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Quando dançamos com a mulher da nossa vida

Eu era um miúdo, tinha 18 anos, quando me tornei amigo do Luís Carlos Patraquim, que me publicou, na “Gazeta” da insigne revista Tempo, os meus primeiros versos impressos, em Agosto de 1985. Começou aí a minha amizade com o poeta e, vezes sem conta, ia visitá-lo à casa da Mao Tsé Tung. Não raro, cruzava-me ali com o Mia Couto, que ia discutir com o Patraquim as versões dos contos, que mais tarde dariam no livro Vozes Anoitecidas. Posso, abusivamente, dizer que acompanhei a génese de um dos livros icónicos do último quartel do século XX na ficção moçambicana. Surgido em 1986, em sua primeira edição, o livro levava um prefácio do Luís Carlos Patraquim e ilustrações do Miguel César. Paradoxalmente, não foi em casa do Patraquim que me tornei amigo do Mia, mas quando ele lançou aquele luminoso livro de contos, na sequência da entrevista que lhe faria para a Rádio Moçambique, para o programa “Cultura Viva”, do Emílio Manhique, de que eu era colaborador.

O meu convívio com Patraquim foi decisivo. Discutíamos a arte de fazer poesia e eu levava comigo emprestados sempre alguns livros. Isso é importante para um debutante. Na altura, eu escrevia poemas breves, mas não conhecia Bashô nem a poesia haikai (ou haiku, forma da poesia japonesa, composta por três versos, com cinco, sete e cinco sílabas). O Luís introduziu-me nesse universo. Também escrevia intuitivamente prosa poética. Ele haveria de dar-me a ler Conde de Lautréamont – Os Cantos de Maldoror. A leitura deste livro representou um choque brutal e um mundo novo que se abriu no meu universo. Também me recordo de ler Omar Khayyam, poeta persa de Rubaiyat, pela mão do meu mestre de sempre.

O Luís Carlos publicara, naquele ano de 1985 em que nos tornámos amigos, um belíssimo livro de poesia – A Inadiável Viagem: “agora vou com amendoins na língua ínsula”, começava assim o poema que dava o título ao livro. Eu gostava particularmente da “Canção” dedicado a Paula, musa soberana: “chegarei com as árvores/ meu amor ao som do sangue/ às catedrais do puro gesto/ com o grito e as aves/ marítimas dentro das sílabas/ ao breve cume da espuma/ mãos nas mãos chegarei”. Do livro anterior, Monção, não esqueço: “afasto as cortinas da tarde/ porque te desejo inteira/ no poema”. Isto é sublime.

Era fascinante discutir com o poeta a sua oficina literária, a sua “ars poética”, descobrir o que o motivava, os segredos da sua carpintaria, da forma como trabalhava os seus versos. Mas também o seu ofício de exegeta sobre os outros poetas. O Luís publicaria dois poemas meus, no “Pássaro azul”, da “Gazeta”, na companhia de um poema de Sebastião Alba. Uma honra para um miúdo que se iniciava e, ainda por cima, admirador do autor de A Noite Divida. Não sei que influência teria, mais tarde, no facto de o meu livro de poesia iniciático se intitular A Pátria Dividida. Vem do Sebastião Alba? Não sei, nunca saberei. Sei que o lia, lia O Ritmo de Presságio e lia A Noite Dividida. O poema que aludi acima era inédito em livro. Um belíssimo texto – “Poema ao pai”. Tinha uma epígrafe de Constantino Cavafy, que seria uma referência poética ulterior, trazia aquele verso celebérrimo: “Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu”. O Luís Patraquim chamou-me à atenção para a beleza do poema do Sebastião Alba e para o fino recorte das imagens. A poesia é o reino das imagens. Das metáforas, sobretudo, para além da sua musicalidade. Aquele poema tinha, a meio, quatro versos notabilíssimos: “Pousa, no joelho, a mão:/ o destino permanece/ na obscuridade assim acautelada/ da palma”. Estes versos são distintos. Só um poeta da estirpe dos eleitos é capaz de algo semelhante. Desde aquela altura que leio isto e me comovo com a beleza deste poema sempre que a ele retorno. A melancolia deste poema. A melancolia é criadora. É fecunda.

