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Releituras (13) – carta aberta a Deus

ROBERT ESCARPIT (França, 1918 – 2000) foi um académico, escritor e jornalista. Publicou vários livros entre artigos científicos e romances de ficção. Um dos livros que me interessou, aliás, o único que li deste autor, chama-se “Carta Aberta a Deus”, edição portuguesa (Editorial Pórtico, Lisboa, 1971, tradução de José António Nunes de Carvalho, 140 páginas).

 

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As minhas preocupações existenciais remontam ao tempo da minha adolescência. Minha mãe era religiosa, frequentadora assídua de uma das igrejas da família dos protestantes, praticadas em Nauela. Sempre que ela me convidasse a acompanhá-la à Igreja eu apresentava “dificuldades” de vária ordem, tudo para escapar da difícil tarefa de ter que me fazer à casa de Deus. O mesmo acontecia com meus amigos e outros familiares que também me convidavam à igreja católica. Aliás, Nauela tem o histórico de ter sido um dos centros das missões tanto das igrejas protestantes quanto da igreja católica, a nível da Zambézia. Portanto, era embaraçoso, do meu ponto de vista, ir a uma Casa cujo Dono era todo poderoso e sem igual. Confesso que essa ideia me apavorava bastante. Isto é, era um misto de pavor e resignação.

Sendo Ele omnipresente, liberdade em potência e acção, eu receava que eventualmente Deus me perguntasse, ainda que silenciosa e secretamente, se eu o amava ou não. E isso certamente seria complicado para mim, uma vez que não saberia responder ao certo, e com a sinceridade e honestidade requeridas, sem temer pelas possíveis represálias. Porque dele eu só sabia que era Dono do mundo e de todas as coisas nele contidas. Por isso, senti que necessitava de tempo para interiorizar com profundidade a noção da sua existência, antes dessa importantíssima visita à Casa do tão Ilustre e Invisível Anfitrião. Daí em diante passei então a cogitar sobre Ele e a possível relação entre mim e Ele, exercício esse que se mantém até aos dias de hoje.

Tenho dito vezes sem conta que sou um agnóstico em matéria de religião e quejandos. Nunca tenho certeza de nada, principalmente em assuntos tão complexos quanto os da Fé religiosa. Em brincadeira com os meus próximos, tenho dito igualmente que se fosse para fundar uma igreja esta chamar-se-ia de “Igreja da Dúvida”. Mas também não me parece que a igreja seja o único lugar de encontro com Deus, sendo este omnipresente. Ocorre-me agora citar aqui a famosa afirmação de Sócrates: “Só sei que nada sei”. Por conseguinte, nunca pus em causa a existência desse Ser Supremo, e também nunca fui um devoto da sua existência. Ou seja, sou uma espécie de anfíbio, esse espécime ora vivendo na água ora na terra. Tanto me sinto bem com aqueles que o acreditam quanto com aqueles que não o apoiam. Assumo que a vida é uma viagem estonteante e, como tal, Deus afigura-se-me simplesmente como uma possibilidade.

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Voltemos ao livro de Escarpit, “Carta Aberta a Deus”. É uma daquelas obras que só se sugerem a alguém com a mesma linha de raciocínio, aliás, por razões óbvias. Pessoalmente li-o sugerido apenas pelo seu título. Para quem se interessar digo apenas que é um livro que deve ser lido de consciência livre e sem preconceitos de espécie alguma. A busca pela verdade exige-nos abertura total de mente e espírito. Independentemente das nossas vertigens, a realidade é hirta, alheia e impassível! Cada um de nós, dentro da sua liberdade, faz dela o que melhor lhe aprouver. Por conseguinte, Deus é, em última análise, uma manifestação individual. E é por essa razão que não posso ignorar e muito menos repudiar aquilo que meus semelhantes têm por verdade inalienável.

Na “Carta Aberta a Deus” Escarpit começa com uma advertência ao suposto portador que, neste caso, é o director geral das telecomunicações: “Confio-lhe esta carta sem a franquia e suponho que o destinatário deverá pagar multa. Ele não regateará. Conheço-lhe a reputação: se lhe perdoar a franquia, retribuir-lhe-á cem vezes mais.” (p.9)

O autor adverte ainda àqueles que eventualmente o lerão já com ideias preconcebidas, com laivos de radicalismo, digo eu, nos seguintes termos: “Não tenho interesse algum em ser lido pelas pessoas que lêem com um só olho, o esquerdo ou o direito, é indiferente, ser-me-á desagradável ouvir dizer que este livro é um chorrilho de blasfémias pretensiosas e primárias, e ainda me custará mais ouvir dizer que Escarpit está a deixar-se levar pelos padrecas, que mudou muito, que já tínhamos previsto isso há muito tempo.” (p.11)

Depois disso, Escarpit entra já na parte do diálogo directo com Deus, confessando que, “Dito isto, não penseis que tento iludir as obrigações que tenho para convosco. Que eu creia ou não em vós não é de importância capital, mas o facto é que necessito de vós, nem que seja como tapa-buracos.” (p.15)

