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“Os municípios devem ter um pelouro cultural activo e os activistas culturais devem fazer parte”

Féling Capela é muitas coisas. Vive a poesia como poucos e fotografa como só ele sabe. Encontra-se no universo artístico há muitos anos, e, a partir daí, tem contribuído para promover artistas nacionais. Nesta entrevista, o Gestor Cultural do Centro Cultural Moçambicano-Alemão abre o seu coração para partilhar o que lá existe. Fala do seu percurso artístico, das suas experiências dentro e fora do país, critica a hipocrisia que existe no meio artístico e ainda deixa uma clara sugestão para os municípios, em particular o de Maputo.

 

Comecemos com o seu texto, “Meus poemas são vida”: “Meus poemas bem sentidos não mentem/ Meus poemas têm bombas/ Bombas da consagração da paz e amor/ (…) Meus poemas são humanistas/ Meus poemas não são racistas/ Meus poemas excluem os egoístas/ Meus poemas têm berço de Jah”. Qual é a história deste poema que foi escrito num só dia e que foi apresentado num festival de Durban?

Este poema foi escrito dessa maneira porque participei de várias residências durante a semana em que estive naquele festival com vários poetas internacionais. Aí apercebe-me que o sentido de ser poeta ou de ser poético varia de indivíduo para indivíduo. Tem a ver com a sua formação e com as suas sensibilidades. Lá apercebi-me que a maioria dos poetas africanos tinham a mesma visão, falando de amor ou narrando as suas próprias histórias. Lembro-me que esteve lá um amigo meu, americano, que, quando soube que eu era moçambicano (antes pensava que eu era português, por causa da língua), ficou muito assustado. Nesse dia estávamos com a Thuli, a filha de Jacob Zuma, uma grande poeta, e estávamos a falar entre amigos. Então, quando se apercebeu que eu era moçambicano, tentou afastar-se por Moçambique ter sido conotado como corredor de drogas, naquele caso de Bashir. Para contornar isso, eu fui buscar os meus antepassados e/ ou as pessoas que me dão vida, que guiam as minhas directrizes de luta.

 

E assim surgiu o poema… Nesse contexto, a arte serviu de ponte na aproximação ao seu amigo americano?

Exactamente. Foi isso, mas também a arte foi determinante para eu perceber como é que as pessoas olham para nós, como país, a partir da imagem que nós projectamos daqui de casa. Há aqui causa e efeito… é muito importante que o país repense na imagem que deve vender no estrangeiro. Se as pessoas de fora, sempre que vêem as notícias sobre Moçambique acompanham assuntos sobre drogas, violência doméstica e coisas assim, o país será visto dessa forma. E ficamos conotados…

 

A poesia é uma das suas motivações. Como é que esta manifestação literária se impõe na condição de alicerce do seu percurso artístico?

Eu venho do movimento Hip-Hop. A poesia, em mim, ganha expressão quando perdi o meu pai, em 1992. Nessa altura eu ficava muito isolado, até porque logo de seguida aconteceram vários outros episódios muito negativos de violência contra a minha família. Fomos despejados de casa onde moramos. A minha mãe, eu e todos nós ficamos vários dias a morar na rua. Eu encontrei respostas para a minha consolidação e integração poética (dentro do meu espaço imaginário, da minha alma e da minha mente) na obra de José Craveirinha. Eu acho que a minha construção, a minha forma de pensar e de agir devo, primeiro, a José Craveirinha, enquanto poeta. Depois vieram outros episódios, como a depressão causada pela separação de uma namorada ou como a história de Papilon, uma narrativa de amor, de liberdade e de fuga.

 

A poesia, para si, também é uma forma de fuga?

É, é uma forma de fuga da realidade, para criar os meus mundos e expressar-me. Eu encontro a fuga dos meus problemas na expressão artística. Se estou triste, por exemplo, a conduzir, ou canto uma música ou oiço, e aí instaura-se o meu momento artístico. Às vezes, estou em silêncio, a ouvir os outros; outras vezes, quero gritar, quero me libertar.  Outras vezes ainda, apetece-me escrever ou compor. Estes momentos de fuga criam uma espécie de liberdade e de paz comigo mesmo.

 

Eu já não me lembro quem disso isto. Mas a frase é mais ou menos assim: “todos aqueles que cantam, escrevem ou representam, fazem milagres todos os dias”. Identifica-se com isso?

Eu acho que sim, indo buscar esse pensamento de que os poetas são antenas da sociedade. A nossa missão, enquanto artistas, é despertar, até os governantes, e eu sou muito da arte do povo

 

É por ter arte no peito que, em 2015, o programa African Voices, da CNN, exibiu um documentário sobre si. Primeiro, o que significa, para si, ser uma voz africana? Segundo, o que significou para si o reconhecimento do seu trabalho pela CNN?

