O País – A verdade como notícia

Prole desprovida de amor paterno

Por: Edna Matavel

        

Me pairam as lembranças, dos tempos em que o dia não passava, queríamos que a noite fosse eterna, para diante da figueira ouvir as histórias dos nossos avôs e a sua persistência na luta pela sobrevivência diante da pobreza.

Lembro-me como se fosse ontem, quando eu juntamente com os meus amiguinhos de Olombe, isso na província de Gaza, apressávamos os nossos trabalhos para nos reunirmos na casa do senhor Mbendane, o régulo daquela localidade, para brincar o “mbalele mbalele”. Enquanto isso, o karingana ua karingana fazia as nossas noites, com o balançar das árvores e o cântico dos mochos. Acreditávamos na conexão entre esse cântico, a figueira, as estrelas no céu e o som dos tamboresque se fazia sentir, eram noites eufóricas.

Naquela localidade, a vida estava centralizada no trabalho, e pouco se dava importância à escola, os nossos pais diziam para nós que a escola foi feita para as crianças da cidade, a criança do campo devia focar-se no trabalho em prol da sua sobrevivência, e assim crescíamos nós com este subjacente pensamento.

Na altura, eu era o único filho dos meus pais, morava com eles e a minha avó numa pequena casinha de caniço, passei a minha infância brincando na casa do régulo, pois é lá onde haviam os meus contemporâneos. A história de superação daquela família era comovente para mim, que começava a sentir desejo de ouvir a minha. Movido pelo sentimento da vida alheia, pedi a minha avó que contasse a minha própria história, a única biblioteca da minha vida.

Foi num lindo dia de sábado, quando me levantei as primeiras horas para pastorear o gado e de seguida tirar a lenha, fiz tudo com um sorriso estonteante no meu semblante, seria a primeira vez a sentar debaixo da árvore de mangueira e diante da figueira com minha avó a ouvir o marco da minha família.

Contava a minha avó com tristeza no rosto o sofrimento passado, por algum instante quis chorar, mas segurei firme a ouvir até ao fim.

O meu avô paterno, deixou-a com um filho de 1 ano de idade, viajando a África do Sul em missão de trabalho, onde ficou durante anos, até regressar a Moçambique dentro de uma urna para ser sepultado na sua terra natal. Parou de contar a triste história.

Na altura, o irmão mais velho do meu pai, foi convidado a ocupar o lugar que era do meu avô nas minas, e quando chegou o momento de viver uma nova vida num outro país, deixou a minha avó e o meu pai, levando consigo a sua esposa e filhos.

O meu pai era o mais novo e único que continuava na casa dos meus avós, ele tomou a responsabilidade de cuidar da casa e da sua mãe viúva e com idade avançada. Ele era um simples camponês, que dependia das plantações e do gado, uma vez a cada três meses o seu irmão mandava da África do Sul alguns produtos alimentícios, mas estes, não chegavam a cobrir todas as necessidades.

A vida estava cada vez mais difícil, e o meu tio já não mandava absolutamente nada. Muito jovem, o meu pai saiu de Olombe a Maputo a procura de emprego para sustentar a si e sua mãe, na tentativa de procurar por condições favoráveis, conheceu a minha mãe e se envolveram, tendo ela ficado grávida de mim, era muito difícil naquele tempo ouvir-se falar sobre planeamento familiar, usavam mesmo é a fé.

Sem nenhuma fonte de renda em Maputo, e com mais uma despesa, ou melhor, duas, o meu pai levou a minha mãe a Olombe, ela era órfã e morava com os seus tios, não podia abusar da boa fé e ainda carregar uma gravidez para eles sustentarem. De Maputo a Olombe, as refeições sofisticadas foram trocadas por mandioca, batata doce e mais, mas por amor ela suportou.

Foi neste rio de pobreza e dificuldades que eu nasci. Mesmo pequeno, eu conseguia ver o amor dos meus progenitores, a alegria de me ver crescer, quem diria que fosse uma recordação cheia de lágrimas.

