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Os recriadores da tradição I – uma escuta aos grandes

Eu (…) ouço o que você não diz

Eefje de Visser

Na verdade, o excerto retirado da música “Afdwaalt”, do álbum De koek, de Eefje de Visser, diz-nos, a certa altura: “Eu só ouço o que você não diz”. Retiramos o “só” na frase da cantora holandesa porque, além de ouvirmos o que não é dito, igualmente, conseguimos perceber o que nos é colocado à escuta, no caso, em dois álbuns de grandes autores da música moçambicana: Caminhos, do saxofonista Otis, e In the Groove, do guitarrista Jimmy Dludlu. Quer num quer noutro, predominantemente preenchidos pela componente instrumental, temos a prova indelével dessa necessidade de se recriar a tradição, enquanto um conjunto de valores e de traços identitários que fazem de um património algo comum.

Sem deixarem de ser artistas além-fronteiras, capazes de se exporem ao mais alto nível, Otis e Jimmy Dludlu, em cada última aparição discográfica, sublinham que há uma matriz cultural, no caso, mais do Sul do país, sobre a qual se alicerça o sentimento e a imaginação do músico. E, quando agem desta maneira, assumem o poder da representatividade de cada um que reencontra um momento de si nos ritmos tocados. Por exemplo, no álbum Caminhos, constituído por 12 títulos, Otis devolve-nos as emoções de “Elisa wê”, que nos lembram outros autores esquecidos nesta amnésia colectiva. Mais do que recriar esse clássico da música moçambicana, o saxofone ressuscita contextos sociais, desafiando a capacidade de a memória lembrar como “Elisa wê” torna-se um hino popular a sobreviver tanto às vicissitudes do tempo.

No mesmo diapasão, na música “Kensani”, do In the Groove, Jimmy Dludlu vai recuperar os sentidos da felicidade e da bênção para celebrar o que de melhor a vida/ Deus tem a oferecer. À imagem de Otis, em Jimmy o verbo também é escasso. Ainda bem, pois, logo se vê, fica salvaguarda a beleza causada pela combinação dos instrumentos, ao mesmo tempo que se ouve e percebe-se porque Isabel Novella é das vozes mais autoritárias do país.

Ainda em In the Groove, o carácter alegre de Jimmy Dludlu vem ao de cima a partir de “Masseve”, uma música feito pêndulo a oscilar entre o reconhecimento de se ter beneficiado de coisas boas e o eterno agradecimento. Esta é um som de palco, cheio de imagens coloridas, dessas mulheres nossas que dançam tanto quanto abanam o traseiro, sem receios, como quem vibra em euforia.

Em “Pom”, do disco Caminhos, acto contínuo. Com uma sonoridade a motivar uma dança feita de satisfação, ali ouve-se o que não é dito, mas sugerido de outro modo, afinal, a falta da palavra nada tem a ver com silêncio opaco. Longe disso, a instrumental faz-nos procurar o verbo, os predicados e um provável autor da música original. Encontrando ou não, ficamo-nos na certeza de a música ser de todos, como se, individualmente, tivéssemos contribuído para a sua existência. Tal como nesta primeira música, na última do disco, “Nkosi sikelel’ Africa”, Otis faz com que mergulhemos no que há muito está inserido num cancioneiro popular, dos moçambicanos, por um lado, e do continente inteiro. Este é um som mais pausado, introspectivo e cheio de muita carga emocional. Tudo propositado, que nestas coisas de lidar com a tradição a catarse também é algo importante. Quiçá, desta maneira, o saxofonista quis nos conduzir a uma descoberta de nós próprios como parte de um continente que cada vez mais precisa ser cantado.

Enquanto Otis deixa de ser festivo na sua recriação, quando introduz “Nkosi sikelel’ Africa”, no Caminhos, por tocar um tema sério, num tom grave, Jimmy Dludlu continua festivo em “Ha deva”, mesmo retratando um assunto austero. Sem dúvidas, Jimmy vai buscar essa música para contar que, à imagem do passado, muitos de nós nos esquecemos de que a vida é efémera para todos e que ninguém vai partir com os bens adquiridos na terra.

Portanto, Otis e Jimmy Dludlu, ao recriarem parte da tradição musical moçambicana, adicionam à nossa música a dimensão universal que muitas vezes nos falta. Além disso, cada um dos artistas faz do seu respectivo álbum um conservador de memória colectiva, revitalizando sempre a nossa arte popular. Quem me dera, depois disto, pudesse ver estes dois tipos no mesmo festival de jazz, em Maputo.

 

 

 

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