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Os dias em que saí em reportagem com o Mestre Kok Nam

Em finais de Abril de 1989, um aluno da Universidade Eduardo Mondlane, que estava na organização de uma greve de estudantes, que iria eclodir no mês seguinte, contactou-me, através de um amigo comum, para que eu me informasse sobre aquele movimento reivindicativo, que aglutinava, sobretudo, os que viviam no “Self”, e desse, através da minha tribuna na revista Tempo, conta do mesmo: reclamavam melhores condições de alimentação, transporte, reajustamento de bolsas de estudo, apetrechamento de bibliotecas, comparticipação na definição dos currículos e nos processos de avaliação. Fui levado ao grupo e dos contactos iniciais que tive com os estudantes que estavam na organização da greve percebi que estávamos perante um movimento sério. Informei, de imediato, o meu chefe de redacção e, dados os contactos que eu já tinha, escalou-me para fazer a reportagem dos acontecimentos. Eu não pertencia à editoria da actualidade nem da sociedade. Escrevia sobre escritores e sobre cultura. O tema era delicado e as circunstâncias muito difíceis. O Kok Nam, o grande e mítico fotográfo da revista, que viera do grupo que a fundaram, foi escalado para fazer, comigo, esta reportagem. Foi um grande momento para mim.

Um dia a história fará o devido resgate desta greve. Guardo desses momentos o sentimento de que estávamos a viver algo único – as greves dos estudantes universitários abalam, inequivocamente, os poderes e eu tinha, pelo menos, consciência disso. Era comum haver notícia de repressões violentas contra estudantes em muitos países africanos e não só. Eu estava excitado e ao mesmo tempo receoso. Tudo poderia descambar e poderia haver derramamento de sangue. Até porque, como veremos, houve uma inequívoca ameaça das próprias Forças Armadas, o que poderia ter redundado num violento castigo. Mas galhardamente os estudantes não se amedrontaram.

No dia 6 de Maio os estudantes deixaram de comer no “Self” e deixaram de comparecer às aulas. Estávamos perante um grande embaraço para o governo. Os estudantes estavam decididos a ir até às últimas consequências. Muitos dos vizinhos do “Self” ofereciam-se para acolhê-los nas horas das refeições. Eu via naquele grupo um poder reivindicativo incomum para a altura. Não punham em causa o governo mas estavam firmes nas suas reivindicações, cujo caderno parecia muito claro e objectivo. O partido e o governo (era mesmo assim na época) receberam os estudantes no dia 9 e consideraram que os problemas colocados eram genuínos e reais. A despeito, no dia seguinte, o partido do poder criticava a forma seguida pelos estudantes na busca das soluções, ao mesmo tempo que impunha uma condição para haver diálogo com os estudantes: que estes regressassem às aulas. Numa assembleia de estudantes, bastante concorrida, no pavilhão da universidade, estes decidem retomar as aulas e as refeições no “Self”, mas não desistem das suas reclamações. Nesse mesmo dia, 10 de Maio, as Forças de Defesa e Segurança (FDS) emitem um comunicado ameaçador em relação aos estudantes e de solidariedade com o partido e governo. A moção dizia: “Prontos estamos para enfrentar qualquer que seja a tentativa de pôr em causa esta República, fruto dos sacrifícios e sangue dos melhores filhos da Pátria, muito menos manifestações que minem a unidade nacional”. Os estudantes não se amedrontaram e responderam esclarecendo as suas posições, ao mesmo tempo que declararam – inteligentemente – o seu apreço ao partido e ao governo pela disponibilidade para o diálogo construtivo com eles, sem ameaças, sem intimidação ou qualquer forma de repressão. Numa das frases do comunicado diziam: “Antipatriotismo é enriquecer à custa da miséria dos outros. Antipatriotismo é suportar uma vida de luxo quando milhares morrem de fome. Antipatriotismo é trair o sangue dos que tombaram para que o país fosse livre, independente e respeitado em todo o mundo”. E acrescentavam: “rejeitamos a ideia de que a massa estudantil seja particularmente vulnerável à acção inimiga. Provaremos que, ao contrário, os inimigos do nosso povo é que são particularmente vulneráveis à nossa acção”. Eu vivia empolgado com esta greve, com os seus bastidores, com a inequívoca firmeza dos estudantes, com a tenacidade daqueles jovens, muitos deles sem família em Maputo, sem rede, mas destemidos e genuínos, profundamente solidários. Acompanhei-os aos encontros, com membros do partido e do governo, houve encontros com a reitoria, entre outros.  No dia 20 de Maio, numa ampla assembleia geral, os estudantes decidiram criar um Conselho para a defesa dos seus deveres e direitos. Terminava assim aquela dramática greve que agitou aquele mês de Maio de 1989.

