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Por cima de toda a folha

Conheci o Heliodoro Baptista em 1987, numa das suas raras vindas a Maputo, à época, e tornámo-nos amigos imediatamente. Recordo-me de, numa ocasião, no jardim Tunduru, meses antes de ele dar à estampa o seu primeiro livro Por Cima de Toda a Folha, me ter dado a conhecer o seu original. Estranhei que o livro não tivesse aquele que eu considerava o seu mais belo e pungente poema até à data – “Poema à Filha de Thandi” – que era e é um poema arrebatador. Felizmente, o Heliodoro ainda foi a tempo de incluí-lo no livro. Na verdade, ele pensava que o mesmo deveria fazer parte de um livro posterior. Por Cima de Toda a Folha foi editado em 1987, e o livro seguinte – A Filha de Thandi – seria publicado em 1991.

O Heliodoro era um poeta da linhagem dos poetas que se revêem numa poesia como forma de conhecimento, numa poesia eclética. Releva daí o facto de a discussão que se despoletou sobre a questão da intertextualidade, naqueles anos, não ser de todo, em relação a ele, alheia. A poesia de Heliodoro é uma poesia que nos interpela, que nos confronta, que nos defronta, que nos inquieta. Mas também uma poesia que dialoga com a melhor poesia e com os poetas que ele reputava.

Quando me encontrei, em Junho de 1988, em Lisboa, com o meu mestre Baptista-Bastos, levava-lhe o livro do Heliodoro. Numa carta (naquele tempo nós correspondíamo-nos através de missivas) que ele me redigiu a agradecer os livros que lhe oferecera, considera o Heliodoro um grande poeta. Dei boa nota dessa opinião do Baptista-Bastos ao Heliodoro e sei que ele ficou muito feliz com tal reconhecimento. A despeito do quilate da sua poesia, quando publica o seu livro de estreia, que era a súmula de 14 anos de escrita, Heliodoro Baptista estava marginalizado.

Heliodoro Baptista: “Eu penso que o livro, de facto, talvez me tenha retirado definitivamente de uma certa marginalidade, orquestrada pelo Poder.” O poder, que fora aliás tema de muitos dos seus poemas, entre os quais o emblemático “As outras mãos”, um dos seus mais belos textos: “As mãos do poder, meu amor, /são mãos humanas”, começa assim o poema que tem como epígrafe uma citação de “O Estaleiro”, de Juan Carlos Onetti, um escritor uruguaio, um dos maiores prosadores em castelhano do século XX: “É estranho que aqui ninguém soubesse mesmo de nada!”

Este livro de estreia tem poemas belíssimos. Os primeiros versos do poema alusivo ao massacre de Wiriamu nunca me saíram da cabeça: “Vede/ a amabilidade das manhãs/ exprimindo-se tão bem/ por sobre o espaço das bombas”. É notável. Ou estes versos de “Alegoria”: “Em Inhaminga, meu amor, / estão as armas apontadas para o céu/ mas só há pássaros”. Isto é de um grande poeta. A voz de um eleito.

Heliodoro  Baptista era um grande leitor de poesia. Pablo Neruda foi, indubitavelmente, um dos seus poetas electivos. Os filhos menores, à época em que os conheci, Pablo e Guy, recitavam o poema 20 dos Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada. Não é despiciendo, aliás, o nome do filho Pablo, a quem ele dedicou um belo poema “Variações Onomásticas”: “E tu, meu filho, / que carregas esse nome diabólico/ por que dizes já com 2 anos/ a mim de cenho mortuário/ que assim, assim mesmo, / «estás farto desta merda»?

Outro poeta que ele leu com admiração e com quem dialogou imensamente na sua poesia é o português Herberto Hélder. Aliás, o poema “Paisagem com poeta em segundo plano” começa e termina com dois versos entre-aspas, que ele não identifica o autor, que são de Herberto: “Tantos nomes que não há/ para dizer o silêncio”. Creio mesmo que Herberto foi o arquétipo do poeta que ele pretendeu ser.

Herberto Hélder: “Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.” Assim começa o livro Poemacto, que se seguiu ao A Colher na Boca, que tinha aquele belíssimo poema “O Amor em Visita”: “Dai-me uma jovem mulher, com a sua harpa de sombra/ e seu arbusto de sangue. Com ela/ encantarei a noite”. Imagino o Heliodoro, rodeado dos seus fantasmas, lendo, na Beira, este imensíssimo poeta. “Em cada mulher existe uma morte silenciosa” – escreve Herberto. O amor e a morte perseguiram-no, de certo modo.