Era triste para mim ser o único filho e não ter com quem brincar e partilhar as histórias, era tão doloroso quando me encontrava com os meus amigos e falavam do que faziam durante a noite enquanto os mais velhos dormiam. Mas, o tempo que levávamos durante a tarde cobria o que não podia sentir na calada da noite.

Ríamos das meninas quando trabalhavam arduamente na machamba, enquanto nós arrancávamos os frutos silvestres, quando levavam horas numa fila a tirar água do poço e nós os meninos nos divertíamos com fisga a caçar os pássaros, era divertido para nós ver que as meninas perdiam uma parte das histórias na casa do régulo, para prepararem o milho na palhota que serviria de refeição para o dia seguinte.

Num desses encontros, despertei um olhar solene por uma das meninas, um daqueles olhares que só via no rosto dos meuspais, não quis aprofundar, era muito novo para aquele tipo de sentimento e acreditava que as meninas só ocupavam o tempo dos rapazes, assim como diziam os mais velhos.

O sentimento de desinteresse pela educação permanecia em quase todas crianças daquela localidade. Num certo dia, recebemos visita em nossa casa, desses familiares de Maputo, era o irmão do meu falecido avô com os seus filhos, vinham fazer uma dessas visitas de interesse, era a época da colheita.

Os filhos tinham a mesma idade comigo, se expressavam diferente, eu ficava admirado em ver como desdenhavam a minha forma de comer e falar, olhavam as minhas vestes como trapos para limpar o chão, pensavam se calhar que sofria de distúrbios mentais, mas era a pobreza que me fazia perder o juízo e parecer demente.

Os filhos de Maputo, como foram apelidados em Olombe. Toda atenção estava voltada a nossa casa, numa localidade como aquela, quase todo mundo se conhecia, e não tardava a notícia de que recebemos visita a se espalhar, é como se tivéssemos recebido um desses artistas de Hollywood.

Depois de eles regressarem ficou a curiosidade, minha mãe cresceu em Maputo, e conseguiu captar algumas expressões e explanou a mim, ela disse que aquele era o comportamento da civilização e a linguagem que eles usavam era dos portugueses, os nossos colonizadores, era preciso acesso ao ensino para aprender a falar em Olombe.

Comecei a ter interesse pela escola, mas o meu pai disse que não era hora de pensar em escola porque eu tinha que cuidar do gado, assim como faziam os outros rapazes, e a escola ficava quilómetros de distância da nossa aldeia. Eu não podia escolher, continuei com minha ignorância.

Anos depois, o meu pai recebeu um convite do seu tio para ir à Maputo, mas a minha mãe estava grávida do segundo filho, foi uma alegria tão grande para mim, e foi mais um motivo para o meu pai enveredar pelo caminho que lhe conduziria a um emprego em Maputo.

Quando fez a viagem e lá chegou, residiu na casa do seu tio e conseguiu um emprego como segurança, trabalhou bastante, e as coisas já iam melhorando, mas depois de algum tempo adoeceu e precisava regressar a Gaza para ser cuidado pela sua mãe e esposa. Naquela toda maratona, a minha irmã nasceu, era uma mistura de sentimentos, onde lutávamos pela vida do meu pai, e mais um membro chegava na família.

Meu pai recebeu tratamento dos médicos tradicionais da localidade, minha casa parecia um desses hospitais, era um entra e sai, tínhamos de dividir a pouca mandioca com os visitantes que ficavam até altas horas, enquanto rezávamos.

Graças aos cuidados e sem esquecer de Deus, ele convalesceu. Não sei o que terá acontecido durante a sua estadia em Maputo ou durante os dias em que esteve doente, mas uma das primeiras coisas que fez depois de retomar a sua vida normal, foi me matricular na Escola Primária de Olombe, já com os meus 11 anos de idade. Para mim, não importava o tempo perdido, na verdade, não tinha noção do que era o tempo. Confesso que nos primeiros dias, era tudo tão incrível e movido pela emoção, gritava em quase toda aldeia “obrigado “, era a única palavra nova que tinha conseguido interiorizar até então.

