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“Queremos manter uma economia com base na cultura e na comunidade”

Ivan Laranjeira é um dos grandes promotores das artes e do património cultural na cidade de Maputo. Através da Associação IVERCA ou do Museu Mafalala, está comprometido em apostar numa economia baseada na cultura e na comunidade. Por isso, muito do que fez/ faz gira à volta da divulgação, investigação e documentação do potencial artístico-cultural e turístico a partir de um dos mais antigos subúrbios da capital do país: Mafalala. Se seguir esta entrevista, vai “ouvir” em “surdina” o actor e curador dizer muito do que pensa sobre a missão do artista. De igual modo, Laranjeira explica o que deve acontecer para que a arte nacional esteja no bom nível de desenvolvimento, mencionando aspectos positivos e negativos.

 

Ivan Laranjeira é actor, produtor cultural, guia de turismo e curador. Quais são as narrativas por detrás desta entrega à arte e à cultura?

É um processo que começa em casa, com a família. Venho de um contexto em que os meus pais sempre desenvolveram em nós o gosto pelas artes e pela cultura. Isso, ao longo do tempo, foi-se desenvolvendo – e o resultado agora é este. E, depois, é a exposição que a gente tem: os nossos amigos, o nosso dia-a-dia e os espaços que frequentamos. Isso contribui para moldar o nosso ser e os nossos gostos também.

 

A propósito dessa exposição às artes, que horizontes O jardim do outro homem (2005), filme de Sol de Carvalho, abriu para si como actor e como homem?

O filme O jardim do outro homem foi uma das maiores experiências da minha vida e foi a porta de entrada para as artes. A partir da produção, entrei no mundo que me era desconhecido, na altura – estava no fim da adolescência, e fui exposto a uma realidade totalmente diferente. Lembro-me que antes estava a estudar na África do Sul, e foi precisamente no ano do meu regresso que participo de um casting e entro para o filme. Daí comecei a conhecer outros actores e a contracenar com actores como Evaristo Abreu e Ana Magaia, decanos do nosso teatro. Foi um aprendizado muito grande. Ao mesmo tempo que interagia com os actores, fui entrando em contacto com toda a componente técnica que tem a ver com a realização e produção. A sétima arte é mesmo a sétima arte, um conjunto de artes que se associa para produzir um filme. Isso contribuiu imenso para que me pudesse inserir neste espaço [artístico]. Dali para frente, pronto, espevitou-se o gosto pela arte e, acima de tudo, por incorporar essas personagens todas.

 

A vida real, para si, é também uma representação de personagens?

Não. Penso que na vida real é importante termos um foco num percurso, com uma personalidade bem definida, e estarmos claros do que são os nossos sonhos. No meu caso, o meu sonho sempre foi fazer Mafalala ou, de alguma forma, contribuir para o cenário cultural da cidade de Maputo. Nisto, há circunstâncias em que a gente não está claro do que quer exactamente, mas há aquele momento em que muda tudo. Vem uma luz que nos desperta para as coisas que realmente queremos fazer. Acho que a partir do momento que comecei a expor-me mais na arte, fiquei mais claro do percurso que queria seguir.

 

Quer continuar a investir na carreira de actor?

Absolutamente. Ultimamente não o faço, porque estou mais por trás das câmaras, a fazer a produção de um festival e a trabalhar para o Museu [Mafalala]. Mas, de alguma forma, estou sempre ligado ao cinema. Há muitas situações em que a IVERCA contribui para que certos filmes aconteçam. Portanto, nunca pus de lado a carreira de actor, é uma questão de oportunidade do momento.

 

O que significa ser artista em Moçambique?

O artista, em qualquer parte, é aquela pessoa que se expressa e com responsabilidade de traduzir um sentimento abrangente de uma sociedade. Há quem diga que os artistas são antenas da sociedade, e, de facto, são. Acho que o artista tem de ser capaz de traduzir aquilo que são os anseios de uma sociedade e ser capaz de produzir um futuro, um sonho e espevitar as pessoas a seguirem determinados sonhos ou ideias.

 

Se, por um lado, o consumo da arte pelo cidadão comum, a nível nacional, não está no nível desejado, o que dizer do consumo da arte pelos próprios artistas?

