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“Perdemos as coordenadas do nosso destino”

Há uma semana, Aldino Muianga lançou seu novo livro: Asas quebradas, romance que investe numa estória cuja protagonista vive tentando descobrir quem é e quais são as suas origens. Esta linha temática bem forte na 15ª obra de Muianga não surge ao acaso, resulta de o escritor ter percebido que os moçambicanos perderam as coordenadas do seu destino, o que ensombra o futuro do país. Assim, Asas quebras, de acordo com o autor, é um porto de partida para uma longa viagem à busca de nós próprios, porque “a literatura é um factor de evolução”.

Tem um novo livro. Por que voar com Asas quebradas, nesta aventura literária?

Asas quebradas é uma metáfora sobre a nossa vida em geral. Todos nós temos um percurso, com momentos bons e momentos altos, e esta é uma estória de uma personagem que pretende levantar voo, seguir o seu caminho, o que acontece com muita dificuldade porque encontra obstáculos sérios.

Obstáculos que envolvem duas gerações…

Sem dúvidas, porque muitos problemas na vida são herdados dos pais. Os filhos pagam pelos erros que os pais cometem. Não é que o livro seja pessimista. Há muitos momentos na vida que nos levam a querer desistir. E a personagem chegou a esse ponto. Asas quebradas é uma marcha manca por assim dizer.

Este é um romance sobre a busca da identidade, como referiu na cerimónia de lançamento. Por que retratar o tema, agora, tão discutido no passado?

A identidade discutida neste livro é uma tentativa de reencontro connosco próprios porque a partir de um determinado momento da nossa história perdemos as coordenadas do nosso destino. Se calhar, porque não sabemos bem de onde viemos. Não nos estamos a inserir devidamente na sociedade e o nosso futuro como cidadãos parece um pouco ensombrado.

O que espera que o debate sobre a identidade que, eventualmente, surja deste livro, resulte?

Pelo menos quero que reflictamos sobre o nosso passado e sobre o nosso presente. Este livro é um ponto, quer dizer, porto de partida para uma longa viagem a busca de nós próprios. Grande parte da nossa população, sobretudo urbana, tem muitas dificuldades em saber de onde vem e o seu papel na sociedade. São estes pontos que desperto neste romance.

Discute identidade no singular, por via do livro, não seriam várias?

Sim, mas também temos uma identidade individual, a forma como o indivíduo se projecta em relação a si próprio. Claro, depois a identidade do grupo, que deve estimular a pergunta em relação ao papel do indivíduo no seu seio.

Mesmo partindo do livro, acha que a maior crise identitária está no indivíduo ou no colectivo?

Em ambos, mas tudo começa connosco, depois, progride para a família e para o grupo.

Esta estória é baseada em factos reais. Foi por isso que lhe custou escrever, a certa altura?

Sim, e confesso que levei muito tempo a escrever o livro [cinco anos]. Poderia ir por outras vias, mas quis escrever como se passou.

Ao mesmo tempo que temos um reencontro, no final do livro, também há um desencontro que continua…

Foi intencional. É como digo, o fim de uma jornada é o início de outra. De facto, a personagem encontrou-se, mas isso não foi algo completo.

Como foi reviver a estória ao nível fictício?

Tive muitos momentos para reflectir e achei que trazendo a estória à ficção, seria outra forna de partilhar a ideia sobre a identidade com os leitores. Além disso, revivi o passado da personagem que retrato no livro. Sinto que há uma boa combinação entre o real e a ficção.

Em que momento do romance pensou em parar de escrever?

Na metade do romance. Aí tive várias saídas. Então resolvi parar e reflectir sobre as possibilidades de caminhar sempre ao encontro de situações que são vividas pelo cidadão comum. Aí tive imensos problemas porque não sabia que caminho percorrer para continuar a obra.

Houve uma crise de imaginação?

Penso que não. Tratou-se de dúvidas. Talvez quisesse fazer muita coisa ao mesmo tempo. A partir da metade do livro, era capaz de escrever de outra maneira. Depois de tomar a decisão pelo caminho que segui, não mais parei. Não tive mais dúvidas. Quando cheguei ao final, fiquei aliviado porque este deve ser o livro que mais me custou escrever.

O que lhe moveu a continuar?

Tudo que tem um começo deve ter um fim. Eu tinha chegado a um ponto em que a viagem não tinha mais regresso.

Logo no princípio, a narrativa leva-nos pelo mar até Ilha Mariana. Mas depois nos devolve a Chamanculo. Como autor, preocupa-lhe a ideia de explorar novos espaços sem deixar de preservar os territórios habituais da sua escrita?

