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Releituras (11)

KHALIL GIBRAN foi um dos maiores poetas árabes do século XX. Ele é autor de uma vasta obra literária tanto escrita em árabe quanto em inglês. Viveu grande parte da sua vida nos Estados Unidos, para onde imigrara juntamente com a sua família. Mas nem com isso deixou adulterar a sua alma de árabe e de libanês.

Deste clássico da literatura universal destaco aqui três dos seus livros, designadamente, a célebre obra “O Profeta”, “O Louco” e “Asas Partidas”, através dos quais Gibran conseguiu deixar nas profundezas de mim ecos da sua vibrante e portentosa poesia. Seus escritos em linguagem simples, apesar de serem parábolas, são de fácil leitura, e transportam consigo uma forte componente filosófica, moral e espiritual.

No seu livro, “O Louco”, Khalil Gibran conta o seguinte:

“Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de sono profundo e notei que todas as minhas máscaras tinham sido roubadas – as sete máscaras que eu havia confeccionado e usado em minhas sete vidas – e corri sem máscaras pelas ruas cheias de gente, gritando: ‘Ladrões, ladrões, malditos ladrões!’ Homens e mulheres riram de mim e alguns correram para casa, com medo de mim. E quando cheguei à praça do mercado, um garoto trepado no telhado de uma casa gritou: ‘É um louco!’. Olhei para cima, para vê-lo. O sol beijou pela primeira vez minha face nua. Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua, e minha alma inflamou-se de amor pelo sol, e não desejei minhas máscaras. E, como num transe, gritei: ‘Benditos, benditos os ladrões que roubaram minhas máscaras!’ Assim me tornei louco. E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós.”

Será o homem um animal de múltiplas máscaras que o impedem de ver e desfrutar livremente da vida e do mundo? Mas afinal, o que será então a loucura de que se refere Gibran? Será simplesmente uma disfunção mental ou uma negação radical de convenções sociais impostas pela sociedade ou, ainda, uma espécie de apologia exacerbada do “eu” fora dos limites da liberdade? E qual é o lugar dos deuses nesta loucura (des)consentida? Deixo aqui o leitor, dentro da sua liberdade, fazer as suas próprias conjecturas.

Os escritos de Khalil Gibran chegam a ser autênticas teses existenciais, na medida em que o autor coloca-nos questões mas dentro das respostas que ele próprio dá àquilo que a vida nos apresenta. Toda a sua obra, quanto a mim, é uma incursão que parte do ateísmo ao religioso, e do cristianismo ao islamismo, e vice-versa. Em “O Profeta”, debruçando-se sobre “a liberdade”, encontramo-lo nesta mesma senda com toda aquela poesia de primeira grandeza executada numa prosa rítmica e compassada. Ouçamo-lo:

“Na verdade, o que chamais de liberdade é a mais forte dessas cadeias, embora seus anéis cintilem ao sol e vos deslumbrem.

E que quereis rejeitar para serdes livres, senão fragmentos de vós próprios?

Se é uma lei injusta que pretendeis abolir, lembrai-vos de que esta lei foi escrita por vossa própria mão em vossa testa”.

(…)

É dessa maneira que vossa liberdade, quando perde seus entraves, transforma-se num entrave para uma liberdade maior”.

Khalil Gibran lembra-nos que aquilo que construímos com liberdade pode igualmente subjugar a nossa liberdade. Com efeito, quando tentamos exercer a nossa liberdade, acabamos sendo vítimas desse exercício, isto é, dos sistemas que nós próprios criamos com a bandeira da liberdade, não havendo, por isso, lugar para a culpabilização de terceiros, sejam eles deuses ou não.

O tempo é uma categoria não só da nossa mente como também do nosso espírito. O tempo é simplesmente um invólucro onde nele tudo acontece com ou sem o nosso controlo. Nascemos dentro do tempo, amamos dentro do tempo, sonhamos e morremos dentro do tempo. O tempo é um dos deuses que rege o nosso deambular por este mundo que nos é tão familiar quanto misterioso. Neste diapasão, ainda em “O Profeta” Khalil afirma:

“Gostaríeis de medir o tempo, o ilimitado e o incomensurável.

Gostaríeis de ajustar vosso comportamento e mesmo de reger o curso de vossas almas de acordo com as horas e as estações.

Do tempo gostaríeis de fazer um rio, na margem do qual vos sentareis para observar correr as águas.

(…)

E sabe que ontem é apenas a recordação de hoje e amanhã, o sonho de hoje,

E que aquilo que canta e medita em vós continua a morar dentro daquele primeiro momento em que as estrelas foram semeadas no espaço.”