Eu era apenas um menino cheio de sonhos, que mesmo diante de dificuldades e daquele mato conseguia sonhar, o pouco que aprendia na escola eu partilhava com os meus amiguinhos. Mas, o duro de ser mulher no campo é viver para a enxada e deixar que os homens se interessem pela escola e pelas contas.

Com o nascimento da minha irmã, as despesas aumentaram, os meus pais não conseguiam ter controle de tudo e a minha avó era tão velha que dependia do pouco dinheiro que recebia da pensão por velhice, não cabia nem para comprar um saco de arroz. Por vezes, as nossas refeições não gozavam dos ingredientes propícios, bastava a água e o sal que conseguíamos comer enquanto esperávamos pelo dia do amanhã.

Era mais doloroso para os nossos pais tamanho sofrimento, eu tinha que madrugar para ir à escola sem nenhuma refeição, e ainda ter de voltar e cuidar do gado, a minha avó achou melhor eu interromper os estudos, mas eu não concordei, mesmo sentido que o corpo não aguentava eu queria ser diferente e mostrar o melhor.

Eu costumava ir aos encontros dos donos das terras com o meu pai, e num destes encontros, ele falou com o seu amigo o que estava passando, e ele falou sobre o país vizinho África do Sul, que era a solução para muitos moçambicanos desempregados, mas a história da sua família com este país não era agradável, tanto que disse preferia ficar em Olombe a ir a terra que lhe roubou o amor de pai e irmão.

Depois daquela conversa, o meu pai vivia pensativo, eu nunca pensei que a pobreza perturbasse tanto assim, aprendi com o comportamento do meu pai, que já nem conseguia dar a devida atenção a minha mãe.

Minha alegria em ver a minha Olombe sorrindo para mim, com aquele verde sem fim, o ananás que dava brilho ao nosso quintal e a massala que se duplicava a cada época, faziam-me sentir o menino mais feliz, e com a chegada da minha irmazinha foi uma alegria sem precedentes.

Os dias corriam tanto, e o meu pai precisava criar estratégias para a nossa sobrevivência, e a única solução mesmo era a terra do rand, naquele instante foi bom para nós, acreditávamos que as coisas melhorassem, com refeições atípicas das que costumávamos ter, e seríamos mais prezados na localidade.

Pensei que pudesse aproveitar mais o amor e carinho do meu pai, a maior tristeza ou alegria naquele momento era a terceiragravidez da minha mãe, motivo para o meu pai procurar emprego o mais rápido possível. Ele disse para mim e minha irmã que voltaria, só ia trabalhar para garantir a nossa estabilidade financeira e termos também a civilização das crianças de Maputo.

Chegou então o dia esperado, depois de meses sem cair chuva, naquele mesmo dia o céu ficou nublado que até os mochos não se faziam sentir, não sei se direi que era um sinal de despedida, que sentiria a dita saudade proferida pelas pessoas de Maputo. Era a vez do meu pai seguir viagem rumo a África do Sul, vulgo terra da sobrevivência em Olombe.

Como se de ontem se tratasse, era um domingo pouco comum, nas primeiras horas, em que quase todas famílias estavam descansando em suas casas, havia grande chuva e relâmpagos, todos nós acreditávamos que era o melhor tempo para se ter os sonhos mais profundos, o barulho da água de chuva e trovoada davam mais gosto as histórias de família e reunia-as.

Outras famílias sentiam esse momento bom, eu e a minha família ajudávamos o meu pai com as malas para a viagem. Imediatamente, a minha avó saiu da nossa casinha a palhota que ficava do lado de trás da casa juntamente com o meu pai para fazer algumas orações a pedir proteção dos espíritos da família e de seguida deu-lhe um frasco que continha o tal remédio da sorte, agradeceu profundamente com os olhos avermelhados a sua mãe.

Saindo eles da palhota, encheram-se de abraços, coisas raras para os machanganas de Olombe. Fiquei comovido com aqueles abraços calorosos que os meus pais trocavam, e os beijos acompanhados de lágrimas que escorriam até aos seus lábios, senti o amor deles de perto, que acabei pegando na mão da minha irmã para nos juntarmos num só abraço de despedida de família. Como se de uma coisa tivéssemos certeza, seria uma eterna nostalgia.

