as preocupações e perplexidades que se suscitam, prendem-se com os medos e preconceitos criados ao longo deste processo, sinuoso sem dúvida, sobretudo na fase que antecede a presente etapa.

 

Isso é consequência do facto de que, uns, temerosos da mudança e do futuro, apegam-se á História e ao passado de forma unilateral, esquecem a vertente e a vocação descentralizadora dessa mesma História e privilegiam apenas a vertente unitária fundacional, para se oporem ou resistirem à descentralização, nela identificando o perigo do fim do Estado fundado em 1975. Outros, face a essa resistência, e porque anteviram na descentralização a possibilidade de verem reconhecido, a nível local, os ganhos obtidos nas urnas, tomaram a descentralização como sua invenção e bandeira eleitoralista, e procuram ignorar ou desvalorizar toda a História passada, incapazes de ler a actual evolução como fase de um processo que tem as suas raízes nessa História.

Assim, o que deve ficar claro e expresso na Constituição, são as delimitações de competências, por um lado, do Governador e, por outro, do Secretário de Estado na Província. Sem qualquer hierarquização entre os dois, já que, no território da Província, um tem uma legitimidade democrática directa, o Governador, ao passo que o outro, o Secretário de Estado, tem uma legitimidade democrática indirecta, derivada do PR, titular da legitimidade democrática directa.

Se houver uma delimitação clara de competências e de esferas de actuação, e se cada um, o Governador, por um lado, e o Secretário de Estado na Província, por outro, se mantiver dentro das respectivas competências e esfera de actuação, será normal a coexistência institucional. Não temos porque vaticinar uma permanente conflitualidade, menos ainda uma conflitualidade insolúvel,

Claro que tudo isso exige uma mudança séria de mentalidade, da parte de todos nós. A Constituição e as leis, quanto mais claras e expressas forem, mais contribuirão para acelerar essa mudança.

Porém, agora que temos que tomar decisões, é imperativo que serenemos. É imperativo que o façamos distanciados desses extremos, para, com serenidade, e fora de calculismos eleitoralistas, regionalistas, tribalistas ou outros, tomarmos as decisões que sirvam o Povo, a Nação e o Estado Moçambicano, que somos todos nós, e que queremos continuar a ser.

 

Da tutela

Quanto à tutela administrativa do Estado, em princípio, deveríamos incidir a nossa atenção naquilo em que o previsto no Artigo 270-D(Tutela Administrativa) do texto da Proposta de Revisão fosse para além do  regime já estabelecido no Artigo 277 (Tutela administrativa) para as autarquias locais.

Nesta perspectiva, sem dúvida que o n°4 deste Artigo 270-D merece sérias reservas na medida em que contém formulações que podem abrir caminho para actuações que vão para além do controle de estrita legalidade. Com efeito, expressões de uma imprecisão tal como «abuso de autonomia», «que possa conduzir à violação grave da Constituição e das leis» ou actuar «de forma que ameace gravemente o interesse geral» ou “perturbe a satisfação das necessidades provinciais e distritais», não podem ser encaradas com ligeireza, sobretudo no prevalecente clima de medos, preconceitos e desconfianças cujas causas procuramos acima identificar.

Consideramos que neste domínio a Constituição deve operar com conceitos precisos, e  da maior objectividade, de forma a evitar-se qualquer arbitrariedade e subjectivismo. A Constituição não trata de possibilidades de violação da Constituição mas de violações da Constituição. Nem de ameaças ao interesse geral do Estado mas de actuações ilegais atentatórias do interesse geral do Estado. Nem de perturbações da satisfação das necessidades provinciais e distritais, mas de impedimentos ilegais à satisfação dessas necessidades.

Mais,

Finalmente, e embora a tutela de mérito já estivesse prevista no n°3 do Artigo 277 da Constituição, para as autarquias locais, sou de opinião de que, para se  eliminar ou reduzir a margem de arbitrariedade e de subjectivismo, deveríamos eliminar em definitivo do texto constitucional este tipo de tutela, retendo apenas a tutela assente no controle de legalidade.

 

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