É esse chamado que não sabemos de onde vem. Por alguma razão, nós estamos a fazer arte, fazemos arte e somos activistas sociais e culturais, somos poetas, fotógrafos, retratistas da sociedade e jornalistas também. Todas são profissões nobres. Ser uma voz é um privilégio, sim, mas também, às vezes, não tens vida própria. Tens de te abster de algumas coisas…

 

Um dos projectos por si realizados, que mexe com as pessoas, é o Noite de Poesia. Que resultados esse programa lhe permitiu alcançar ao longo desses anos todos?

As Noites de Poesia deram-me tudo, o que sou hoje e o que pretendo conquistar. Com as Noites Estávamos a soldar pilares. Hoje, quando olho para trás, vejo muitos sacrifícios. Eu peguei, por exemplo, no projecto solo acústico e integrei na plataforma Noites de Poesia, quando o Amarildo foi estudar para Itália, há por aí 11 anos. Por exemplo, a vinda do CNN para fazer documentário sobre a minha vida, é também um fruto das Noites de Poesia. Além do CNN, já vieram cobrir em as Noites televisões como DW, da Alemanha, e a BBC. Tudo isso acontece depois de ter estudado fotografia na escola de Ricardo Rangel, que me recomendou ao Notícias. Lembro que todas as terceiras sextas do mês eu saía a correr do Notícias para ir fazer o programa. Nesse projecto juntamos pessoas que estavam dentro do sistema literário, pessoal da periferia de Maputo e jovens da política e de outras esferas sociais. Passou e passa pelo programa muita diversidade. Quando pensamos no Festival Internacional de Poesia, claramente que está uma construção resultante das Noites de Poesia.

 

Esse Festival Internacional de Poesia e Artes Performativas é a maneira encontrada para fazer de Moçambique um palco do mundo?

Exactamente. Só para ter uma noção, nós trouxemos para o festival, na primeira edição, mais de 20 países. O elenco todo do festival teve por aí 90 pessoas. Grande parte dessa gente veio a Moçambique pela primeira vez, e elas levaram consigo Moçambique no coração.

 

O intercâmbio cultural é um dos objectivos do Festival. O quão longe querem chegar?

O colectivo Poetas d’Alma é, aparentemente, um colectivo abstracto, mas toda a gente faz parte, logo à prior. Aonde queremos chegar? Eu disse que, recentemente, em 2014, participei no Festival Internacional Poetry Africa, na África do Sul. Esse festival albergou cerca de oito países. Nós fizemos com mais ou menos 25 países e com um nível de qualidade incomparável. Onde queremos chegar? Primeiro, queremos marcar os espaços na região africana. Queremos fazer o maior festival em África e, depois, queremos entrar para a batalha de maior festival de poesia do mundo. Garanto que nós vamos conseguir realizar. Quando o projecto surgiu, muitos não acreditaram e perguntaram-me como eu conseguiria fazer sem dinheiro. Mesmo assim, avançámos e na primeira edição não paguei caché e nem passagem de nenhum artista internacional. Estou a falar de pessoas que vinham da Suíça, Quénia, Alemanha, eSwathini, etc. Essas pessoas viajaram a custo próprio. Nós apenas garantimos hospedagem e toda logística de transporte e alimentação, e conseguimos esse intercâmbio.

 

Com quem contam para o sucesso deste festival?

Com as pessoas que gostam de nós. Quando nós começamos a correr atrás de projectos como estes, também criamos muitos inimigos e afastamentos. Se calhar, até acabamos por ficar ignorantes e até arrogantes, não por necessidade, mas porque, se calhar, começamos a abstermo-nos do palco dos nossos ambientes e do nosso habit, para nos focarmos em coisas mais concretas ou nos nossos sonhos. Então, contamos com o bom senso das pessoas e com a aposta dos artistas.

 

Enquanto preparavam a segunda edição, chegou a COVID. Como será o festival este ano?

A tal palavra mágica e famosa: reinvenção. Poetas d’Alma passou para o digital. Eu, em particular, desde que os centros culturais fecharam em simultâneo, fiquei sensivelmente três meses sem sair de casa, a aprender a usar plataformas como ZOOM e a trabalhar em outros projectos. Por exemplo, a agenda do Centro Cultural Moçambicano-Alemão, onde sou Gestor Cultural, está a ser feita de forma virtual. Nesta edição do festival queremos fazer um programa virtual que tenha impacto em Moçambique e no mundo inteiro.

 

A fotografia é outra sua grande paixão. Como é contar narrativas através de uma câmara? 