Homem de palavras, cultivava-as com perícia de relojoeiro suíço. Os seus poemas, para além de terem soberbas metáforas e imagens poderosas ou até mesmo pavorosas, eram feitos de palavras e de um ofício que lembra a “Ars Poetica” do Rui Knopfli, outro poeta cujo amor e devoção nos aproximava. Num poema de A Filha de Thandi, intitulado “À volta das origens”, dedicado a Rui Knopfli e a Eugénio Lisboa, o diálogo intertextual é explicito com um texto do Knopfli: “Sim, de facto, ‘uma só e várias línguas/ eram faladas e a isso/ por estranho que pareça, também chamávamos pátria’”.

Heliodoro Baptista: “As palavras amadurecem, transcendem-nos. / Como os dias. Este trajecto imemorial.” – isto na “Poema à Filha de Thandi”, que assim termina: “Mas os poetas têm boca. / As metáforas são o seu próprio ardil/ para que outros leiam/ o que ele nunca disse.” As Palavras Amadurecem seria o título de uma antologia publicada, em 1988, na Beira pelos dez anos da página “Diálogo” do Diário de Moçambique.

Há imensíssimos poemas do Heliodoro Baptista de que gosto implacavelmente. Poemas que nos desassossegam. Poemas que querem subverter. Aliás, Jorge Viegas, que inicia, em Quelimane, um convívio literário, escreverá no belíssimo poema “Subversão”: “À subversão devemos/ A estatura do que somos”, depois de asseverar que “o poeta subverte os planos da linguagem”. Heliodoro Baptista, um poeta subversivo, no poema “De nós e dos outros”, que tem uma epígrafe do japonês Yukio Mishima (“A verdadeira pureza é sujarmo-nos e, no entanto, não nos sujarmos realmente”), escrevia: “Querem-nos, a alguns, bem sentados/ na fofa realidade escamoteada/ a uma outra realidade desavinda/ onde crescem agudas, ásperas vozes.”

Ouso falar extremamente de mim mesmo”, escreve Heliodoro Baptista em A Filha de Thandi. E diz adiante: “da imobilidade do poema/ explodirá o mais prodigioso grito de amor”. Aqui está a definição da sua poesia. “Falo-vos destas vozes mansas, chamando-nos docemente, / deste país em agonia mas vivo, / com seus fluxos, grutas, segredos, xistos, volição, / onde, de resto, se confundem/ estas recém-nascidas palavras, / adventícias, nunca. Consumadas, talvez.”

Heliodoro Baptista: “O pecúlio são os filhos, / o horizonte raso dos versos, / a doçura oriental dos teus olhos/ e o castanho desenvolto/ do teu corpo inextinguível / onde, às vezes surpreso, / restauro comovidamente/ o deus que em menino/ quis ser.” Belo poema dedicado à musa soberana Celeste. No livro de estreia dedicara à Celeste um outro belíssimo poema: “Gravidez”: “Traço a traço/ desvendo-lhe as feições/ por onde a vida rufla/ as grandes asas”. Este livro – A Filha de Thandi – está cheio de belas metáforas. Num poema, “Prova dos Nove” (dedicado ao Eduardo White e à Olga): “Assim crescem as arestas da angústia, / as mesas estão cada vez mais vazias”. Isto é extraordinário. Num outro, “Preço dos sonhos” (dedicado ao Jaime Santos e ao Fernando Cunha): “É de vidas que se fala aqui/ e, sobretudo, de destroços humanos, / do que restou de todos nós.”

Gosto maningue muito (“maningue muito” é pilhado ao Craveirinha) do poema “A Uma Ingénua Nórdica”. Queria citá-lo na íntegra mas aqui não caberia. Também gosto do pungente “Ao Futuro”, dedicado ao filho Guy: “Saberás um dia que o amor nunca/ nasce, nunca deve. O amor é, / sempre foi, sempre esteve”, começa assim o texto que fecha o livro. Tem versos seminais: “Rigorosamente contemporâneo/ da explosão cósmica/ que, contam, declinou ao princípio/ do escuro e da luz”. Termina com a seguinte estrofe: “Nunca aceites ser mártir. / Ama o teu presente e o futuro/ e, por certas tardes de sábado, / de olhos porventura humedecidos, / limpa docemente a minha tumba”. 

Haveria muitos outros exemplos para citar, nesta noite em que o evoco. Quero terminar com o poema “Hablando, com amor, em setembro”, que ele dedicou a Ungulani Ba Ka Khosa, ao Eduardo White e a mim próprio. No meu livro, A Pátria Dividida, de 1993, tenho um poema dedicado ao Heliodoro. Em A Filha de Thandi, ele dedica-me o poema “O Amor em movimento”. O Heliodoro foi dos poetas mais generosos no afecto e isso vê-se como proliferam dedicatórias em seus livros. Este poema invoca Pablo Neruda no diálogo que ele estabelece connosco. “Nosotros, irmão Pablo, / também fazemos milagres a sorrir”, di-lo. Ou: “a realidade aqui é um repto/ um grito vocabular”.