Levanto-me, busco na estante o dicionário e procuro a definição de “melancolia”: “tristeza profunda e duradoira, desgosto, abatimento, hipocondria”. Para além disso, alude ao universo da medicina: “afecção mental caraterizada por uma depressão, mais ou menos acentuada, um sentimento de incapacidade, um desgosto da existência, e, às vezes, por ideias delirantes de autoacusação, de indignidade, etc.”

Por que raio escrevo eu esta noite estas notas sobre a melancolia e a criação? De onde me vem a lembrança do poema do Alba? Dá-se a circunstância de que estava aqui, a noite ia já alta, pensando num tema sobre o qual me debruçar, quando pus a tocar, ao acaso, a banda sonora do filme Era Uma Vez na América de Sergio Leone. Digo ao acaso, mas talvez não tenha sido tanto assim. Esta tarde lembrei-me, efectivamente, do filme Era Uma Vez na América. Acho este disco com a música que Ennio Morricone fez para o filme profundamente melancólico. Mas não era sobre a música do Ennio que eu queria escrever. Na verdade, quando me lembrei do meu mestre Patraquim, era para falar da crónica e do facto de ter sido ele a iniciar-me neste género jornalístico e literário, mas tropecei na poesia do Alba e na música do Morricone. Perdi-me na melancolia.

Previno: não estou melancólico. Contudo, hoje, lembrei-me do filme e, sobretudo, de uma cena em que David Aaronson (ou Noodles, a alcunha, interpretado por Robert De Niro) e Deborah Gelly (encarnada por Elizabeth McGovern, que tem uns olhos brutalmente belos) dançam “Amapola”, num restaurante à beira mar, que abrira só para eles. Escrevo isto e calha que toca agora mesmo “Amapola” e vejo aqueles passos lentos de paixão ardente e desespero, de melancolia na lenta dança do David e a sua amada de sempre, Deborah.

Este filme é genial. Vejo-o sempre com lágrimas nos olhos. É longo e complexo. Não é linear. Tem filmes dentro do mesmo filme. Sergio Leone conta a história de um grupo de miúdos amigos em Nova Iorque. Começam com pequenos roubos e acabam como verdadeiros mafiosos. 35 anos depois, o único sobrevivente retorna ao Lower East Side, de Nova Iorque, para saber o que teria acontecido e para descobrir a traição. Um filme sobre a amizade e a lealdade, companheirismo e ambição. Longo, épico, pungente. Nunca me esqueci do “Fat” Moe Gelly, interpretado pelo Mike Monetti, um puto giríssimo que cai numa perseguição e, antes de ser atingido, proclama com candura: “Escorreguei!”. Quantas vezes escorreguei na vida? – pergunto-me.

Oiço esta banda sonora magnífica e recordo-me do filme, releio versos do Sebastião Alba num poema, igualmente pungente, ao pai: “Deixa que o fumo espirale/ a um canto de ti, que envelheces, / quando o regresso das pombas/ é já cinéreo, e senta-te na pedra”, diziam os versos que antecedem aquela imagem belíssima que está na origem do tema da melancolia neste texto para além da comovente e cortante banda sonora do filme de Leone.

Melancolia, angústia, inquietação, abatimento, nostalgia, pena, consternação, saudade são outras formas de dizer tristeza. A tristeza é criadora: “Photographic memories” é uma música desta trilha. É a flauta de Gheorghe Zamfir. Toca com uma beleza contundente. Escrevi uma elegia com este título e à base deste tema, de longuíssimos versos, numa única estrofe, quando morreu o meu irmão Carmo da Conceição Saúte, que emigrado viveu com o nome de Sipho. O tema, o disco, as músicas são dilacerantes. Belas músicas, bela trilha sonora, mas intensamente melancólica. O poema está no meu livro A Viagem Profana.

