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Releituras e/ou autores/livros de cabeceira (5)

PABLO NERUDA, de seu nome de nascença Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, é um dos maiores poetas da língua castelhana do século XX, nascido no Parral, Chile, em 1904.

Sobre a sua infância ele próprio comenta: “Começarei por dizer, sobre os dias e anos de minha infância, que meu único personagem inesquecível foi a chuva. A grande chuva austral que cai como uma catarata do Pólo, desde o céu do Cabo de Hornos até a fronteira. Nesta fronteira, o Far West de minha pátria, nasci para a vida, para a terra, para a poesia e para a chuva.”

Poeta e diplomata de carreira, possui uma vasta obra poética, entre a qual “Cem Sonetos de Amor” e “Confesso que Vivi”, livros da minha cabeceira.

Foi também um exímio declamador que até chegou a dizer poesia para mais de 100 mil pessoas, no Estádio de Pacaembú, em homenagem ao líder comunista brasileiro Luís Carlos Prestes. Há igualmente filmes em sua memória, os quais contam a sua história, como é o caso do “O Carteiro de Pablo Neruda”, realizado por Michael Radford.  Foi agraciado, em 1971, com o Prémio Nobel de Literatura. Também por ocasião do recebimento deste galardão, e a pedido do seu amigo, o então presidente do Chile, Salvador Allende, Pablo Neruda declama poesia para mais de 70 mil pessoas, no estádio nacional do Chile.

Poeta marxista e prosélito dos movimentos de libertação, Pablo Neruda preocupou-se sempre por uma abordagem poética que fosse uma interpretação dos sentimentos mais profundos da pessoa humana, quer sejam relacionados com o amor, os anseios, quer sejam com a luta dos povos pela autodeterminação e, por essa via, pela sua realização material e espiritual. É por isso que Neruda foi um poeta da humanidade, ou seja, um poeta dos povos oprimidos, do Chile aos quatro cantos do mundo; mas nem por isso a sua poesia deixou de ser altaneira e daquela qualidade raramente alcançada. Veja-se por exemplo este soneto:

Plena mulher, maçã carnal, lua quente,

espesso aroma de algas, lodo e luz pisados,

que obscura claridade se abre entre tuas colunas?

que antiga noite o homem toca com seus sentidos?

 

Ai, amar é uma viagem com água e com estrelas,

com ar opresso e bruscas tempestades de farinha:

amar é um combate de relâmpagos e dois corpos

por um só mel derrotados.

Beijo a beijo percorro teu pequeno infinito,

tuas margens, teus rios, teus povoados pequenos,

e o fogo genital transformado em delícia

corre pelos tênues caminhos do sangue

até precipitar-se como um cravo noturno,

até ser e não ser senão na sombra de um raio.

Este é um dos poemas do livro “Cem Sonetos de Amor”, constituído essencialmente por poemas de amor, com todos aqueles sentimentos à ele adstrito. Nele o poeta disseca o amor em todos os seus ângulos, manifestado nos três períodos do dia, ou seja, nas manhãs, nas tardes e nas noites; porque, realmente, o amor tem sempre as suas particularidades em função da rotação do mundo. Ele, o amor, adquire e confere formas ao espírito humano à medida que as manhãs e os crepúsculos se vão sucedendo.

“Confesso que Vivi” é um livro autobiográfico que retrata algumas memórias ou “façanhas” do autor pelo mundo fora, vividas com muita intensidade, características, aliás, dos grandes poetas. É ele próprio quem o diz: “As memo?rias do memorialista na?o sa?o as memo?rias do poeta. Aquele viveu talvez menos, pore?m fotografou muito mais e nos diverte com a perfeic?a?o dos detalhes; este nos entrega uma galeria de fantasmas sacudidos pelo fogo e a sombra de sua e?poca.”

Pablo Neruda nos lembra que a vida não é tão linear quanto parece. Ela é intermitente enquanto dura, aliás, como a própria memória. Com ele aprendi que a vida deve ser vivida sem adiamentos, com todos aqueles pruridos que lhe são característicos, mas também sem mundanismos daqueles que até a própria poesia se rebela e levanta o seu voo em busca de outras coordenadas. E um poeta deve ser um inventor de estrelas, um inventor de mundos passíveis de ser habitados com humanismo e solidariedade e, por isso mesmo, que induzam à vontade e alegria de viver. Um poeta, mesmo nos momentos mais ruins do processo da vida, deve procurar viver feliz na sua condição de vanguardista da felicidade individual e colectiva. É por isso que Pablo definiu a sua vida nestes termos: “Minha vida e? uma vida feita de todas as vidas: as vidas do poeta.” Este poeta militante, de todos os tempos e lugares, que “nasceu para brandir os golpes” e que a sua pátria também lhe deu palavras para denunciar “os pálidos vermes” saqueadores da vida, oiçamo-lo novamente:

 

X

Serão nomeados

Enquanto escrevo minha mão esquerda me reprova.

Me diz: por que os nomeias, que são, que valem?

Por que não os deixaste em seu anónimo lodo

de inverno, nesse lodo em que urinam os cavalos?

E minha mão direita lhe responde: “Nasci

para bater nas portas, para brandir os golpes,

para acender as últimas retiradas sombras

nas quais se alimenta a aranha venenosa”.

Serão nomeados. Não me entregaste, pátria,

o doce privilégio de nomear-te

apenas em teus alhelies e tua espuma,

não me deste palavras, pátria, para chamar-te

apenas com nomes de ouro, de pólen, de fragrância,

para esparzir semeando as gotas de orvalho

que caem de tua negra cabeleireira imperiosa:

me deste com o leite e a carne as sílabas

que nomearão também os pálidos vermes

que viajam no teu ventre,

os que acossam o teu sangue, saqueando-te a vida.

(In o Canto Geral, 1950)

Que culpa tenho eu de gostar de poetas revolucionários como Pablo Neruda? Que me importa a mim se, nos tempos em que vivemos, os termos “revolucionário”, “comunista” ou “marxista” foram esvaziados do seu real sentido humanista e futurista? Que importa tudo isso se, aliás, a poesia (do “Eu” colectivo) é o centro da essência colectiva, e está sempre acima de quaisquer ideologias sejam elas a esquerda ou a direita? A verdade, porém, é que estamos perante um dos clássicos não só da poesia ibero-americana como também da literatura universal.

Pablo Neruda, também político e membro do Partido Comunista Chileno, morreu em 1973, aos 69 anos de idade, em Santiago do Chile, aparentemente vítima de cancro de próstata. Mas as causas da sua morte continuam polémicas, dado que ele morreu  num momento conturbado em que o Chile vivia, na sequência do golpe militar que levou ao poder o ditador Augusto Pinochet.

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