Mais adiante o autor afiança desconfiar que Deus seja um intelectual de esquerda. E a razão desta desconfiança está no facto de ambos desejarem ardentemente a revolução. “O intelectual de esquerda tem tanto mais coragem quanto mais se apega às suas ideias. É tudo o quanto tem a mais que os outros e é muito.” E diz mais: “Não me surpreenderia se houvesse no Paraíso muito mais comunistas que padres.” (p.25/26)

Robert Escarpit compara a intencionalidade de Deus com a de Marx, cuja comunhão de atitudes corresponde a uma certa convergência dessas intenções, “Com bastante lógica e mesmo bom senso, Marx coloca a realização do fenómeno humano nos próprios homens. Mas vós recuais diante dessa lógica, temendo que ela vos deixe de fora e vos condene à inutilidade (…).” (p.28)

“O vosso achado, há dois milénios, foi o de vos proclamardes simultaneamente imanente e transcendente e dissimulardes a incompatibilidade dessas duas naturezas sob o véu do mistério sagrado. Top secret. É proibido compreender. Streng verboten!” E explica mesmo que “É isso que o diabo não vos perdoa. Ele quer compreender.” (p.29). Mas Escarpit não quer saber se compreende ou não, o que lhe interessa, isso sim, são os resultados e não os métodos. É a isto o que se chama de “pragmatismo existencial”. E a vida exige justamente isso.

Em contrapartida, diz Escarpit, “Ser da direita é não ser nem humilde nem modesto e, sobretudo, nunca o confessar, nem a si próprio nem aos outros. É pertencer a um sindicato de interesses que disfarça a vontade de domínio universal sob uma ideologia geralmente piedosa, por vezes sedutora e sempre brilhante.” Por isso, diz ele a Deus para não se espantar por, nestas condições, o pensamento político dominante ao longo de séculos ter sido quase que exclusivamente o de direita. (p.35)

Num outro capítulo, Escarpit, consciente da não abrangência em todos os cantos do mundo, pergunta a Deus se, por ventura, não sente já a ironia patética de um ecumenismo que só respeita uma parte apenas das terras habitadas pela humanidade, enquanto o seu nome pretende abranger e designar todo o conjunto da humanidade, e o autor justifica que “Mesmo que os cristãos conseguissem restabelecer a unidade, ainda que cristãos, judeus e muçulmanos descobrissem que adoram sob três nomes um único e mesmo Deus, as terras que habitam só representam uma fracção da terra dos homens.” (p.52)

Dizia alguém que leve o tempo que levar, o homem conhecerá Deus! Como que a fazer jus a isso, Robert Escarpit tem a esperança de que, “chegaremos a conhecer a vossa criação melhor que vós próprio a conheceis, porque a teremos recriado átomo por átomo, segundo por segundo, com as nossas mãos e cérebros.” (p.82)

Diz ele, Escarpit, que qualquer atitude religiosa é primeiro uma atitude de culpa. E que a oração começa pela purificação. “Claro que cometemos todos, dia a dia, erros de comportamento de que podemos sentir-nos responsáveis, mas de que poderíamos ser colectivamente responsáveis como homens?” (p.90/91)

“Quanto ao assunto da maçã, devíeis ter plantado a árvore noutro sítio ou não ter criado Adão à vossa imagem.”

“Se queríeis que o homem continuasse no estado de inocência, não devíeis ter posto ao seu alcance os meios e, nele, a ambição de sair dele.” (p.91).

Escarpit não acredita no amor universal. Isto é, para ele não é possível amarmo-nos uns aos outros simultaneamente. “É possível amar-se uma coisa ou pessoa sem se recusar outra?”

 “É possível amar ao mesmo tempo em muitas direcções, mas como amar em todas as direcções simultaneamente? Como amar tudo? O amor universal é a universal indiferença.”

“Eu compreenderia muito bem que não amasseis o diabo. Também não gosto dele e tenho tendência para preferir-vos. Amar é preferir.” (p. 113/114)

Escarpit termina o livro pouco se importando se Deus é produto mais ou menos mórbido das suas angústias ou uma realidade que se desenrola nas suas aparências. O facto, porém, diz ele, é que o diálogo por ele iniciado com Deus só terminará com a sua  morte. “No dia, se chegar, em que nos encontrarmos cara a cara, prometei dizer-me o que tendes a dizer.” (p.138)

Como se pode depreender, o livro é um diálogo exteriorizado do autor com Deus, dele, quiçá, nosso. É um livro descomplexado, dum filho que dentro da sua inocência coloca questões ao pai invisível sobre a sua própria invisibilidade. É uma obra que levanta problemas existenciais mas que, ao mesmo tempo, trás ao de cima as contradições “ideológicas” mais profundas entre o ser humano e o seu criador.

Há 563 anos antes de Cristo nascia um dos primeiros profetas, o Buda; há 2020 anos nascia o próprio Cristo; e 571 anos depois de Cristo nascia Maomé. Com a actual multiplicação de seitas religiosas no seio da humanidade, assistimos igualmente a proliferação de profetas que até fazem questão de “ombrear” com clássicos como Buda, Jesus, Maomé, na busca de espaços e ovelhas para a sua pastagem. Cá por mim, resta-me somente, em meio deste cenário delirante que se vive nos tempos actuais, demandar, nos papiros apagados pelo tempo, os calendários dos já prometidos regressos sempre adiados. 

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