Prometeu a minha mãe que voltaria em breve, para que o bebé que ela carregava no ventre nascesse num ambiente diferente.

Por conta do mau tempo que se fazia sentir, somente eu pude acompanhar o pai até a estação, já que era o único homem. Durante a caminhada rumo ao destino, os conselhos de um pai que deixava a sua família em busca de trabalho, fizeram-se a mim. Estava claro naquele momento que eu passaria a ser o homem da casa, responsável pela segurança da família, eu tinha que ir à escola e cuidar do gado, sem esquecer das outras actividades que eram geridas pelo meu pai. Esperei até que o comboio partisse para de longe levantar os braços e dizer, até breve, pai.

Naqueles primeiros dias, a emoção de ter que fazer o melhor na qualidade de bom filho era grande, queria dar orgulho e receber o devido mérito quando o meu pai regressasse à Moçambique.

Os meses iam se passando e as ligações constantes de preocupação e saudade eram demasiadas, mas ainda não tínhamos alcançado o objetivo final.

Com a viagem do meu pai a África do Sul, o paladar conheceu novos sabores alimentícios, já não comíamos de forma repetitiva os produtos produzidos na nossa machamba, vezes enquanto tínhamos refeições que nos faziam esquecer a pobreza, minha mãe teve força de vontade para carregar a gravidez. Até o meu irmão mais novo completar 1 ano de idade, recebíamos mantimentos do país vizinho, mas a saudade já era maior.

Eu tive de interromper os estudos sem nem ter feito uma classe significativa, precisava me dedicar ao trabalho, em Olombe não se tinha uma idade definida para poder tomar certas responsabilidades, o facto de ser homem bastava.

Quando o meu irmão nasceu, fiquei muito feliz, não via a hora dele crescer para me ajudar no pasto, sem inferiorizar o trabalho da minha irmã, não podíamos ignorar as plantações movidos pelos encantos dos alimentos vindos da África do Sul.

Passaram-se três anos e o contacto com o meu pai regredia, é como se de certa forma estivesse nos esquecendo, continuávamos a acreditar que o trabalho o ocupava muito. Para ele, os alimentos que mandava cobriam a saudade que sentíamos, sempre que ligávamos dizia estar ocupado e que ligava de volta, e terminava sem ligar, era triste para mim e meus irmãos.

Na medida em que o tempo ia passando, o contacto desmoronava, e os mantimentos já não chegavam com frequência, voltamos ao nosso humilde mata-bicho com a mandioca, batata doce acompanhados de um chá simples de sabor da água do poço, e ao jantar, com a nossa cacana, feijão-nhemba, o arroz constituía uma novidade para nós, sem contar os dias em que dormíamos apenas com uma única refeição.

No coração da minha mãe existia uma esperança de rever o seu marido em breve, mas enquanto ela enchia o seu coração, o meu pai deixava de entrar em contacto. É como se o vento lhe tivesse soprado, ficávamos ao telefone para ver se ele ligava às horas habituais, e nada dele, foram os dias mais tristes dos que estavam por vir.

Os anos passavam como vento, e o meu irmão crescia sem amor de pai, questionava o seu paradeiro e a única coisa que minha mãe conseguia dizer era que voltaria, estava atrabalhar. Em toda época de quadra festiva nós aguardávamos por ele para a transição do ano, mas nem um sinal dele, tornou-se incógnita.

Lembro-me de um ano, nessa mesma época festiva, em que por intermédio de um vizinho que também trabalhava na África do Sul mandou uma encomenda, e quando perguntámos se ele não voltava, a justificativa era a mesma de que aquela era a melhor época para trabalhar, não podia vir. O mais incrível foi que aquela era a última encomenda que recebíamos dele.

A tristeza da minha mãe em ter que cuidar dos filhos sem ajuda do seu marido, e ainda a sobrecarga de cuidar da sogra,a única coisa que lhe mantinha naquele lar, eram os filhos, pois aos poucos ia se conformando de que havia perdido o seu marido. A sua irmã mais velha chegou a entrar em contacto como forma de persuadi-la a regressar a Maputo, para ter um rumo a sua vida e ela recusou-se por amor aos filhos que já eram desprovidos de amor do pai.

