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Os números e o BCI

O óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar.

Clarice Lispector

 

Se os membros do júri estão a pensar em premiar Saga d’ouro com o BCI de Literatura, talvez detestem o teor deste artigo. Claro que o objectivo do texto não é confrontar, questionar qualidades ou idoneidades. Longe disso. Sem nenhum tipo de presunção, aqui o interesse é apenas expressar publicamente o que não me sai da cabeça há alguns dias. Mas vamos por partes.

Que o Prémio BCI de Literatura tem perdido credibilidade já não é novidade nenhuma. Qualquer coisa tem acontecido para que leitores como eu questionem algumas decisões. Ano passado (até…), uma das duas obras distinguidas foi a belíssima Matéria para um grito. Em vários corredores ouviu-se gente a dizer: “teria sido melhor se o prémio fosse todo entregue a Álvaro Taruma”, poeta que se aborreceu por eu ter escrito que Matéria para um grito merecia o BCI de Literatura. Na altura, percebi, Taruma foi “atacado” por alguns confrades e até decidiu descarregar as mágoas em mim, através de uma sms pouco simpática. Mandei-lhe passear, mas, ao fim de algum tempo, a amizade resistiu e continua a ser com ele que falo sempre que me ocorre ir a Inhaca (espero a mesma resistência na relação com o Cossa e com o Furdela, considerando o que defendo neste texto). Em todo o caso, não deixa de ser curioso. Taruma reagiu “mal”, quando falei bem de um livro seu e com fair play, quando falei “menos bem de um outro”. Vai-se entender os poetas.

Enfim, recuei um ano porque decidi, uma vez mais, mencionar o que considero melhor livro publicado em 2019, no país. Começo por descartar Saga d’ouro, de Aurélio Furdela, pois a mim faz confusão que um autor candidato a um prémio literário integre o grupo que o promove, divulga ou regulamenta como se tratasse de um assessor. Quer dizer, é uma questão de princípios (e eu nem tenho princípios melhores do que ninguém). Ou se trata de concorrer ao prémio ou se trata de o divulgar. As duas coisas em simultâneo parecem-me estranhas e pretensiosas. E, nesta edição, Furdela está ou esteve dos dois lados. Atenção. Não tenho nada contra o autor (que o considero amigo na mesma proporção que Taruma e Cossa) e tão-pouco contra o seu livro. Aliás, o romance de Furdela até é apreciável. Lá está uma boa narrativa. Por isso, é Prémio INCM/ Eugénio Lisboa. No entanto, não basta um livro ser bom para o seu autor merecer uma distinção. Há valores relacionados com a transparência que devem ser salvaguardados. Então, a continuidade de Saga d’ouro na lista dos eventuais Prémio BCI de Literatura desta edição é no mínimo esquisita. Se eu estiver enganado em relação ao que digo ou julgo saber, mostrar-me-ei receptivo às críticas.

Não obstante, ainda que fosse certo Aurélio Furdela participar nesta edição do Prémio BCI de Literatura com o seu mais recente romance, vamos lá, por ser incapaz de fazer a opinião do júri, ainda assim eu não distinguiria Saga d’ouro. Nem a esse e nem a tantos outros que estão na lista. Por exemplo, Nhambaro e O barrigudo e outros contos, de Hélder Muteia, O universo num grão de areia, de Mia Couto, O comboio que andava de chinelos, de Pedro Pereira Lopes, Quatro histórias, de João Paulo Borges Coelho ou Duas vidas à procura do mar e outros contos, do meu velho Albino Magaia. Seria decepcionante se um desses livros fosse anunciado o melhor de 2019.

Entre os títulos nomeados para a presente edição, excluindo Mahanyela, de Nely Nyaka, e Um rapaz tranquilo, de Carmo Vaz, que não os li, o melhor livro é, na minha opinião, O menino que odiava números. Em 102 páginas, Celso Cossa insere-nos numa história absolutamente fascinante, na qual somos incitados a ser crianças, adolescentes, jovens e até mesmo velhos. A partir dos números e de um miúdo que os odeia, no princípio, o escritor vai-nos mostrando que o universo é a soma dos objectos, do que conhecemos e do desconhecido. Duas histórias são contadas no livro. Primeiro, a dos irmãos Lae e Erty, que, com o avô Titino, recriam a imagem das tão importantes e agora escassas sessões de karingana ua karingana. A outra história, a principal, é a de Laerty, o menino que odiava números. Bem dito, Laerty é o protagonista da história que Titino conta aos seus dois netos. O resultado desse cenário é um universo fictício muito bem retratado, a realçar qualidades de um autor maduro, que sabe o que está a fazer quando tem a pena na mão.

O menino que odiava números revela um escritor sensível ao que se passa e não acontece na província onde mora, quiçá, por isso, a predisposição de fazer da ficção um evento sempre em renovação. No livro, Cossa aproveita-se e bem da aversão das crianças em relação à Matemática e dá a isso um enredo necessário, no qual o poder da história está na perspicácia de envolver o leitor e despertá-lo para uma nova maneira de repensar o mundo e a existência. E o livro de Cossa é sobre a simplicidade de pequenas coisas, aquelas cujo sentido complementa a nossa humanidade e preenche os nossos vazios.

Para mim, O menino que odiava números não só é o melhor livro publicado ano passado como é dos melhores publicados nos últimos anos em Moçambique. Há ali uma ficção construída com rigor estético e técnico (e as ilustrações de Luís Cardoso são verdadeiramente preciosas), com imensas estratégias narrativas originais. Está aí um livro que pode ser adoptado ao ensino em Moçambique, por reunir todo um conjunto de factores pertinentes para despertar a imaginação das crianças e até mesmo dos adultos que ainda não descobriram os encantos a volta dos números e da Matemática da vida.

O mais fácil seria os membros do júri atribuírem o Prémio BCI de Literatura a Saga d’ouro, de Aurélio Furdela, a Rabhia, de Lucílio Manjate, ou a’O comboio que andava de chinelos, de Pedro Pereira Lopes. Por terem sido já distinguidos em outros concursos, se calhar, poucos questionariam a decisão do júri. Os três são livros interessantes, de facto, porém, O menino que odiava números (escrevi mais ou menos assim em 2019) é a melhor e mais surpreendente proposta literária entre as 14 obras semi-finalistas ou finalistas que li.

Contudo, nesta quinta-feira, a partir das 17h, no Auditório do BCI, em Maputo, será anunciada a óbvia verdade mais difícil de se enxergar. E pronto. Viva a literatura moçambicana!

 

Título: O menino que odiava números

Autor: Celso Cossa

Editora: Escola Portuguesa de Moçambique

Classificação: 17

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