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“Quero que Moatize figure no mapa literário”

Outras fronteiras: fragmentos de narrativas é o primeiro livro que Ana Mafalda Leite lança sob a chancela da Cavalo do Mar. Por via desta colecção de poesia, a autora procura conduzir o leitor moçambicano pelo país, por uma realidade desconhecida, investindo, por isso, em várias questões históricas e geográficas. Particularmente, o que move a poetisa, ao voltar a percorrer os caminhos da sua infância, vivida no Centro do país, é contribuir para que o distrito de Moatize, na província de Tete, figure no mapa literário. Nesta entrevista, Ana Mafalda Leite refere-se a essa pretensão, à poesia como um momento de liberdade, sugerindo o que colectivamente deve ser feito para que mais livros nacionais sejam reconhecidos no estrangeiro.

 

Lança Outras fronteiras: fragmentos de narrativas pela Cavalo do Mar, um título que me sugere a ideia de latitudes diferentes. Quis ser mais espacial neste livro?

Digamos que este livro trata, no fundo, da minha própria espacialidade, dos lugares onde vivi, cresci e pelos quais viajo. Gosto do facto do livro ir reinventando a minha infância. Eu vivi em Moatize, em Tete, desde que tive um ano de idade. Então, porque o Norte acaba sendo um pouco esquecido, procurei colocar um pouco de história e de geografia num livro que, simultaneamente, trata das minhas vivências. Ou seja, a minha casa natal, no fundo, viaja sempre comigo, não está fixada num lugar. Outras fronteiras são formas de movências enquanto sujeito poético e existencial.

 

Projectando-se para algum lugar, por via desse movimento e da viagem, regressando, simultaneamente, a um ponto de partida, dos lugares onde viveu ou passa a habitar por via da pesquisa, consegue dar mais atenção a esse norte que muitas vezes é esquecido?

Essa foi minha intenção. Aliás eu tenho neste livro um capítulo que se chama Poemas de Moatize. Eu quero que Moatize figure no mapa literário. Ou seja, quero que o lugar onde passei toda a minha infância ganhe uma determinada dimensão. Que toda aquela zona de Furancungo, Marávia e Angónia ganhe uma presença cultural e uma realidade ligada à literatura.

 

Está a caminhar para o Norte de Moçambique, estando agora no Centro, de onde se projecta para o outro Norte, no caso, da província de Tete, zona fria. Foi também para aquecer essa região com recurso às palavras?

Não. São zonas que têm a ver com a minha adolescência, que conheço bem e com as quais tenho um certo relacionamento emocional. Então, tentei fazer desse relacionamento emocional um conhecimento cultural também.

 

Como é dar voz a essas fronteiras que cabem dentro da sua espacialidade?

Como sempre escrevi poesia, para mim é um privilégio poder ocupar a página com essa descrição. Confesso que, para este livro, fiz alguma pesquisa para poder relatar pequenas histórias. É uma actividade lúdica e de trabalho que me dá prazer.

 

Outras fronteiras está organizado em quatro partes. Isso traduz quatro estados de espírito do processo de escrita?

O processo de escrita vai-se fazendo poema a poema. Eu, às vezes, não percebo muito bem onde esse processo vai chegar. Há um determinado momento em que vejo que um conjunto de textos têm uma coerência e ganham corpo. Aí o livro vai-se fazendo e oferece resultado praticamente no fim. Percebo que há um livro quando tenho um conjunto de textos feitos. Depois há, naturalmente, um certo processo de arquitectura, digamos assim, de pensar como organizar o livro. De certa maneira, este título, Outras fronteiras, problematiza a minha própria questão identitária em termos de deslocamentos, ou seja, eu faço parte de um certo tipo de gente que hoje em dia não tem propriamente fronteira.

 

Sabendo quando um livro está a acontecer, é capaz, igualmente, de perceber quando uma ideia pode dar em livro?

Sim, consigo, assim como consigo perceber quando um texto chegou a um ponto de apuro, que não pode levar nem mais uma palavra. Acho que o trabalho da poesia é um pouco diferente daquele da narrativa, mas há um apuro formal que é quase como uma ourivesaria. O livro está a lapidar e chega um momento que parece atingir a perfeição.

 

Como descreve esse momento em que o fim está iminente?

Por um lado, fico satisfeita por ter chegado a um momento exacto, o fim. Por outro, quando estou a escrever, é como se estivesse a ouvir uma voz. Outras vezes não. Agora, quando esse momento chega, não consigo explicar. Só sei que acabou o poema.

 

Geralmente, é num ímpeto que escreve poesia ou tudo tem seu tempo?

Posso tanto escrever, por exemplo, um conjunto de 10 poemas numa semana como demorar seis meses.

 

Sinto nos textos deste livro uma espécie de subversão ao cânone ortográfico de língua portuguesa, no que concerne às regras de pontuação. Por exemplo, os substantivos próprios aparecem em minúsculas. É mesmo por aí ou são questões estéticas apenas?

