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RELEITURAS E/OU AUTORES/LIVROS DE CABECEIRA (4)

LUÍS BERNARDO HONWANA, contista e ensaísta, nasceu na então Lourenço Marques (hoje Maputo) em 1942. Jovem de um talento surpreendente, Honwana publicou o seu primeiro livro “Nós Matámos o Cão Tinhoso” em 1964. É considerado um dos precursores da literatura moçambicana, portanto, em outras palavras, ele é o “pai” da moderna narrativa moçambicana. “Nós Matámos o Cão Tinhoso” é um dos livros moçambicanos mais célebres a nível nacional e internacional, e consta da lista dos melhores livros de autores africanos do século XX. É, por assim dizer, indiscutível que seja um dos livros de maior referência em toda a história da literatura moçambicana.

Após a proclamação da independência nacional, o “Nós Matámos o Cão Tinhoso” foi uma das obras literárias mais importantes no processo de implementação do novo sistema nacional de educação, a todos os níveis, em Moçambique. Eu próprio, e toda a geração literária a qual pertenço, alargamos o nosso imaginário criativo em contacto com o “Nós Matámos o Cão Tinhoso”. Contos como “As Mãos dos Pretos”, “Nhinguitimo”, o próprio conto que dá título ao livro, entre outros, se por um lado, são metáforas duma realidade caracterizada pela dominação e opressão coloniais, por outro lado, são a descrição fiel de várias situações existenciais complexas, características dum mundo, de per si, repleto de contradições. Ademais, são textos que estimulam a qualquer um, seja ele criança ou adulto, aquele imaginário, sem fronteiras, que muitas das vezes nos acompanha a noite adentro, fazendo parte do fluxo de perguntas e respostas ante a problemática da nossa condição humana. E é por isso mesmo que o “Nós Matámos o Cão Tinhoso” é um livro de dimensão universal.

Luís Bernardo Honwana é também autor de outras obras, entre elas, ensaios sobre a cultura moçambicana, alguns dos quais reunidos no livro “A Velha Casa de Madeira e Zinco”. Lendo estes ensaios de cariz eminentemente cultural e político, munimo-nos de elementos fundamentais não só para uma melhor compreensão da nossa história recente como, igualmente, dos caminhos possíveis para a edificação duma sociedade com uma identidade própria que seja resultado dos esforços de integração no projecto nacional, sempre actual, da diversidade que caracteriza o nosso Moçambique. São dele estas palavras: “Mas nesta busca valha-nos a certeza de que a coesão que queremos construir será mais forte à medida que, sem forçarmos a obliteração das particularidades de origem, cultura ou etnicidade, for crescendo em cada indivíduo, em cada comunidade, a importância e a extensão daquilo que temos por referência nacionais – valores, crenças, percepções, narrativas, mitos, aspirações, criações do espírito, realizações colectivas – tudo aquilo que, sendo produto da história e da socialização, a todos se imponha como património comum, independentemente da zona do país em que se tenham produzido e da língua em que são propostos e do grupo que primeiro os perfilhou”.
 
Reflectindo sobre o uso da língua portuguesa como instrumento de expressão e realização literárias por parte dos escritores moçambicanos, Luís Bernardo assegura que “kPodemos com orgulho dizer que temos sabido realizar na nossa prática a dimensão nacional que faz com que os nossos concidadãos se reconheçam nas nossas criações. Isso significa que a nossa literatura embora se veicule em língua portuguesa tem tido a preocupação de incorporar e assumir – e se assumir – como o repositório de conteúdos, visões e mundivivências que normalmente se exprimem no universo de outras línguas moçambicanas.” Com efeito, para Luís Bernardo Honwana, o facto de os escritores moçambicanos se exprimirem em língua portuguesa, nem por isso deixam de veicular, com fidelidade, a cultura, o imaginário e a realidade do seu povo, ao qual pertencem de corpo e alma.
 
Numa outra meditação, desta feita, de cariz político, e tomando em conta que em qualquer processo histórico há sempre alguma(s) “urgência(s)” de momento, Luís Bernardo Honwana, debruçando-se sobre a necessidade do debate público dos problemas do país, diz que “São muitos e variados os diagnósticos que estas discussões acabam por oferecer mas as soluções que também se propõem tendem a convergir, em primeiro lugar para a urgência da paz, dada a total sem-razão da guerra e a sua inaceitabilidade como forma de dirimir pendências políticas no processo de funcionamento de um país. Outro ponto comum nas soluções preconizadas é a necessidade de revisão do próprio modelo de desenvolvimento do país, pois as desigualdades e a exclusão, pela dimensão que atingem, só podem ser consideradas como sendo de natureza sistémica – e a sua incidência na tensão político-militar não pode ser ignorada.”

É muito interessante a crítica que o Luís faz à sociedade com relação ao significado e o lugar reservado à cultura em muitas das nossas mentes, algumas até associadas ao poder político. Em nota de autor ao seu livro “A Velha Casa de Madeira e Zinco”, Luís Bernardo ironiza mas com uma indisfarçada dor no seu imo: “Tipicamente, os nossos comícios começam pela ‘cultura’, isto é, pela actuação de grupos de canto e dança. Quando as pessoas estão suficientemente animadas o comissário pega no microfone, despede os músicos e bailarinos, dá os ‘vivas’ e ‘abaixo’ apropriados e anuncia ao dirigente que o povo está pronto para ‘receber orientações’. Por piada (a gente faz piada de tudo…) o que se entende do gesto do comissário é que há que mandar sair a cultura – tal como se diz às crianças para irem brincar lá para fora – logo que se vá passar às coisas sérias.”

Este escritor, profundamente comprometido com o seu país desde a sua juventude, em 1964 foi preso pela PIDE – a polícia política do colonialismo português – tendo permanecido na masmorra durante 3 anos, pelo facto de se ter associado à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), com o propósito de libertar o seu país do jugo colonial. Homem reservado e de uma sólida e invejável cultura geral, Luís Bernardo Honwana desempenhou igualmente vários cargos públicos, entre os quais, o de Ministro da Cultura de Moçambique. Actualmente, para além da escrita, dedica-se à questões ligadas à preservação ambiental e à conservação da biodiversidade, através da Fundação BIOFUND.

 

 

 

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