O recurso aos espaços suburbanos encerra os personagens no seu habitat. Faz mais sentido descrever as personagens tendo em conta o meio onde vivem. O cenário deve estar condizente com o tipo de estória que se relata. Esta combinação é tradicional em mim e é natural, porque esse espaço que pertence a personagem pertence a mim também, já que absorvo as vivências e sentimentos delas.

Asas quebradas foi escrito na Africa do Sul. Como é escrever sobre sua terra, sua gente, a partir de fora do país?

As vivências e os sentimentos das personagens estão em mim. As suas emoções são as mesmas que as minhas, digamos assim, na medida em que acontecem num cenário que eu conheço. Então, é absolutamente natural que as personagens reflictam parte daquilo que eu sou.

Ao mesmo tempo que discute a questão da identidade, incorpora na narrativa elementos místicos da tradição moçambicana. É com alguma pretensão que este traço sobrevive na sua obra?

Acontece porque as pessoas têm crenças enraizadas em si. E, em função dessas crenças, comportam-se de uma determinada maneira. Os fenómenos místicos na vida das pessoas têm uma influência poderosa nos seus comportamentos. As pessoas encontram explicação para os seus problemas nos seus antepassados. Acontece-me isto porque os meus antepassados estão satisfeitos. Nesta estória há um grande peso da nossa cultura porque na realidade pensa-se que se alguma coisa corre mal é porque os antepassados estão tristes connosco.

Então, escreve para legitimar ou para condenar essa atitude?

De certo modo, para legitimar, porque se as pessoas acreditam em coisas espirituais é muito difícil faze-las desacreditar nisso. Mas também para condenar, porque muitas coisas que no livro os magos disseram não aconteceram, foram uma fraude de informação.

Qual é a mensagem implícita que configura por detrás do sofrimento que Macisse e Celinha enfrentam nestas Asas quebradas?

Existe uma grande carga de sofrimento nas duas personagens, é verdade, mas a vida é assim. Fui por essa via também para mostrar que, na vida, as dificuldades não nos devem parar. E Celinha, a protagonista, é um exemplo de luta nesse sentido.

A estória afectou-lhe emocionalmente?

Sim, porque absorvo, quando escrevo, os sentimentos das personagens. Quando escrevi o livro Nghamula, por exemplo, há uma passagem ali que me fez chorar…

No livro, família não é, arrisco em dizer, quem cria, mas quem gera. Apercebeu-se que estava a caminhar por essa via?

É um aspecto muito importante que atravessa o livro, a ideia de que se existe um membro que não é nosso consanguíneo é um estranho, sobretudo porque no livro há uma personagem que entra numa família de uma forma ilegítima. Procuro discutir no livro a influência que os antepassados têm sobre nós e nos nossos comportamentos…

Há influência?

É uma questão filosófica essa… não sei se existe ou não influência, mas muita gente acredita que há. Por isso temos muitas pessoas a depositar flores nas campas dos cemitérios, por acreditarem que os antepassados têm influências nas suas vidas.

Coloca a família como o alicerce de tudo, na obra, e o amor?

Conta, porque deve haver um sentimento de estima entre pessoas do mesmo grupo. Sem isso, comportamo-nos como estranhos, uns em relação aos outros.

Parece que quis, com recurso aos antepassados e situações que afectam Celinha, quem nasceu na casa de um homem que não era seu pai, protestar contra seres fantásticos que muitas vezes intrometem-se nas nossas vidas…

A uma determinada altura, tornou-se em mim uma obsessão o desprezo que algumas pessoas têm com as suas origens e tradições. Não é que eu seja um fanático em relação à preservação das tradições, mas respeito. Estamos a perder as coordenadas do nosso destino. Já não sabemos quem somos. Então, há essa obsessão de convidar o leitor a fazer uma pausa e a reflectir sobre a sua própria cultura.

Precisamos acreditar nos nossos antepassados para preservar a nossa cultura?

Nem tanto, mas reconhecermos os valores positivos ajudam-nos imenso na inserção social.

Nestas Asas quebradas escreveu o que acredita, o que sente ou apenas o que viu?

Escrevi o que sinto e o que vi, sem ser fanático do exercício de rituais culturais. Mas, se existem pessoas que acreditam nesses rituais e isso melhor a sua inserção social, por que não as deixar fazer isso sem promover chacota?

Asas quebradas discute, igualmente, a condição da mulher, em Moçambique e no continente em geral. Como descreve essa condição?