A poesia permite esse prazer lúdico com a ortografia, porque o poema também é desenho na página. Então, o facto de colocar nomes de terras em minúsculas e enumerá-los dá uma fluidez de passagem do sujeito pelos lugares. E dá-lhe também a mesma importância que o resto de outras palavras. A poesia dá-nos essa possibilidade de utilizarmos as minúsculas, as maiúsculas e as vírgulas… há outras formas de fazer pausas, sem recorremos à pontuação. É propositado e é uma questão estética também.

 

Já gora, é uma poetisa que se faz a partir de inquietação?

A principal inquietação, quando estou a escrever os meus primeiros poemas, é a de nomear aquilo que estou a sentir e que não sei descrever. Portanto, é a necessidade de nomeação, e tem a ver, normalmente, com encantamento. Quando se trata de um momento de angústia, de sofrimento ou de uma emoção muito violenta não consigo escrever. Só quando isso passa é que consigo expressar o que num certo momento foi sentido. Agora, quando há um grande maravilhamento e enamoramento – um poeta enamora-se constantemente com as paisagens e com as coisas –, aí a sensação é melhor porque há uma ponte talvez mais próxima para poder objectivar ou concretizar esse estado emocional, descritivo e narrativo, às vezes.

 

E num momento de ansiedade, consegue ser produtiva?

Normalmente, não. Porque é intenso e a escrita precisa de equilíbrio.

 

O que lhe permite notar que a poesia está para começar?

Uma voz que começa a cantar cá dentro.

 

De forma perceptível?

Sim. Às vezes, o mesmo princípio de verso começa… Casos há em que, não tendo papel, procuro memorizar, para escrever mais tarde. O primeiro verso é fundamental.

 

Ainda escreve à caneta?

Sim, nuns caderninhos, que é para captar esses momentos iniciais. Gosto muito de canetas de tinta e tenho umas que me foram dadas por um poeta moçambicano: Virgílio de Lemos. Compridas e fininhas, que fazem uma letra lindíssima.

 

Onde gostaria que o seu leitor chegasse com estas Outras fronteiras?

Gostava de lhe conduzir pelo país, no sentido de lhe mostrar que Moçambique tem algumas narrativas esquecidas. Há aqui uma dimensão história que faz de um conhecimento cultural. Gostava que o leitor viajasse por este país, por outros e por religiosidades diferentes que no livro aparecem. A ideia é que os leitores levantem as pedras para perceberem o que está por detrás.

 

 “Foi assim que Deus deixou a terra/ E nunca mais voltou” (p. 34). Desta maneira termina o poema “Quando o camaleão e Deus deixaram a terra”. Ocorreu-lhe aqui versificar o mundo, como se sugerisse que o que vai mal é por Ele nunca ter voltado?

Confesso que o intuito desse poema não foi esse, e sim retomar uma história da literatura oral e dar-lhe forma poética. Mas o que o José dos Remédios está a dizer faz todo o sentido. Nós somos órfãos do sagrado, da memória e de quem nos sustente, porque estamos entregues à terra.

 

O que mais custou na produção deste livro?

O processo de retoma ao que já estava pronto, com revisão e retoques no texto. Principalmente porque, como académica, muitas vezes, estou obrigada a outro tipo de escrita. Para mim, fazer poesia é um momento de liberdade.

 

Já agora, coloco-lhe umas perguntas feitas pelo sujeito de enunciação, no poema “Fronteiras, de que lado pergunto-te” (p. 43). “onde terá começado a fronteira do dia com a noite? a/ fronteira da água com a terra? a do azul com o lilás? porque/ tão dividido o mundo em dois?”

Acho que nós ainda vivemos num mundo marcado por divisões, ao nível das emoções e da visualização que devia ser mais fluida. O que questiono são espécies de obstáculos que se colocam em nós termos de fazer escolhas entre o dia e a noite, que no fundo são mesma coisa, e entre um determinado tom e o outro, quando nós temos um arco-íris que aglutina todas as cores. É da possibilidade de sermos tudo isso que trato, sem criar divisões e paradoxos.

 

Magoa-lhe a ideia de ter que deixar um poema de lado, quando está a compor um livro, na medida que pode nunca ser lido pela maioria dos seus leitores?

Não. Há coisas bonitas que dizemos às pessoas que acabam desaparecendo como uma aragem. Na poesia passa-se o mesmo, há textos que devem ser postos de lado, quando não têm qualidade ou não se adequam ao projecto que temos. Nesses casos, ponho-os de lado, mas não os deito fora porque, muitas vezes, há material guardado que pode ser aproveitado mais tarde.

 

Neste livro traz uma poesia muito boa de ser dita e ouvida, em surdina e até mesmo em recital. Como foi conciliar essa, digamos, doçura com uma mancha gráfica criteriosa?

