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“Precisamos de narrativas que nos permitam dizer ao mundo como somos”

África é um continente cheio de boas narrativas, as quais devem contribuir para que o mundo saiba quem são e como são os africanos. Esta é a perceção de Kalaf Epalanga, escritor angolano que em Maio lançou o livro Também os brancos sabem dançar, na cidade de Maputo. Segundo entende Epalanga, os escritores africanos têm a missão de contribuir para que o Ocidente perca os preconceitos sobre o Berço da Humanidade.

Também os brancos sabem dançar é o título do seu primeiro romance. Que relação quis aqui estabelecer?

O livro é inspirando num provérbio angolano que diz “também os brancos conhecem boas cancões”. Troquei o cantar por dançar. E, essencialmente, o provérbio traz-nos aquela ideia de que não devemos julgar alguém pelas aparências. Na verdade, este é um livro de viagens identitárias, nas quais abordo muitas questões de migração, nesta fase em que a Europa quase rejeita os emigrantes.

Foi uma forma de retratar as suas próprias migrações?

Sim, quis retratar a minha própria emigração, motivada pela música. Eu comecei a viajar pela Europa por causa da música. Fiquei na Europa por causa da música. O meu plano inicial era o de chegar lá e ter uma formação académica e voltar para Angola, mas a música convidou-me a ficar a contribuir para o desenvolvimento das cidades por onde passo. O livro começa com uma viagem que fiz em 2008 com Buraka Som Sistema, grupo do qual sou membro. Nessa viagem perdi o meu passaporte em Paris, mas decidi continuar com a viagem porque os meus dois últimos concertos, na altura, na Suécia e na Noruega, eram os mais importantes, daqueles que iriam nos consagrar ou não. Para além de que a banda nem quis fazer os concertos sem a minha presença. Então, a banda pegou um avião e eu decidi entrar num autocarro, já que tinha um cartão de residência no estrangeiro. Correu tudo bem para o concerto da Suécia. Quando já estava para saltar a fronteira para Noruega, entram os polícias de migração e fui detido. Tive de ir parar a cadeia. Dentro desse processo de ter que provar a minha identidade, já que estava sem passaporte, e de reflectir sobre as minhas escolhas de vida, começou o romance.

Este livro tem três narradores. Um deles é uma professora de quizomba. Há uma razão?

Gosto e promovo bastante a quizomba. Não sou um bom dançarino de quizomba, mas acho que é o género pop criado neste universo que se expressa em português que mais chance de expansão tem. Só que é considerada arte menor, do subúrbio e de pessoas sem grande intelecto. Eu discordo. Acho que as pessoas que promovem, fazem e criam quizomba têm um génio artístico que merece ser valorizado.

E o terceiro narrador é o polícia que lhe prende?

Sim, através desse narrador aproveito para contar a história da emigração na Noruega e os contributos dos emigrantes. Por exemplo, a Noruega é conhecida como um exemplo da exploração do petróleo. Eles têm um fundo do petróleo que ajuda em muitas questões sociais, inclusive na diversificação da economia. Tem uma coisa que muitos noruegueses não sabem. Uma das pessoas mais importantes na organização da economia do petróleo e todos os investimentos que surgiram dessa exploração foi um emigrante iraquiano, que se mudou para Noruega porque estava com problemas de saúde de um dos filhos. Esse emigrante já tinha experiência de trabalhar no Iraque e no Kuwait e foi pedir emprego a recém-formada empresa de exploração de petróleo. Assim contribuiu para tornar a Noruega nessa grande potência.

Quando se deu conta de que a sua história poderia dar um romance?

Por acaso foi o escritor José Eduardo Agualusa, de quem sou amigo, que me despertou. Dele escuto todos os conselhos com atenção. Estávamos no Brasil, numa conferência em que ele entrevistava-me, sobre o kuduro, o género musical que eu promovia com a minha banda. Como estávamos com uma audiência brasileira que, na maioria, não sabia o que era kuduro, eu assumi a missão didáctica de explicar quando o género nasceu, quem são as figuras importantes e as influências mais marcantes. No final da conferência, Agualusa virou-se para mim e disse-me que devia escrever a biografia do kuduro. Na altura estava em digressão e não tinha tempo de ir para Angola entrevistar os músicos todos. O conselho de Agualusa foi um mote e, depois, as coisas expandiram-se por outras discussões.

Quis que o protagonista de Também os brancos sabem dançar fosse parecido consigo?