O prazer é a vibração do bem e do belo; é o entusiasmo da vida manifestado no corpo e no espírito humanos. O prazer é o clímax da liberdade no processo de recriação do mundo. O prazer é a comunhão do espírito com o universo. E Kahlil Gibran como que a concordar comigo vai mais longe ainda:

 “O prazer é uma canção de liberdade,

Mas não é a liberdade.

É o desabrochar de vossos desejos,

Mas não o seu fruto.

É um abismo olhando para o cume,

Mas não é nem o abismo nem o cume.

É o engaiolado ganhando o espaço.

Mas não é o espaço que o envolve.

Sim, na verdade, o prazer é uma canção de liberdade.”

Dentre os ensinamentos do personagem Al Mustafá, contidos em “O Profeta” que é, na realidade, o profeta descrito no livro, há um que acho interessante que é aquele que fala das crianças (nossos filhos). Gibran, neste caso, diz-nos que os filhos não são, por assim dizer, pertences dos pais. Uma vez, estes filhos, dotados de livre arbítrio, os pais devem apenas protegê-los e encaminhá-los na vida, mas sem nunca impor-lhes sobre suas escolhas, sejam elas filosóficas, religiosas, ideológicas ou mesmo de opinião.

“Os vossos filhos não são vossos filhos.

São os filhos e as filhas da Vida que anseia por si mesma.

Eles vêm através vós, mas não de vós.

E embora estejam convosco não vos pertecem.

Podeis dar-lhes o vosso amor, mas não os vossos pensamentos, pois eles têm os seus

Próprios pensamentos.

Podeis abrigar os seus corpos, mas não as suas almas.

Pois as suas almas vivem na casa do amanhã, que vós não podereis visitar, nem em sonhos.

Podereis tentar ser como eles, mas não tenteis torná-los como vós.

Pois a vida não anda para trás nem se detém no ontem”

 “Asas Partidas” é uma novela de amor, autobiográfica, aliás, como quase toda a obra de Gibran. São relatos do seu primeiro amor quando tinha 18 anos. Das milhentas definições que possa ter, o amor é um repositório de felicidade e também de angústias. O amor é como a “energia escura” que não interage com a matéria, embora compenetrando-a, envolvendo-a, influenciando-a. O amor (in)depende da pessoa/objecto amado, pois na sua (in)temporalidade actua sempre enquanto dura; ele é a luz em potência, que tanto pode iluminar como pode escurecer o nosso espírito. Neste alinhamento, Khalil Gibran revela-nos:

“Não sei. Mas sei que naquele entardecer fui invadido por sentimentos que jamais conhecera antes. Moviam-se em volta do meu coração como as almas devem ter esvoaçado por cima dos abismos antes da aurora dos tempos. Daquele sentimento, nasceram tanto minha felicidade como minha desgraça.”   

Mas quando o amor se revela num poeta de forma directa e instantânea como um raio de trovão, torna esse momento, essa ocorrência, não só absolutos em si mesmos como também eternos na sua duração relativa, tal como acontece nos instantes da criação poética quando o poema começa a ganhar corpo e substância. Sem dúvida, são realmente momentos únicos de esplendor e totalidade. E Khalil Gibran, ainda em “Asas Partidas”, quando conhece e se apaixona pela Selma – seu primeiro amor -, vive justamente o mesmo sentimento:

“A moça olhou intensamente nos meus olhos como se quisesse descobrir neles o motivo da minha visita. Depois, estendeu-me a mão, branca e macia como os lírios do vale. Senti, ao apertá-la, um sentimento novo e estranho, similar ao pensamento poético quando começa a formar-se na imaginação.”

Gosto de poetas, mas daqueles poetas maiores, como Gibran, que definem assim a beleza duma mulher, ou seja, a beleza por detrás da beleza duma mulher: “A beleza de Selma não estava no seu cabelo dourado, mas no halo de pureza que o rodeava. Não estava nos olhos, mas na luz que emanava dos olhos. E não estava nos lábios, mas na doçura que deles fluía; (…) A beleza de Selma na estava na perfeição do seu corpo, mas na nobreza de sua alma, uma chama branca que se elevava da terra para o infinito. A beleza de Selma vinha da mesma fonte que produz o génio poético, cujos reflexos encontramos nos poemas semíticos e nas pinturas e músicas imortais.”

Este grande e multifacetado poeta libanês, que também foi pintor, ensaísta, novelista e filósofo liberal, faleceu a 10 de abril de 1931 em Nova Iorque e, a seu pedido quando em vida, foi sepultado em Bsharri, no Líbano. O seu corpo foi recebido em festa, pois era o filho de regresso à terra que o vira nascer a 6 de janeiro de 1883.

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