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Porquê todos os homens deviam filosofar?

“Cogito, ergo sum” René Descartes

Porque enquanto humanos corremos riscos de sermos seres pensantes mas que não pensam. E o pensar é um exercício espiritual que busca o sentido das coisas compreendidas no tempo e no espaço. Esta actividade é condição sine qua non para o homem salvaguardar a sua consciência e tornar-se o princípio das suas acções.

À toda humanidade é mister filosofar em nome duma contínua actualização da consciência sobre o trajecto do nosso mundo e a preservação da nossa condição humana. Entre filosofar e pensar há uma relação de subordinação, na medida em que filosofar é a forma mais sublime de pensar. Ao invés de pensar o mundo, num sentido vulgar de procurar  o seu significado dentro dum sistema convencionado, o homem deve pensar o mundo, num sentido regenerativo e inconvencionalmente humanitário. Urge o homem aprender a pensar “fora da caixa” e gerar cada vez mais consciências cósmicas e menos locais. O tipo de homem que a filosofia nos pode oferecer quanto mais cultivada ela for é um homem cosmopolita, abolidor das fronteiras e eterno destruidor das cavernas platónicas.

Ainda que se nos afigure onerosa tal tarefa de pensar o onto-existencialismo das coisas do mundo, o desafio é deveras mais nobre em relação à abdicação mental capaz de nos gerar um mundo fantasmagórico. Devemos filosofar como forma de salvaguardar a nossa existência num mundo em que as coisas ainda cooperam entre si numa ordem supra-sensível. Em primeiro lugar, haja o pensamento, depois a acção, de modo que esta seja comedida e racionalmente justificável.

Descartes já havia dado tal aviso: ''para agir bem, basta pensar bem''. Agir bem significa operar uma acção que resulta duma consulta minuciosa da nossa própria faculdade racional. Um indivíduo que não pensa torna-se vulnerável a inadequadas decisões. E se ainda lhe restar a consciência, no fim da sua acção, perguntar-se-á: ''porquê fiz aquilo?'' – uma pergunta a fazer quando se nos escapa o sentido das nossas acções – ''PORQUÊ?'' é a pergunta-mãe de todo o acto de pensar. E o porquê busca exclusivamente o sentido. Em todos os casos, o sentido equivale à direcção, ordem, lógica, coerência, seguimento – elementos que gnosiologicamente nos permite relacionar connosco mesmos e com as coisas à nossa volta. Imagina se nos escapasse essa faculdade de pensar que é sustentada pelo próprio acto de pensar? Restar-nos-ia o pathos, o instinto e o preconceito. E como seria nos mover num mundo guiado pelo pathos, instinto e preconceito? Seria paradoxalmente caótico e automático. O homem agiria em função dos seus desejos imediatos, sem ponderar eticamente os meios e consequências. Doutro lado, ele agiria docilmente sob o comando de correntes ilusórias. A ausência da filosofia nos abre dois mundos: um mundo nihilista em que os homens se permitem todas as loucuras possíveis resultado de estímulo-resposta e outro em que os homens não são mais que ovelhas sob o comando de doutrinas fantasmagóricas.

Estes são os mundos dos quais Sócrates quis nos livrar, quando, em vida, apelava para os atenienses reflectir sobre as coisas que faziam no seu dia-a-dia. Ao longo da caminhada filosófica, ele ia percebendo que as pessoas faziam suas actividades sem pensar nelas, ou seja, ignorando a sua essência, a razão da sua existência e implicações. Sócrates questionou os poetas e eles não souberam dizer-lhe o sentido da sua poesia. Os oradores não souberam comunicar-lhe o sentido da sua retórica. Os juízes não lhe responderam o sentido das leis. Não que estas coisas, per si, não tivessem sentido, mas os homens haviam alienado a sua razão ao sonambulismo da rotina, do hábito e dos preconceitos consuetudinários. Todos eles achavam que sabiam o que, na verdade, não sabiam.

Todavia, não sejamos Sócrates, sejamos uma espécie de Sócrates. Este homem grego foi definido tautologicamente como um pensador, como quando se define alguém como ser falante, ouvinte ou respirante, sem lhe acrescentar nada que esteja fora da natureza humana. Mas porque merceu tal destaque entre os humanos quando  ele apenas exercitou uma faculdade inerente a todos os humanos? Sócrates nem precisou de grandes sacríficios para fazer justiça à sua faculdade racional, ou seja, ele viveu uma vida comum dum homem da polis, chefe da família, rodeado de amigos com quais trocava ideias e copos de cerveja. Sócrates foi o modelo dum homem normal que simplesmente se pôs a exercitar as faculdades que lhe eram intrinsicamente humanas. Por isso, sendo nós homens definidos como animais racionais por natureza temos obrigação de fazer justiça à essa faculdade que nos distingue superiormente de outros seres vivos.  

No séc. XXI, a filosofia vem perdendo espaço na esfera intrapessoal e interpessoal por conta das ideologias em forma da política, religião e moral social. Hoje em dia, pouco questionamos a justiça dos nossos sistemas políticos, a sabedoria dos mandamentos religiosos e o bem dos nossos valores sociais. Andamos preocupados com o imediato e ignoramos o necessário. Como consequência disso, vivemos em tempos de consumo desmedido, desequilíbrio económico, terrorismo ideológico,  insegurança nuclear e torpeza sexual.

Falta-nos o filosofar, condição sin qua non para nos evadirmos da caverna platônica e destruirmos os ídolos baconianos que nos impedem de ser super-homens nietzschianos. Ousemos pensar as coisas em primeira mão, antes de nenhuma teoria ou doutrina alienantes.

Devemos filosofar, pois quanto menos filosofamos, mais propensos a horríveis crimes estamos. O povo hitlerista e o povo stalinista foram, por excelência, a expressão duma humanidade que abdicou da actividade de pensar fora dos sistemas a que se encontravam submetidos ao ponto de permitir que milhares de crianças, mulheres e homens judeus fossem conduzidos a câmaras de gás. Era uma humanidade cujo pensamento estava preso em camisas-de-força da ideologia. A filosofia é necessária para todos os humanos, pois glorifica o que há de mais sagrado no homem: o espírito. O tempo de filosofia é agora. Não há idades para filosofar-se.

Se fôssemos ensinados a filosofar desde criança, ao assistirmos aos desenhos de Cinderella, já nos teriamos perguntado porquê, quando o feitiço da fada madrinha expirou, desfizeram-se o vestido, o cavalo, a carroça, os motoristas, mas os sapatos de cristais de Cinderrela mantiveram-se intactos.
Ao sermos introduzidos à religião, se calhar, indagassemos se Deus é todo-poderoso, porquê não acaba duma vez com o senhor diabo.

Ao passearmos pelo supermercado, talvez, pudessemos questionassemos porquê um anel de diamante custa mais caro que uma bicicleta.
Ao vermos a televisão, provavelmente nos perguntariamos porquê essa senhora que desfila semi-nua é mais rica que meu pai camponês.

Porém, nada disso acontece. Somos nascidos com calhamaços de lições à nossa espera, sem antes termos experimentado o mundo. Nas escolas, somos ensinados as respostas e nunca as perguntas. A ordem da vida é primum vivere, deinde philosophari. Mas se os romanos tivessem dito o contrário, como o mundo seria? O que nos é mais conveniente: viver para pensar bem ou pensar bem para viver?

Filosofar é desconstruir os velhos hábitos mentais.

 

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