Não essencialmente. A minha biografia dava-me jeito porque tive uma relação e tenho uma relação próxima com o kuduro e com a quizomba. Poderia ser outro personagem, mas achei que aquele episódio na Noruega me daria para trazer outras discussões sobre a Europa. Ou seja, colocar um angolano naquele ponto do globo achei interessante. Obviamente que poderia inventar, mas, como os outros escritores dizem, a realidade é a melhor ficção. Nada melhor que uma história verdadeira para ficcionarmos.

Já reparou que está a construir uma carreira literária que reflecte a internacionalização do angolano nos espaços europeus? O seu livro anterior também é um exemplo disso, com o angolano que comprou lisboa.

Quando editava O angolano que comprou Lisboa, um conjunto de crónicas, todos os jornais portugueses tinha como manchete? “os angolanos estão a comprar Portugal”. Foi o período da nossa economia que permitiu aos nossos empresários cometerem essa loucura. Digo loucura porque o nosso país tem carências graves e aquele dinheiro até nos fazia muito jeito. Então, houve um grupo de empresários angolanos que viu uma oportunidade de investir em Portugal e os jornais ficaram preocupados em perder a sua soberania. Achei graça àqueles tipos de manchete. Inclusive aconteceu um episódio. Às vezes, gosto de sair à rua de fato e gravata. Enfim, porque gosto do fato e da maneira como o mundo se comporta de forma diferente quando nos vê de fato e gravata. Não sei porquê, mas acontece. Nesse dia, de fato e gravata, estava numa tasca perto da minha casa, na altura em que vivia na Baixa de Lisboa. O senhor da tasca saiu muito aflito e perguntou-me se eu era angolano. Eu disse-lhe que sim. Então convidou-me para comprar o restaurante ali no momento. É óbvio que, eu sendo angolano, perguntei-lhe qual era o preço. Dessa situação absurda, revelou-se o escritor e decidi fazer alguma coisa desse momento.

A sua vida parece uma autêntica ficção…

É… na verdade ser escritor é ser uma pessoa atenta, como uma antena. O escritor deve saber ouvir. Muitas vezes o ser humano quer apenas ouvir-se a si próprio ou que as suas ideias sejam ouvidas e validadas. E nunca o contrário. É preciso sabermos ouvir outros pontos de vista.

A literatura é para si a continuidade do que não valeria exprimir por via da música?

A música é mais imediata e, por isso, as reacções são muito rápidas. O processo, com os livros, é mais lento, por isso duram mais. Não escrevo livros em busca do meu eu. Ou seja, gosto de escrever livros que sejam importantes para o meu tempo e que possam ajudar os que vierem a seguir. Tento, com os meus livros, deixar pistas, mapas e ferramentas para que os que vierem a seguir tenham uma vida um pouquinho mais facilitada. Penso que essa também é minha função.

Como começam as suas narrativas?

De variadas formas. Com uma conversa, uma cancão, uma notícia de jornal. Mas é mais com conversa. Mesmo os que não estão publicados.

Por que resolveu lançar o seu primeiro romance em Maputo?

Porque preocupo-me com ideia de manter vivo o diálogo entre as culturas dos PALOP. Para mim, os livros e a música são pretextos para me aproximar das culturas e das pessoas dos países pelos quais tenho amor e respeito. A literatura é essencialmente uma conversa.

Já agora, o que move a configuração do espaço na sua narrativa?

Sou um autor preocupado com o espaço urbano. Até porque nas minhas viagens pelo mundo encontro os que não nos imaginam com espaços urbanos ou cidades com problemas de trânsito. Divirto-me muito com isso. Então, quando penso em escrever, penso em trabalhar nos lugares que os autores que me formaram não chegaram ou então que se consagraram com uma literatura mais apegada ao espaço rural. Acho que nos cabe a nós fazer com que o Ocidente conheça os nossos países do nosso ponto de vista e não daquela maneira romântica, paisagística. Precisamos de muitas narrativas, em diversas artes, que nos permitam dizer ao mundo o que somos e como somos.

O que gostaria que os leitores moçambicanos encontrassem em Também os brancos sabem dançar?

Razões para sorrir, para gostarem da sua própria música, da sua própria cultura, e, com isso, passassem a entender que merece estar nesses grandes palcos, que essa cultura precisa estar nesses grandes palcos.

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro o livro Luanda, Lisboa, paraíso, de Djaimilia Pereira de Almeida, e o disco Mati, de Selma Uamusse.

PERFIL

Kalaf Epalanga nasceu em 1978, em Benguela, Angola. Também os brancos sabem dançar é o seu primeiro romance. Publicou os livros de crónicas, O angolano que comprou Lisboa (por metade do preço) e Estórias de amor para meninos de cor. Foi cronista do jornal Público e da Rede Angola. É membro da banda Buraka Som Sistema. Actualmente, vive em Berlim, na Alemanha.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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