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“Recados da alma”: do amor à reconstrução da memória

Você pode apaixonar-se por belos estranhos e pelas promessas que eles fazem
Dire Straits

Como contar a história dos últimos 50/ 60 anos? Certamente, esta pergunta não merece resposta inquestionável. Não existe uma fórmula definitiva, mas sempre há possibilidades de se recuar no tempo e, das suas entranhas, retirar-se o que de mais impactante encontra-se. Em Recados de alma – romance histórico por investir na coexistência de figuras e episódios históricos com eventos e personagens inventados, como bem defende A. Halsall – temos essa hipótese de reconfigurar o cronótopo de um país feito de estórias incríveis, como a de Eugénio e Mafalda, personagens que fazem do amor um recurso que ultrapassa todas as barreiras e derruba preconceitos.

Na verdade, neste flashback atinente à história recente de Moçambique, Bento Baloi forma no casal Eugénio e Mafalda dois estratos sociais que, tendo muito de diferente, ambos aproximam-se e esbanjam-se no amor simplesmente por isso ser bom. É o sentimento cor-de-rosa que aproxima o menino pobre e preto de Mbongolwene, subúrbio de Lourenço Marques, à menina branca da cidade, fazendo do empregado um príncipe encantado entre lutas e promessas.

A partir do amor que surge num contexto de ódio entre pretos e brancos e vice-versa, Baloi tece um Moçambique possível, livre de estereótipos, um país feito de aproximações mesmo nas circunstâncias em que as distâncias são verdadeiramente acentuadas.

Recados de alma é daqueles romances que – se não forem consequência de uma experiência profunda do autor, o que não retira o mérito da imaginação, de modo algum –, seguramente, traduz uma (re)investigação concentrada dos contextos históricos e sociais aludidos. As diferentes ramificações diegéticas incorporadas no discurso do narrador faz deste livro um produto literário tanto verosímil como credível, pois, de forma equilibrada e numa viagem sem sobressaltos, o leitor é transportado sobre realidades conhecidas, no entanto, vistas de um ângulo raro. Tal evento, faz com o romance reconstrua espaços fundamentais por encerrarem em si fragmentos de um povo que se vai esquecendo de onde vem. A partir de uma relação polarizada entre o caniço e o cimento, Baloi apresenta-se muito ambicioso na reconfiguração espacial, o que nos leva a percorrer ruas de Lourenço Marques, Maputo, Harare, Lisboa, e etc., com uma minúcia de quem conhece esses territórios como a si próprio.

Pelo seu carácter atento ao pormenor, estes Recados conseguem despertar, com efeito, um conjunto de emoções no leitor à medida que o retrato e as peripécias de Eugénio, Mafalda, Simões, Cristina ou Original ganham relevo. São estas as principais personagens, elos que aproximam a História de Moçambique à uma ficção audaz, quer do ponto de vista do manejo de modalidades técnicos-narrativas, quer do ponto de vista da amplitude da narrativa contada.  

Esta obra literária é um autêntico contributo para salvaguardar a memória de uma época em que a coragem foi tudo. Por isso, cá temos os contornos heroicos do “Galo, galo amanheceu” que bem recordam a gloriosa Mafalala dos Calianos também eternizada em livro por Le Bon. Bem visto, os protagonistas do romance são exemplos dessa coragem que mais do que na dor, encontra na honra a força interior capaz de mover montanhas.

Título: Recados de alma
Autor: Bento Baloi
Editora: Fundação Fernando Leite Couto
Classificação: 17

 

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