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Releituras e/ou autores/livros de cabeceira 3

Sophia de Mello Breyner Andresen é uma das mais importantes poetisas ou, se se quiser, poetas de língua portuguesa do século XX. Criada numa tradicional família aristocrata portuguesa, viu a claridade do dia a 6 de Novembro de 1919 no Porto. Dinamarquesa de origem, pelo lado paterno (Andresen), frequentou o curso de filologia clássica na universidade de Lisboa.

Senhora duma extraordinária sensibilidade poética, Sophia tem uma vasta obra literária, entre poesia, ficção (incluindo contos infantis), teatro, traduções, ensaio, e é duma dimensão tal que quase toda a sua obra considero-a de leitura obrigatória. Traduziu para a língua portuguesa autores como Shakespeare, Dante, Claudel, entre outros.

Conheci pessoalmente Sophia de Mello no longínquo ano de 1989, em Lisboa, aquando do primeiro congresso de escritores de expressão portuguesa. Lembro-me que foi numa tarde, depois de uma das sessões do congresso, que ela decidiu convidar alguns escritores, entre os quais eu próprio e o angolano Luís Kandjimbo, à sua residência, no Largo da Graça, para uma cavaqueira regalada com um bom vinho e alguns versos à mistura. Depois acabamos nos tornando amigos e passei a visitá-la regularmente, tendo então se transformado numa espécie de orientadora minha em matéria de leituras. Sophia teve, por isso mesmo, uma grande influência não só na minha formação literária como também na minha própria abordagem poética.

Aprendi com Sophia que um poema é aquele que encerra uma moral em si mesmo, porque, na verdade, a busca da poesia é a busca do equilíbrio do ser com as coisas. E é aqui onde reside a unificação entre “as leis” da ética e da estética na literatura. No seu texto “Arte Poética III” Sophia aborda esta questão da seguinte maneira: “E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética. Vemos que no teatro grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras.”

Realmente, as leis que regem a poesia são as mesmas leis do equilíbrio intrínseco das coisas, do ordenamento harmonioso que emerge de dentro para fora do poema; por isso, ainda em “Arte Poética III” diz Sophia: “A moral do poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de nenhum programa que lhe seja exterior, mas, porque é uma realidade vivida, integra-se no tempo vivido. E o tempo em que vivemos é o tempo duma profunda tomada de consciência.”

Sophia ensinou-me outrossim a aguardar pacientemente pelo poema. Um poema não se busca, não se força a qualquer custo só para passar a constar do papel. Um poema não é um meio, mas um fim em si mesmo. Um poema é quando é para ser, um poema acontece quando é para acontecer. Em “Arte Poética IV” Sophia explica: “Ninguém me tinha pedido um poema, eu própria não o tinha pedido a mim própria e não sabia que o ia escrever. Direi que o poema falou quando eu me calei e se escreveu quando parei de escrever. Ao tentar escrever um texto em prosa sobre a minha maneira de escrever «invoquei» essa maneira de escrever para a «ver» e assim a poder descrever. Mas, quando «vi», aquilo que me apareceu foi um poema.”

 

Há quem tenha definido a poesia como “uma especialização de espírito, uma forma peculiar de educação”, mas Sophia, como que a corroborar com esta definição, inverte simplesmente os termos da mesma equação afirmando, em “Arte Poética II”, que “A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu a posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna.” Com efeito, e muito acertadamente,  uma “arte do ser” é justamente uma especialização do espírito, e não uma especialização técnica e/ou artesanal. Portanto, as duas definições que aparentemente parecem ser contrárias uma da outra são, na verdade, uma e mesma coisa, quando direccionadas na perspectiva do ser como sujeito poético.

É interessante notar que esta aristocrata desde cedo interiorizou e assumiu o amor ao seu país, chamou para si a dor e solidariedade para com a maioria esfaimada e desfavorecida da sua pátria, aprendeu a decantar a verdade da mentira, como, aliás, se pode depreender no poema a seguir:

Pátria

Por um país de pedra e vento duro

Por um país de luz perfeita e clara

Pelo negro da terra e pelo branco do muro

 

Pelos rostos de silêncio e de paciência

Que a miséria longamente desenhou

Rente aos ossos com toda a exactidão

Dum longo relatório irrecusável

 

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

 

E pela limpidez das tão amadas

Palavras sempre ditas com paixão

Pela cor e pelo peso das palavras

Pelo concreto silêncio limpo das palavras

Donde se erguem as coisas nomeadas

Pela nudez das palavras deslumbradas

 

– Pedra rio vento casa

Pranto dia canto alento

Espaço raiz e água

Ó minha pátria e meu centro

 

Me dói a lua me soluça o mar

E o exílio se inscreve em pleno tempo.

 

(In 'Livro Sexto’)

 

Dona de uma inteligência e cultura singulares, e de “um obstinado rigor” na arquitetura do poema, Sophia de Mello Breyner Anderson, agraciada, entre outros, com o prémio Camões (1999) e prémio Rainha Sofia (2003), morreu em Lisboa a 2 de Julho de 2004. Seu corpo repousa, desde 2014, no Panteão Nacional.

 

 

 

 

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