É uma pergunta um pouco traiçoeira. Eu poderia dizer que temos um percurso artístico bastante rico, como Nação. De certa forma, a arte e a cultura estão presentes no quotidiano do próprio moçambicano. Agora, o entendimento que o moçambicano comum tem sobre o valor que está associado à arte e à cultura, esse é que é o grande ponto. Indo de encontro à pergunta, acho que há um trabalho que deve ser feito no sentido de garantir o maior consumo… acho que a partir do momento em que nós somos os fazedores, assumimos uma posição de consumo da nossa arte. Estamos já a trabalhar na transformação da sociedade para que acha um melhor posicionamento social, económico e até cultural do artista na sociedade. Eu vejo que, nos últimos 10 anos, muita coisa mudou. Muitos dos artistas e fazedores culturais começam a trabalhar em conjunto, com ideia de colectivo.

 

Tenho a percepção que, por exemplo, os escritores/ poetas frequentam muito pouco teatro. Vejo muito pouco os músicos nas exposições de artes plásticas ou os artistas plásticos nos lançamentos de livro. Se concorda comigo, o que explica esta situação?

Já houve momentos em que tinha essa percepção. Quando fazia mais trabalho de actor, sentia mais um vazio no público, quando não via os colegas. O que eu vejo, também, é que há muita solidariedade. Acho que a coisa está equilibrada. Muitas capas dos livros são artistas plásticos que produzem; muitas peças de teatro são inspiradas em livros de escritores; muitos filmes estão a sair de livros e os guiões produzidos por escritores, e vejo muita colaboração na dança. Entretanto, a questão, aqui, é mesmo em termos de público. Nós, os artistas, não temos um público que nos permite viver da nossa arte.

 

Não somos um público suficiente…

Acho que o problema começa exactamente aí. Não somos um público suficiente e, muitas vezes, vamos aos espectáculos e, nós próprios, os artistas, não queremos pagar pela entrada porque o artista que está no palco é nosso amigo ou colaborador. É esta mentalidade que é preciso mudar. Temos de ser nós os primeiros a dar exemplo, pagando bilhete, enchendo a sala, e a dar o apoio necessário ao colega de palco. A partir do momento que isso começar a acontecer, teremos um cenário cultural mais forte e mais sólido, que vai mudar, gradualmente, o paradigma actual. Outro problema, eu, particularmente, conheço mais os artistas de Maputo. Aí há um fosso muito grande, sem saber o que se está a passar na Beira, em Nampula ou aqui próximo: Xai-Xai e Inhambane. Isso também cria um certo distanciamento. Há uma necessidade de fazer pontes com cada uma destas cidades, para que o moçambicano artista saiba como é o público um pouco de todo o país. Estamos muito presos a esta bolha de Maputo.

 

Ou seja, como disse numa entrevista à VOA, é preciso democratizar a arte.

Exactamente. É preciso democratizar a arte, os espaços para a produção artística e garantirmos que haja maior acesso à arte por parte do público de uma maneira geral.

 

E o que dizer das casas culturais, em termos de coordenação?

Temos mais espaços culturais nos últimos 10 anos, sobretudo em Maputo. Nós, como Museu Mafalala, não estamos isolados e interagimos com a produção de eventos. Sinto que é uma prática comum, agora, e acho que tem a ver com a questão geracional. É uma leva nova de agitadores culturais, com uma outra abordagem, uma nova maneira de fazer e de estar. E esses espaços são completamente independentes e aparecem como fruto de um certo empreendedorismo.

 

Além de arte, interessa-se pela reconstrução da história e pela preservação da memória colectiva. Porquê?

Eu tenho formação em Gestão Turística, e isto, de certa forma, acaba criando este casamento entre o actor e a perspectiva do turismo e do negócio, a partir da arte. Quando nós pensamos no desenvolvimento de um destino, nós pensamos essencialmente nas histórias que esse destino conta naquilo que é a representação do espaço. E a Mafalala é um lugar com muitas histórias que hoje são atractivos turísticos. Por isso decidimos trabalhar em narrativas novas, fora do comum, assumindo a cultura e o património como grandes diferenciais. Associado a isso, investindo na memória. Penso que este processo não é exclusivo ao Estado. A memória é o que nos identifica, é o que nos permite saber de onde viemos.