Isso também deve-se à editora Cavalo do Mar, que, devo reconhecer, está a fazer um grande trabalho. Este livro está lindíssimo, como os outros volumes, com um aspecto apelativo. Para mim é um grande privilégio ter sido convidada para participar neste projecto. Quero agradecer muito ao Mbate Pedro por me integrar na colecção Filhos do Vento.

 

Às vezes noto que a preocupação pela mancha gráfica, pelos poetas moçambicanos, começa a desaparecer. Tem a mesma percepção?

Quando fiz o meu primeiro livro, escolhi a cor da letra, tamanho do poema e imagem da capa. Hoje em dia as editoras não facultam essa possibilidade. Os formatos de capa e a dimensão têm mais a ver com o mercado. O que podemos dizer é que a edição em Moçambique não está assim tão desenvolvida que permita um grau comparativo com outras edições, mas esta colecção de poesia da Cavalo faz diferença.

 

Há-de ser por isso que a Cavalo do Mar também tem levado muitos livros de autores nacionais à fase final de concursos literários em Portugal e no Brasil. Que impacto pode advir daí?

A pessoa que tem um livro seleccionado para a final de um prémio literário, de certa maneira, está a entrar para um patamar selectivo. Os prémios, a integração das obras nos programas de ensino e a participação nos festivais literários contribuem para tornar uma voz pertinente no domínio da língua portuguesa. E com isso surgem as traduções, enfim, um conjunto de eventos que permitem os autores serem mais conhecidos.

 

Que trabalho poder ser feito em Moçambique para que a distinção de livros moçambicanos aconteça mais vezes no estrangeiro?

Uma das coisas que podem ser feitas tem a ver com a mobilidade entre autores e publicações. Há que haver mais livros a serem publicados em Portugal e no Brasil. Um plano de divulgação do livro internamente também é importante e acho que um programa como o Artes e Letras da Stv é indispensável, como são as leituras críticas em jornais e revistas de especialidade, que são cada vez mais escassas. Por outro, numa realidade em que hoje dia as pessoas compram tudo, temos que investir mais no ornamento do livro, de modo que seja atractivo. Acredito que com isso, com um design bonito, o livro pode-se tornar apetecível.

 

Tem publicado textos de análise literária no jornal O País. O seu último título é “Algumas vozes femininas na poesia moçambicana do século XXI”, no qual estuda Melita Matsinhe e Sónia Sultuane. Que dizer destas vozes?

Tenho procurado fazer um trabalho que, talvez, deveria ter começado há mais tempo. Por razões da minha vida profissional nem sempre o cumpri como desejaria. Estas duas vozes são interessantes porque partilham outros trabalhos que são complementares no campo da arte. Por exemplo, no caso da Melita Matsinhe é a música e no caso da Sónia são as artes plásticas. Ambas são artistas de muita qualidade.

 

A crítica literária é para si um ofício, uma forma de servir um ideal?

De certa maneira, é, pois, enquanto estudiosa de literatura tenho nisso uma obrigação, quer dizer, uma complementaridade que faz parte porque sou ou deverei ser uma leitora especializada, que pode abrir um pouco a porta para que outros leitores tenham acesso.

 

Já quando vivia em Moçambique, destacou-se muito nas discussões sobre literatura. Muito de si ouviu-se e leu-se. Como descreve aqueles anos em que, na revista Tempo, contribuiu para a institucionalização da literatura moçambicana?

Lembro-me desse momento com muita alegria, por um lado, porque foi de muito conhecimento. Na altura a minha tese de mestrado foi sobre a obra de José Craveirinha, um poeta que atravessa o tempo histórico. Nessa época percebemos o surgimento de novas vozes literárias: Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa, Eduardo White e Armando Artur, que, de certo modo, foram criando condições para uma afirmação da literatura anterior, produzida durante o tempo colonial, e daquilo que é o presente da literatura moçambicana.

 

Como está a nossa literatura, hoje?

Acho que está a viver um momento muito rico, com muitas publicações. É bom que isso aconteça porque enquanto não houver publicações, não há movimento editorial, o que significa que alguma coisa não está bem.

 

É uma das participantes do Festival de Literatura Resiliência. Que lhe ocorre dizer desta iniciativa?

É uma iniciativa muito produtiva pela mobilidade que permite aos autores e pelo conhecimento que vai trazer, pela edição que é novidade e pelas oficinas de escrita com um movimento transnacional da criação artística.

 

 Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro a exposição Pancho: outras formas e olhares, de Sónia Sultuane e Jorge Dias, e o livro Os ângulos da casa, de Hirondina Joshua.

 

PERFIL

Ana Mafalda Leite viveu e trabalhou em Moçambique. É professora universitária e tem várias publicações sobre literatura de língua portuguesa, incluindo a moçambicana. Em 2015, recebeu o Prémio Feminina-Literatura. Alguns livros da sua autoria são os seguintes: Em sombra acesa, Canções de Alba, Mariscando luas, em colaboração com Roberto Chichorro e Luís Carlos Patraquim, Rosas da China, Passaporte do coração, Livro das encantações.

 

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