Continuamos nós com a nossa humilde vida, eu contava para os meus irmãos como era a vida antes do nosso pai viajar, e o meu irmão mais novo se recusava a ouvir tais recordações, ele dizia não ter pai.

Geralmente, assistimos na época de quadra festiva o regresso de muitas famílias refugiadas naquele país e era extremamente comum na nossa localidade. Foi num dia 24 de dezembro, quando uma voz profunda gritava hoyo hoyo (bem-vindo), era uma localidade calma difícil de manter o sigilo, saí a correrpara a estação, pensei que seria desta vez, mas não, voltei a casa todo cabisbaixo, e a minha avó pediu-me para ser forte pela minha mãe e meus irmãos. A minha mãe estava do outro lado da casa derramando lágrimas de saudades, é como se o amor lhe estivesse matando lentamente. A minha avó olhava para nós com tristeza, mas amava tanto a nossa mãe que lhe dava esperança e segurança.

A partir daí comecei a odiar este país, acreditava que roubasse o amor das pessoas. Decidi ir à casa do régulo no mesmo dia, para falar com o amigo do meu pai que também trabalhava lá, ouvi ele a falar da tal Tembisa, famosa casa dos machanganas na África do Sul, fixei esse nome e um dia cheguei ao ponto de pensar em fugir de casa para saber o motivo que fez ele nos abandonar. Mas eu não podia deixar a minha mãe, os meus irmãos e a minha avó.

Passaram 9 anos, e consequentemente o meu irmão mais novo também completava a mesma idade, e nunca conheceu o nosso pai. As senhoras de algumas aldeias costumavam ir para sondar se o meu pai já tinha regressado, outras com olhar de pena e outras de zombaria confortavam a senhora minha mãe, já éramos filhos abandonados.

Algumas pessoas já sabiam o que estava acontecendo com omeu pai, e numa dessas conversas no campo, ouvi que ele tinha uma outra esposa e filhos, acreditei que no fundo a minha avó já imaginasse. Foi uma consternação para mim, mas decidi não comentar nada em casa. Depressão é a palavra correcta para designar o que minha mãe estava a passar, como se o centro da sua vida fosse o marido, era difícil se conformar que ele não queria voltar, e trocou a sua família em Olombe pela família sul africana.

A minha avó, tão velhinha sua única satisfação era ver os netos crescerem, e mesmo com a idade avançada não deixava de nos ajudar na machamba. Por algum momento, culpei a elapelo abandono do nosso pai, mas eu percebi que ele prosseguiu como melhor entendeu.

Em cada ano, a seca, a fome fazia-se sentir e eu tinha de tomar providência, o gado já não estava sendo rentável, sobrevivemos graças à uma força suprema. Eu costumava ficar altas horas no mato, a sobreviver com os frutos silvestres, enquanto pastoreava o gado, sem saber o que poderia acontecer no meio daquele nada.

A notícia de que o meu pai tinha outra esposa e filhos não tardou a chegar aos ouvidos da minha mãe e mesmo assim, ela decidiu esperar e cuidar de nós os filhos, o amor estava segando a sua visão.

Tudo a nossa volta lhe remetia ao passado vivido com o meu pai, o que so trazia mais desgraça, ela entrou outra vez em depressão, a sua irmã já tinha aconselhado a voltar para Maputo, mas a esperança lhe mantinha sempre lá.

