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Poeta ou Poetisa (?) Louise Glück divide falantes de português em dois: neologistas e puristas

Que Louise Glück é Nobel de Literatura 2020, o mundo já sabe. Ora, que este facto fez com que a norte-americana poet(is)a reencarnasse o centro de um debate que andava já esquecido no universo literário da quarta língua mais falada no mundo, tenho imensas dúvidas de que ela própria saiba.

Se Sophia de Mello Breyner Andresen assumiu em diversas intervenções que não era poetisa e sim poeta por julgar que houvesse/haja no primeiro termo um viés falocentrista que inferioriza as mulheres relativamente aos homens em igual exercício, Cecília Meireles fê-lo intencionalmente, no poema “motivo” por encarnar um sujeito poético masculino, como se pode ler:

“Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.”

Glück, mesmo sem querer, divide a comunidade de falantes de português em dois: os neologistas e os puristas. Tudo porque diversos veículos de informação, sobretudo electrónicos, usaram nas suas manchetes o termo “poeta” para se referir a esta grande voz da literatura mundial, autora de 12 colecções de poesia e alguns trabalhos de ensaios poéticos.

Ao que se pode denotar, pelo menos até esta parte, não há nenhuma explicação morfológica que justifique esta tendência que vai granjeando mais simpatias. As razões, se considerarmos o argumento de Sophia de Mello Breyner Andresen et al, são mais sociolinguísticas.

Diga-se, no entanto, que esta batalha, se existe, possa ser vencida pelos neologistas porque tal como pondera Antoine Meillet (1866-1936), a história das línguas é inseparável da história da cultura e da sociedade porque a linguagem é um fenómeno eminentemente social.

Assumindo, nestes termos, a língua como um facto social conforme atesta Ferdinand de Saussure (1857-1913), no sentido em que se trata de um sistema convencional adquirido no convívio social, resulta que esta (a língua) caracteriza-se por ser “um produto social da faculdade da linguagem.”

Por assim ser, é pelo exercício da linguagem que o homem constrói sua relação com a natureza e com os outros homens. Portanto, se nesse exercício houver uma visão do mundo que conflitue com o uso linguístico, essa relação não será fecunda porque mesmo parecendo óbvia, a questão da língua como exercício de socialização é complexa porque a passagem do social ao linguístico e do linguístico ao social não é feita com tranquilidade.

Valerá, portanto, a atenção dos sociolinguistas em assumir este debate (poeta/poetisa) como actual e premente de forma a esclarecer as nuances por detrás deste debate aparentemente supérfluo porque é já evidente que, tal como recordam-nos GOMES & CAVACAS (2004: 24) “as palavras entram na língua por adopção, pelos falantes, não por imposição.”

Embora seja importante assumir que a língua é dotada de uma tenacidade que a protege dos modismos de época, é também salutar compreender, nesta batalha entre neologistas e puristas, que esta comporta-se, também, como um organismo vivo e dinâmico. E, na fala dos autores supracitados, a língua e, logo o léxico não tem realmente um dono, e sim construtores e utentes que através dos tempos, tem descoberto, nas palavras, maneiras de encontrar expressão para as suas necessidades e de transformar o uso que faz dessas palavras no seu significado.

 

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