É muito loco. A primeira publicação da minha fotografia como destaque do jornal Notícias foi dos maiores orgasmos que já tive. A foto estava ali, e depois assinada com o meu nome: J. Capela. Eh pa, esta cena não existe… Foi das melhores coisas que me poderiam acontecer na vida. Eu estava a trabalhar com pessoas que fotografaram Samora Machel, figuras que tu nasces e cresces a ver… E, de repente, tu estás a cobrir a história do país e o teu nome está associado à história do povo. I’m sorry, não tem descrição possível.

 

É o primeiro moçambicano, salvo o erro, a ter uma fotografia publicada na New York Times. Como se alcança feitos desta dimensão?

É esta oportunidade de ter estado ou de estar no Notícias. Fiquei lá aproximadamente 10 anos. Aprendi com os mestres a fotografar, e a minha fotografia saiu do circuito formal de publicação no jornal para o circuito artístico através da literatura. Viajei por cerca de 15 ou mais países, justamente por causa da arte de misturar poesia e fotografia. Faço exposições de forma virtual nas minhas performances. E com exta experiência já trabalhei com National Geographic. Isso tudo deu-me habilidades. Há-de ser por isso que, por exemplo, a CNN veio para fazer documentário sobre mim.

 

E continua a colaborar com a The President?

Eu colaborei com essa revista que faz a cobertura dos chefes dos estados de todo o mundo. Eu era o fotógrafo oficial deles em Moçambique. Isso não teria acontecido se eu não tivesse passado pelo Notícias.

 

Como é que Feeling Capela se define como artista e como homem?

Acima de tudo, eu pretendo alcançar o nível de ser um ser humano. Está-se a perder muito do ser humano, todos os dias.

 

O que o anima e o que lhe perturba no desempenho das suas funções, como artista e como gestor cultural?

Hoje, estou a descobrir novas coisas. Eu não sou muito de sentar num escritório, mas quando me convidaram para fazer parte do projecto do Centro Cultural Moçambicano-Alemão, a partir da Embaixada da Alemanha, do corpo directivo do próprio CCMA, eu era repórter normal na redacção do Notícias. Saía com toda a gente para ir capturar material na rua. A minha adrenalina era essa: vida muito corrida e frenética. E, de repente, tenho de me sentar no escritório como Gestor Cultural. Aprendi a reinventar-me, trabalhando no escritório, recebendo vários artistas.

 

De facto, trabalha com vários artistas. Pode-se dizer que os artistas moçambicanos são solidários uns com os outros?

Há solidariedade, sim, de um grupo. Na posição onde eu estou, agora, sinto olhares violentos e falas por detrás, uma agressividade, porque, às vezes, as pessoas nem sabem como tu te construíste.

 

Também há falsidade nesse meio artístico?

Também há muita falsidade, muita hipocrisia. Não só nas artes, mas também no nosso meio jornalístico. Mas também há muita solidariedade. Há pessoas que eu tenho de agradecer, como Belmiro Adamugy, Frederico Jamisse, Alfredo Mueche, Júlio Manjate, Rogério Sitói, Alcides Tamele, Francisco Manjate e Gil Filipe. Pessoas que me ergueram…

 

O que está em falta nas artes nacionais, para que nos tornemos uma potência?

Temos tudo para ser uma potência. Em todas as cidades costeiras, dos países africanos e asiáticos por onde já passei, a baixa da cidade é uma zona turística, e não é sítio para fazer lojas. Do mesmo jeito que o Presidente Comiche está a tirar as pessoas dos mercados, tem que fazer uma vistoria e restabelecer com artes. Pegar nos artistas e dar emprego para criarem. Os conselhos municipais têm de ter um pelouro de cultura activo e os activistas culturais devem fazer parte desse pelouro porque são eles que movimentam a indústria criativa e até hotelaria do país. O turismo depende muitos dos artistas.

 

Sugestões de duas obras artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro Não mais lavarei os pratos, de Cristiane Sobral; Men they see us, que está a passar na Netflix; TsotsiCidade de DeusAmericanah, de Chimamanda Adichie; Niketche, de Paulina Chiziane; a obra de Frantz Fanon e a poesia de Amílcar Cabral.

 

Perfil

Féling Capela é poeta, fotógrafo, produtor de eventos e gestor cultural no Centro Cultural Moçambicano-Alemão. Teve o seu primeiro emprego em 2005. Nessa altura, trabalhou na British Council, como mentor do projecto Power in the Voice. Ao longo desses anos, produziu o primeiro show ao vivo de Azagaia e do grupo Micro 2, frequentou o curso de Literatura na Faculdade de Letras e Ciências Sociais da UEM, trabalhou no jornal Notícias e como Director de Backstage do Festival Bushfire, na eSwathini, e ainda representou Moçambique na segunda conferência das culturas africanas no Cairo, no Egipto.

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