 

A pensar nessa questão da memória, associa-se, em 2006, na publicação do livro Mafalala: memórias e espaços de um lugar

A missão que desenvolvemos na IVERCA é precisamente promover, documentar, pesquisar e dar a conhecer… uma das coisas que nós sentimos, quando começamos com o nosso trabalho, foi que a história está viva e os seus principais actores estão também vivos. Então procuramos perpetuar essas histórias, de modo que os nossos filhos e netos possam as conhecer. Achamos que era importante fazermos um trabalho de documentação dessas narrativas, e essa foi uma oportunidade única, na medida em que olhou para Mafalala como um lugar de memória que se traduz através de várias formas, por exemplo, através da literatura. Esse livro aborda a relação do espaço com a poesia de Craveirinha e Noémia de Sousa, ao mesmo tempo que discute o espaço como um todo, inclusive sobre como Maputo se faz e desenvolve-se. O livro questiona quem são os habitantes de Maputo, o papel que o urbanismo tem naquilo que é o imaginário artístico e como esse imaginário depois se transforma como referência de determinadas épocas e numa utopia que se vai criando sobre as independências e nacionalismos. É um contributo voluntário que a IVERCA faz para o preenchimento desses vazios e fazer com que cada pedaço do puzzle esteja na fotografia.

 

A pensar na história e na memória, a Associação IVERCA, que preside, constrói o Museu Mafalala e organiza o Festival Mafalala. Uma das vossas pretensões é que os moradores do bairro se revejam na instituição. Como isso pode ou está a acontecer?

Temos um amor especial por esse festival e penso que é um exemplo claro de democratização. Quando começamos, em 2010, fizemos três edições do festival. Nessa altura, quando falássemos de turismo na Mafalala, muitos pensavam no projecto com um cepticismo e tinham uma ideia errada da Mafalala, por causa da questão segurança e da pobreza. Pensava-se que não havia atractivos que pudessem levar para lá turistas. O bairro estava dentro de um estereótipo de um lugar perigoso e de degradação social. Nós decidimos responder a esse posicionamento a partir da criação de um evento que mostrasse o lado positivo do bairro. Produzimos um evento que combinasse a música, a gastronomia, a poesia e que, acima de tudo, discutisse com a comunidade a história do bairro, para que os moradores se apropriassem do seu espaço e pudessem contar a sua própria história. Por isso fizemos três edições no primeiro ano. Nos anos subsequentes, fizemos anualmente e decidimos fazer em Novembro por ser o mês da cidade de Maputo – nesse período se realiza também a Copa Mafalala. Hoje o festival é dos eventos importantes da cidade de Maputo, que descongestionou o centro e também leva público de fora do bairro ao evento. Com o festival começamos a ter cada vez mais artistas estrangeiros a actuarem e que vêm com pacotes de colaboração em residências artísticas. O tecido social existente na Mafalala é o bem mais precioso que se tem naquele espaço e se se quebra esse tecido quebra-se muita coisa à volta. Queremos manter uma economia com base na cultura e com base na comunidade. É importante olharmos para estas nuances todas. Vejo Soweto, que se destacou principalmente com a história do ANC e de luta contra Apartheid. Vimos lá um fluxo turístico grande e uma economia que beneficia a comunidade. Com a Mafalala não é diferente. E além de o nosso bairro ter este cunho nacionalista, tem também o desporto, as artes e toda diversidade. São muitos os elementos por explorar.

 

Num artigo intitulado “Devaneio sobre as minhas origens, o Hip-Hop e a ‘nova normal’”, publicado na Mbenga, defende uma maior presença online dos rappers e dos artistas moçambicanos. Estamos fracos nesse sentido?

Sim, estamos muito fracos. É importante termos uma presença online. Hoje em dia, se as pessoas não estão nas redes sociais e não têm uma presença no YouTube, quando colocamos o seu nome  no Google e não aparece, essa pessoa praticamente não existe. Se estamos a discutir um posicionamento na região e no mundo, precisamos de ter isso. Como programador de um festival,  a primeira coisa que me ocorre, quando quero ver o trabalho de um artista, é a Internet. Se eu não vejo qualquer coisa relacionada com esse artista, começo a ter uma certa dúvida na programação desse artista no meu evento. Isso digo eu, do Festival da Mafalala. Imagina se a pessoa quer fazer uma aplicação para África do Sul ou para América e não tem esta presença online? Casos há em que estou a fazer uma programação e peço uma fotografia a um artista, que não me consegue enviar uma foto em condições. Por outro lado, as plataformas digitais, hoje, é negócio. Os artistas que não estão preparados, perdem dinheiro.