Passaram dias e noites e nada do meu pai, num certo dia, enquanto eu estava cuidando do gado na mata e a minha irmã na machamba, ouvi gritos do meu irmão mais novo, que me encheram de medo, era ainda muito cedo, ele corria todo preocupado e com lágrimas no rosto, aproximei para saber o que estava a acontecer e ele disse que a nossa mãe tinha ido embora, não aguentava mais levar a vida em Gaza. Deixei o gado e sai a correr, a minha irmã já estava lá molhada de lágrimas, nossa casa ficou triste, era tão pequena que se conseguia notar a ausência de qualquer coisa, fui ao quarto para me certificar, e realmente ela tinha ido embora. Olhei para os meus irmãos, eu não podia chorar, tinha que lhes transmitir segurança, pesou-me a consciência saber que perdemos o amor do nosso pai e de seguida a nossa mãe nos abandonou, como se de nós estivesse a fugir, tentei entender o lado dela, mas nenhuma mãe tem o direito de abandonar os filhos por mais duras que sejam as dificuldades enfrentadas.

Foi um dia muito doloroso, não tínhamos o nosso pai por perto, mas tínhamos o carinho da nossa mãe que conseguia cobrir este vazio, ali só estávamos com a nossa avó. Foi a única que mesmo doente cuidou de nós, educou-nos a seguir o caminho da luz. Seguimos a vida, e nos conformamos com a realidade.

Eu precisava procurar emprego para sustentar a minha família, decidi viajar a Maputo, eu me tornei pai dos meus irmãos.

Tive a benção e apoio da minha avó, ela tinha um dinheiro guardado e deu-me para poder me virar assim que chegasse a cidade. Viajei numa terça-feira, sem nem saber por onde começar, onde ir, e com quem ter, era somente eu, mas as dificuldades da vida me fizeram enveredar por um caminho livre de temor.

Quando cheguei pela primeira vez a capital, olhei para tudo estranhamente, às luzes e os carros que circulavam de um lado para o outro, era tudo uma novidade para mim.

Cheguei então a terminal dos transportes rodoviários na junta, e a única coisa que eu disse naquele momento foi, Deus me ajude. No mesmo dia, passei a noite ali mesmo no parque deitado num dos bancos e acabei conhecendo um jovem de Inhambane, vendedor ambulante, foi quem me instruiu, passei a vender pipocas, correndo de um lado para o outro, de carro em carro para ver se conseguia vender alguma coisa, e continuava a passar a noite nos bancos da junta.

Lembro-me de um dia em que fui assaltado, mas sobrevivi, perdi praticamente tudo o que tinha conseguido, tive que passar a lavar carros e por vezes não conseguia ganhar nem 50mts. O jovem que conheci, foi quem me levou para a casa onde estava a arrendar, enquanto me recuperava. Levantava muito cedo para me fazer a rua, consegui ganhar alguma coisa para mandar a Olombe, comprei açúcar e outras coisas de extrema importância, entreguei a um motorista que fazia a rota Olombe-Chissano.

Fiquei três meses sem ir a Olombe ver minha família, recebi notícia de que a minha avó estava muito mal, e o meu irmão tinha se tornado num menino rebelde e arrogante, vivia caluniando a minha avó, culpando-a pelo sofrimento e peloabandono do nosso pai, chamava-a de feiticeira, foi uma tristeza enorme para mim saber que o meu irmão faltava com o respeito a única pessoa que esteve sempre por perto.

Precisava tomar uma providência e voltar a Olombe, e assim o fiz. Viajei uma semana depois, e quando lá cheguei, a situação estava crítica, minha avó estava lutando pela vida, e a minha irmã mesmo nova tinha que cuidar dela e por vezes dar-lhe banho, e com o meu irmão insolente, só piorava a situação, minha irmã envelhecia com pouca idade por conta do trabalho duro no campo.

Acompanhei de perto o comportamento possessivo do meu irmão, era desgastante, eu me perguntava se o facto de não ter crescido num ambiente de amor e educação paterna teria influenciado. Antes de voltar a Maputo, pedi que tratasse com reverência a nossa avó, e ele disse que não podia respeitar uma velha feiticeira que gerou um filho que abandonou os seus filhos.

Durante a noite, decidi ir ficar do lado de fora a ponderar, fiquei deitado olhando as árvores para ouvir o cântico dos mochos que outrora não ouvia em Maputo, enquanto eles dormiam, eu continuava a ouvir o cântico das aves escondidas nas folhas verdes daquele mato, aquilo me remetia a saudade dos tempos que os meus pais estavam juntos eu ainda miúdo, e gostava de transmitir aos meus irmãos antes de voltar a cidade para que vivessem em harmonia.