Em Moçambique, em África e no mundo fora a mulher é considera um elemento secundário da sociedade, sem direitos, oportunidades que merece. Toda a carga de sofrimento da sociedade recai nelas. Esta é uma forma de protesto que faço, expondo as situações por que elas passam na sociedade, violações e violência doméstica, sem falarem, porque os crimes que são cometidos contra as mulheres é melhor silenciar, na realidade, não têm direito a protestos.

Ainda acredita que a literatura pode mudar o futuro do país?

Penso que sim, a literatura ainda consegue fazer com que viajemos pelo universo sem sairmos do lugar. A nossa perspectiva sobre outro, sobre a cultura e universo pode modificar-se com a literatura. A literatura é um factor de desenvolvimento humano, e, sendo humano, social também.

O que deve ser feito nesse sentido?

Quanto mais pessoas estiverem envolvidas na escrita e na leitura, melhor nos compreenderemos. O importante é ter acesso ao material, o que, infelizmente, não está a acontecer. O livro é um factor de peso no desenvolvimento das sociedades.

Consegue apontar o valor da nossa literatura, actualmente?

Há uma dinâmica aqui. Antes publicávamos poucos livros porque tínhamos poucas editoras e não havia tanta gente que pretendíamos que houvesse a escrever obras de qualidade. Com o aparecimento de novos escritores, penso que a nossa literatura está a enveredar por outros caminhos e acredito que o futuro é risonho.

Este é o seu 15º livro. O primeiro a lançar pela editora Cavalo do Mar. Ocorre-lhe dizer alguma coisa a respeito dessa “estreia”?

Sinto-me bastante satisfeito com a qualidade gráfica da obra e do processo editorial. Houve muito diálogo para produzir uma obra com muito equilíbrio. Encontrei muito apoio e compreensão do editor para que a obra saísse com esta qualidade. Vi na editora uma força de querer fazer as coisas. Penso que promete muito.

Desde que publicou o conto “A vingança de Macandza”, na revista Tempo, passam 31 anos. Mas neste 2017 celebra 30 anos de publicação em livro, com uma média de uma obra em cada dois anos. Conta-nos como foi chegar aqui.

Tem sido um caminho muito interessante de percorrer, emocionante mesmo, com alguns altos e baixos. O que retiro como lição é aprendizagem que tive com as pessoas com quem falei e que me permitiram ter personagens. Estou muito satisfeito com o que consegui, partilhar experiências com muita gente por via da escrita. Sinto-me compensado.

Um percurso que não se circunscreve apenas a Moçambique. Recentemente, por exemplo, lançou livros no Brasil. Sentiu-se compreendido por aquele público?

Certamente. A minha ida ao Brasil foi ao reencontro de cidadãos que pensam que pertenceram a África. Muitos dos brasileiros sentem-se africanos. Foi uma outra etapa da minha carreira, o reconhecimento do que faço em outras latitudes.

O seu trajecto literário valeu-lhe uma homenagem na Feira do Livro de Maputo, organizada pelo Município. O que o gesto representa para si?

É um gesto honroso, o reconhecimento do trabalho que fiz. E mais, nasci aqui, vivi aqui e conto estórias daqui. Esta homenagem tem um significado muito especial para mim, porque vem da minha cidade, o que me dá responsabilidade de seguir com esta obra e de retratar a nossa realidade. Estou muito agradecido ao Conselho Municipal de Maputo pelo gesto.

O que um evento como Feira do Livro de Maputo pode acrescentar ao nosso país?

É um espaço de intercâmbio, traz uma novidade de fazer interagir pessoas de diferentes profissões e diversos sentires.

Por que ler Asas quebradas?

Para que possamos nos reencontrar com o nosso passado.

E isso é importante?

É, porque assim ficamos a saber quem somos, o que queremos e como queremos. Literatura é um factor de evolução. A literatura somos nós.  

Sugestões artísticas para os leitores d' O País?

Sugiro Contos de Cantuária, de Geoffrey Chaucer.

Perfil

Aldino Muianga nasceu a 1 de Maio de 1950, em Maputo. O seu primeiro nome, na verdade, foi Altino, mas um Padre convenceu o pai do escritor a alterar para Aldino. Começou a ler aos cinco anos de idade e a sua primeira secretária foi a máquina de costura da mãe. É licenciado em Medicina Geral pela UEM e especializado em Cirurgia Geral pela Universidade do Zimbabwe. Actualmente, lecciona na Faculdade de Medicina da Universidade de Pretória, na RSA. Venceu prémios como José Craveirinha, Da Vinci e TDM. O notável percurso literário ao longo dos 30 anos de publicação em livro valeu-lhe homenagem na edição deste ano da Feira do Livro de Maputo.

 

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