 

O Hip-Hop influenciou-lhe culturalmente. Acha que os rappers moçambicanos em actividade, hoje, continuam a honrar o compromisso deste movimento?

Penso que sim. Sem querer ser pretensioso, penso que o RAP moçambicano é o melhor dos PALOP, na sua diversidade e na qualidade dos rappers. O que eu sinto é que há necessidade de o Hip-Hop sair do esquema underground e reclamar o seu espaço.

 

Outra actividade em que está envolvido é o Seminário de Jornalismo Cultural. Sempre com o mesmo propósito?

O Seminário de Jornalismo Cultural veio para trazer a tona que nós, como fazedores da cultura, sentimos em relação ao fraco destaque que temos na imprensa sobre cultura. Por exemplo, na televisão raramente se vê uma grande entrevista a um fazedor da cultura; raramente a cultura é notícia de abertura de um telejornal. Veja os horários em que os programas culturais acontecem, não é num horário nobre. A mesma coisa acontece no jornal. A cultura vai para última página e muitas vezes nem é uma página inteira. Na rádio é o mesmo. Então, achamos importante trazermos o protagonista da cultura para que as pessoas possam discutir o tema e pensar no que significa. Por outro lado, notamos que a cultura era vista como apenas eventos, sem crítica, por exemplo, às exposições. Mais ainda, notamos que a cultura era reduzida às artes. O tema do património cultural, no seu todo, não era abordado e continua não sendo. Nós pretendemos quebrar esse paradigma e trazer uma nova abordagem com tecnologias para difundir mensagens.

 

No mês passado, o Ministério da Cultura e Turismo anunciou que vai apoiar a promoção do roteiro turístico de Mafalala. Além do reconhecimento do vosso trabalho, o que isto significa?Mafalala, já em 2016, tinha sido elevado como destino prioritário da cidade de Maputo, pelo Ministério da Cultura. Entretanto, é sempre motivador receber a visita de uma importante figura como é a Ministra da Cultura e Turismo. Isso simboliza essa aproximação e essa parceria existente entre o nosso trabalho e a importância que o nosso trabalho tem para o país e para o tema da cultura e turismo do país. O que esperamos é que nos próximos anos tenhamos resultados práticos desta aproximação e que o património da Mafalala seja preservado. Essa é das nossas grandes lutas.

 

Nos últimos anos, há um boom de escritores, cantores, actores e etc. Que país prevê artisticamente daqui a 20 anos?

20 anos são poucos, mas as coisas agora acontecem muito rápido. Estamos num bom caminho e temos cada vez mais jovens a assumirem liderança no capítulo da cultura. Isto muda a forma como abordamos a arte, o turismo e a cultura em geral.

 

É aí onde se insere a Othama?

É precisamente dentro desse espírito que a Othama é criada, uma plataforma que junta três festivais (KINANI, AZGO e Mafalala) e que procura criar sinergias entre cada um desses festivais, com as mesmas dificuldades e desafios. A Othama vem para responder a isso, porque juntos somos mais fortes.

 

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro Resgate, da Mahla Filmes, e Ninguém matou Suhura, de Lília Momplé.

 

Perfil

Ivan Laranjeira é actor, produtor cultural, guia de turismo e curador. Membro fundador da Associação IVERCA | Turismo, Cultura e Meio Ambiente. É co-autor da obra literária que documenta a história e o surgimento do bairro da Mafalala Mafalala: memórias e espaços de um lugar (Coimbra, 2016). Foi bolseiro da iniciativa presidencial americana para jovens líderes africanos – Mandela Washington Fellowship YALI 2016 – e assistente de locação na produção alemã do filme “Kennedy’s Brain” (2009), baseado num romance de Henning Mankell. Actualmente, é presidente da Associação IVERCA e gere o Museu Mafalala

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