Aquele som parecia estar em comunicação com a clarividência das estrelas no céu, decidi entrar para me recolher, tinha que seguir viagem.

Acordamos no dia seguinte, despedi-me por volta das três horas com promessa de voltar em breve, mas a minha avó estava padecendo, olhou-me estranho, como quem nunca mais pudesse me ver.

Cheguei a Maputo estava tudo bem, trabalhei como vendedor ambulante, por vezes chegava a baixa da cidade caminhando enquanto vendia, tive um pouco de esperança de reencontrar a minha mãe, mas na grandeza daquela cidade, não sabia nem por onde olhar e começar a procurar.

Não se passaram dois meses, ligaram-me de Gaza a informar que a minha avó tinha perdido a vida, chorei tanto, senti-me sozinho e a maior tristeza era como estavam os meus irmãos.

Viajei imediatamente a Gaza com os poucos recursos que tinha, quando a irmã da minha mãe soube, também seguiu viagem. Cheguei e encontrei os meus meninos desamparados, no dia seguinte sepultamos a nossa avó, a realidade da solidão veio à tona, não podia deixá-los sozinhos, até o mais novo percebeu a importância que a nossa avó tinha nas nossas vidas, ela lutou por nós até aos confins da velhice.

Não nos restava nenhuma alternativa a não ser esperar que alguém decidisse cuidar de nós, a minha tia foi quem levou a minha irmã e o meu irmão para viverem com ela em Maputo.

Abandonamos a nossa casinha de caniço, com aquele quintal enorme difícil de encontrar nos subúrbios da cidade de Maputo, é como se a nossa história em Olombe estivesse a morrer, a nossa casa ficou de luto e vazia, nos sentimentos órfãos mesmo conscientes da existência dos nossos pais.

Não foi fácil para eles se adaptarem a vida na cidade, a minha tia matriculou-os numa escola primária, isso no bairro do aeroporto, enquanto eu lutava com a renda na casa onde vivia.

Eu sempre ia fazer uma visita aos fins de semana, e o meu irmão chorou para mim dizendo que não queria mais voltar a escola porque zombavam dele, e não tinha domínio da língua portuguesa.

Num desses dias enquanto perambulava, encontrei jovens a debruçarem sobre um assunto que me encheu os ouvidos, aproximei e falavam de um senhor que abandonou a família para começar a vida no estrangeiro, fiquei surpreso, descobri que mesmo as pessoas da cidade e bem-sucedidas eram abandonadas.

Depois de anos, a minha mãe decidiu aparecer, e para a nossa surpresa tinha conhecido um outro homem com o qual tiveram filhos, mas não podia nos levar juntamente com ela porque não éramos filhos do seu actual marido.

Mesmo sabendo que estávamos por perto e precisando do seu apoio, preferiu deixar-nos nas mãos de sua irmã para não perder o seu lar.

Minha tia, sem filhos, cuidou dos meus irmãos com amor e deu educação como se fossem dela, mesmo quando a minha irmã ficou doente foi ela quem cuidou dela e a minha mãe ficou indiferente.

A minha tia convidou-me para passar a viver com ela, e eu aceitei, e com o pouco que ganhava consegui ajudar nas despesas da casa.

Confesso que vivemos dias alegres, como se de certa forma nunca tivéssemos nos sentido desamparados, a nossa tia era a melhor para nós, nunca se deu ao luxo de ligar para a nossa mãe e reclamar, por vezes esquecíamos que ela existia, a nossa tia ensinou-nos como devíamos nos portar e tinha orgulho de nos apresentar aos seus amigos como filhos, meu irmão conseguiu se adaptar na escola e fez algumas amizades, a cada dia melhorava o seu comportamento, e as notas na escola eram boas. A minha irmã, tão humilde, nunca foi de fazer amizades, sempre fechada no seu canto, pediu a nossa tia que lhe mostrasse a porta do altar de graças e começou a congregar numa igreja perto de casa, enquanto eu seguia bem com o meu negócio.