Releio este belíssimo poema e tocam-me estes versos fulminantes. Heliodoro era um poeta inspiradíssimo. Apetece-me citá-lo todo, mas falta espaço para o fazer. Leio: “Nosotros, irmão Pablo, / nós também somos os mesmos:/ com astúcias, tumultos, originalidade, / na dor exaltante desta transparência carnal/ se sermos coisas, aromas, corações atónitos (ou atómicos) / abraços penitenciários, suicídios de luz.

Heliodoro Baptista: “Os jardins ainda não são jardins, / a fome es muy fuerte e alguns dias, seus poentes, / dão-nos a gramática incontrolável desta candonga/ da desordem programada, o rigor selectivo desse negócio/ que é a desolação animada pelos anunciados humanismos, / das imperiais conveniências do dólar”. Este poema é lindíssimo e me sinto orgulhoso de me ter sido dedicado, como ao Khosa e ao White: “Entretanto, aqui estamos,/ numa casa, em Setembro,/ com nossas praças, hablando em Setembro,/ nesta cidade índica e austral, esculpindo/ contigo em Setembro de todos nós, / que produziu depois esta fúria de amarmos a liberdade/ e esta coragem, sem exibições de nunca temer o látego,/ o banco do tribunal, as armas, / quando nos localizam e apontam a subversão/ de amar o valor erótico, beijar o sexo como a uma hóstia,/ a ajoelhar defronte do altar de uns seios, sem ocultações, / puros, feridos pela paixão de se ser homem, entidade,/ motor próprio, paisagem sempre nascida em cada cópula,/ porque o amor é tudo, sempre será tudo e todos, / belo, paranoico, avassalador, canibal, suspeito,/ veneno, vitamina, lâmina de punhal que dá vida, soro vital”.

Não haveria melhor definição para a sua poesia nem haveria melhor inscrição no horizonte intemporal desta escrita na qual se inscreve (passe-se a redundância) a sua memória e a sua biografia como, por exemplo, nestes belos e doloridos versos, que citei acima. A sua experiência está neles sublimada: “Por que não experimentam prender as estrelas?” – indaga-nos. Querem melhor metáfora? Este pungente texto, como tantos outros que Heliodoro produziu, na sua tumultuosa vida, são a lídima expressão de uma voz singularíssima da nossa lírica, de um poeta que nunca abdicou do amor e da liberdade, de um poeta quizilento, se quisermos, mas que tudo o que escreveu, como queria Rui Knopfli, foram poemas de amor, aliás, apanágio de grandes poetas.

Termina assim aquele poema que ele nos dedicou: “Não poder viver senão uma vida/ é como não viver”. Não tenho mais palavras esta noite. Ella Fitzgerald e Louis Armstrong cantam “April in Paris”, um velho clássico dos anos 30, composto por Vernon Duke, com letra de E. Y. Harburg, para um musical na Broadway (Walk a Litle Faster) e interpretado profusamente ao longo de anos: Billie Holiday, Bill Evans, Charlie Parker, Sammy Davis Jr., Count Basie, Frank Sinatra, Sarah Vaughan, Wynton Marsalis, eu seil lá!

Heliodoro Baptista nasceu a 19 de Maio de 1944, em Gonhane, Quelimane. Morreu a 1 de Maio de 2009, na cidade da Beira. Poeta inconformado, está na primeira linha da lírica moçambicana. Sofreu, por muitos anos, o opróbrio da marginalização. Foi jornalista e contista. Para além dos títulos acima referidos, publicou, em 2005, Nos Joelhos do Silêncio, no qual retoma alguns dos seus temas electivos, entre eles a mitologia de Thandi. Ele sempre recusou o silêncio. Mesmo quando precavia os filhos: “Pode ser que tenha de regressar/ aos dias das mil ciladas. //Como a outros, na exactidão deste tempo, / nada é imune.” Foi sempre poeta do amor: “Digo-vos: no amor não importa o espaço/ e muito menos o tempo”. Celebro-o aqui na companhia de Ella Fitzgerald e de Louis Armstrong: “never missed a warm embrance” (nunca perdi um caloroso abraço). O seu “grito vocabular”, mais do que um repto, é uma realidade esta noite. Por cima de toda a folha.

 

 

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