Pergunto-me agora: de que trato eu verdadeiramente neste texto e esta noite? Da aprendizagem da arte de fazer poesia? Do júbilo de me ver publicado com menos de 20 anos ao lado de um poeta consagradíssimo? Da pungente melancolia dos versos de Sebastião Alba ao Pai? Da banda sonora do filme de Sergio Leone, Era Uma Vez na América, criada brilhantemente por Ennio Morricone? Da tristeza que me invadiu ao ouvir “Photographic memories” no momento em que enterrava algures, em Malelane, o meu irmão Carmo sul-africanizado Sipho? Ou tratei hoje do tema do mistério da escrita e da criação? Ou quis falar da amizade? Do meu mestre Luís Carlos Patraquim? De que falo eu quando falo de tudo isto?

Recordo-me que me sentei para redigir estas notas com a ideia de falar da crónica, género que o Luís Carlos Patraquim me incitou a praticar, era eu estudante no secundário, na Francisco Manyanga, tinha 18 anos. Escrevia na “Gazeta” a “Crónica de Carteira” e assinava com um pseudónimo – primeiro N. Marimbique e depois Nelson Marimbique. Não era imaginativo nos nomes. Contava os episódios que ocorriam nas aulas ou na escola. A minha professora Ilundi Santos um dia veio dizer-me que sabia que eu era aquele Marimbique e fulminou-me com os olhos. Foi um olhar tão assertivo que eu não tive como disfarçar. Capitulei. Ficámos amigos. Falávamos de livros. Ela lia à época Ninguém Escreve ao Coronel, do Gabriel García Márquez. Comentávamos sobre o boom latino americano. Seria do meu início na escrita que eu estava aqui a tratar? – Indago-me. As primeiras palavras levaram-me para o território da poesia porque queria situar o poeta meu amigo, a poesia levou-me para o universo da melancolia, a melancolia foi assaltada pela banda sonora que toca, outra vez esta noite, um dos temas, dos mais impressivos, que me levou, por sua vez, a lembrar a tristeza da perda de um irmão, a origem de um poema prolixo que escrevi em sua memória. E tudo isto gerou um turbilhão de imagens e lembranças.

Levado pela mão, ao matraquear do teclado deste inditoso MacBook Air – continuo a escrever com a força que imprimia nas velhas máquinas manuais AZERT -, trespassado pela flauta de Gheorghe Zamfir, que agora toca de novo, redigi este texto sonâmbulo sobre não sei o quê. Quando lia os meus mestres cronistas daquela época havia um tema a que eles voltavam quase sempre: a falta de assunto. Este texto tem assunto? Ou o seu assunto são vários assuntos? Ou ainda: o assunto deste texto é não ter assunto? Como saberei? Não sei. Ou melhor: nem me parece que queira saber.

Os mistérios da criação são vastos e inextricáveis. Fico agora prostrado a ouvir este solo de flauta. Isto é de uma beleza cruel. A beleza disto dói. Isto, como diria Rainer Maria Rilke num poema, isto é indescritível. Comprei este disco numa pequena aldeia do País Basco – Tafalla. Acordei a ouvir da rua estes sons que me eram familiares e desci em busca do CD. Aí está uma história interessante, a daquela viagem que está na origem do nome do meu primogénito, Irati, que em euskera significa resistência. Também nome de um rio e uma selva. Mas isso é mesmo outra história e já não cabe na prosa, na deriva ou no desvario desta noite. Agora tenho de parar mesmo: está a tocar, outra vez, como se fosse uma primeira vez, “Amapola” e o De Niro dança, com a paixão da sua juventude, num passo lesto e arrebatado – eu diria que está compenetrado, compungido e feliz -, como aliás devemos fazer quando dançamos com a mulher da nossa vida.

 

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