A luxúria domou o coração do meu pai, enquanto ele levava uma vida digna na África do Sul, nós lutávamos por um pão e passando por necessidades, pouco deu importância, nem o desaparecimento físico da sua mãe foi capaz de lhe trazer de volta a casa.

Minha tia conseguiu um celular para mim, e comecei a usar as redes sociais. Enquanto navegava no facebook, deparei-me com um apelido idêntico ao meu, quando investiguei a fundo, descobri que se tratava da minha irmã sul africana, quando entrei para ver o seu perfil, vi fotografias do meu pai em família, fiquei sem saber como agir, chocado e sem forças.

Nós implorávamos pelo seu amor, e ele distribuía sem cessar aos filhos que considerava. Fui contar a minha tia e ela achou melhor guardar segredo, meus irmãos estavam felizes que não podia lhes estragar o momento. Foram tantos aniversários solitários, que não queríamos muito a não ser ouvir felicitações dos nossos pais. Fomos crianças da prole desprovida de cuidados e amor paterno.

Depois que a minha avó foi sepultada, nunca antes tivéramos visitado a sua campa e a nossa humilde casinha, minha tia decidiu levar-nos para lá, por mais que tivéssemos seguido um caminho diferente e feito nossas próprias escolhas, as nossas tradições nos pertenciam.

Viajamos então a Gaza, quando lá chegámos, a nossa Olombe parecia triste, tudo mudado, o nosso quintal descuidado e com as folhas das árvores que caiam no chão, parecia uma floresta, e a nossa casinha foi demolida pelo vento, tivemos que passar a noite na casa do senhor Mbendane.

No dia seguinte fomos à campa da vovó, chorei muito ao lembrar de tudo que passamos juntos, e desta vez os meus irmãos é que me transmitiram as energias positivas.

Quando regressamos a Maputo, decidi procurar novamente a jovem, mas não foi fácil a comunicação porque ela falava inglês e zulo, tinha de usar o google tradutor, tive mais certeza de que se tratava da minha irmã, mas eu fui ignorado. Fui muito persistente, a última vez que tentei falar com eles, disseram-me para não ocupar o seu tempo porque eu era um desconhecido.

O nosso próprio pai, aquele que nos jurou amor, e pela vida que seguiu a levar na terra do rand, não aceitou a paternidade por sermos pobres. E a nossa mãe escolheu o seu lar a ficar com os filhos, incontáveis vezes ela pediu que não ligássemos para ela porque o marido não gostava, como se estivéssemos vivendo graças ao seu suor. Sempre acreditei que um dos quadros mais importantes e magníficos no mundo, era de ver os pais participarem ativamente em cuidar dos filhos, mas os meus pais fizeram-me ter uma visão diferente.

Por vezes víamos famílias constituídas por filhos e pais na nossa vizinhança, tínhamos motivos para nos tornarmos invejosos, mas, em resultado dos nossos esforços nos tornamos livres para entender as escolhas alheias e nos inspirarmos pelas coisas positivas que enxergamos nos outros.

Lutei para que o meu negócio crescesse, e pela saúde psíquica dos meus irmãos, não podíamos deixar com que o passado roubasse a alegria que podíamos construir com o nosso esforço. Foi difícil esquecer que um dia tivemos alguém para chamar de pai e mãe, mas o verdadeiro amor não traz consigo insistência, recebemos o carinho da nossa tia, o seu amor insubstituível, os seus conselhos sábios nos edificaram para nos tornarmos seres incríveis, ela assumiu o papel que a nossa mãe deveria ter assumido, e quanto a nossa família paterna, não sabemos o que diremos, a nossa avozinha partiu com a nossa identidade, foi a única família que realmente tivemos.

São apenas recordações calorosas da minha terra, do grito dos mochos que se faziam sentir diante daquele mato, a vida nos tirou a nossa alegria naquele mato para nos dar a oportunidade de conhecer a beleza dos subúrbios de Maputo. A minha Olombe foi esquecida, mas no meu coração encontrou uma moradia.

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