Cobri a greve na companhia de Kok Nam. Ele está, então, à beira dos 50 anos, é um dos mitos do nosso jornalismo. Traz um longo excurso. Eu sou um fedelho de 22 anos, li algumas reportagens famosas do García Márquez ou do John Reed e sonho com os dias que abalaram o mundo. Vejo naquela reportagem esses dias. Vivemos um ano de 1989 de grandes expectativas de mudanças, de transformações no mundo, a Leste da Europa, na África Austral, em Moçambique, onde uma guerra infame esventra o país.  O ano começara com a retirada das tropas cubanas em Angola. No mesmo mês de Janeiro, a polícia dispersa brutalmente manifestantes que assinalavam 20 anos sobre a morte de um estudante que se imolara em protesto contra a ocupação soviética na conhecida Primavera de Praga. Ronald Reagan saía de cena e passava o testemunho a George Bush nos Estados Unidos. As tropas soviéticas retiram-se de Cabul, na sequência disso é decretada a lei marcial em Fevereiro. Em Junho, o Exército Vermelho é implacável na sua reação à greve dos estudantes na Praça Tiananmen. Em Outubro, cai o Muro de Berlim. Em Dezembro, Mikhail Gorbatchev e George Bush encontram-se em Malta, o que foi decisivo para o fim da Guerra Fria. O mês de Dezembro é fértil em acontecimentos: a 20, os americanos capturam o General Noriega, do Panamá, acusado de tráfico de drogas; no dia do Natal, na Roménia, Ceausescu e sua mulher são condenados à morte; e a 29, Vaclav Havel chega a presidente da então Checoslováquia.

Assim como acontecia na redacção, o Kok actua como meu companheiro. Aceita-me como seu par e dialoga comigo de igual para igual. Somos os dois jornalistas. Eu sou um foca. Um principiante.  São dias de aprendizagem na companhia de um grande repórter. Até então eu trabalhara com Naíta Ussene, Jaime Macamo, Alberto Muianga ou Jorge Tomé. Jorge Tomé tinha sido o primeiro foto-jornalista a chegar a Homoine e deu-nos, com a sua corajosa reportagem, a dimensão daquela tragédia que ensombra páginas da nossa História recente. Foi um acontecimento hediondo aquele. O Kok, no entanto, era a grande alma da revista, o nosso líder. Uma espécie de guru. A sua voz soava na redacção. As suas críticas, sobretudo, ao mau jornalismo. Mas também as suas gargalhadas e a sua boa disposição. Emocionava-se a olhar para uma boa fotografia: “Alta foto!” – proclamava.

Uma das coisas que mais me marcou era o seu sonho de cobrir a libertação de Nelson Mandela. Naqueles anos longínquos, nenhum de nós auguraria que Mandela fosse liberto tão proximamente, o que aconteceria a 11 de Fevereiro de 1990. Não creio que o Kok Nam tenha realizado esse seu sonho de repórter. Mas estou certo de que nós, tal como muitos de nós, realizámos, naquele dia em que vimos Nelson Mandela de punho erguido e cerrado, o mais belo sonho das nossas vidas: o sonho da liberdade. O Kok ensinou-me também, com o relato do seu sonho, que o jornalismo era a mais bela profissão do mundo. O jornalismo era uma profissão de causas. O jornalismo era uma profissão dos que cultivavam a liberdade. A liberdade tinha, naqueles anos, um alto sentido semântico e cívico, humano e histórico, cultural e filosófico. Era um vocábulo engrandecedor. O sonho da libertação de Mandela era a grande metáfora de uma África Austral livre. Vivíamos aqueles anos, empenhados, imbuídos pela luta dos povos da África Austral. O Kok tinha esse sentido. Ouvi-o, na festa dos 60 anos do Calane da Silva, em 2005, a elogiar uma belíssima mulher que então se juntava à nossa mesa: “a mais bela da África Austral!”

O Kok tinha também uma paixão incomensurável pela figura de Samora e contava inúmeras histórias que vivera com o presidente, nas inúmeras vezes que o fotografou, desde a Nachingwea aos palcos da revolução, nas viagens em que o acompanhou pelo mundo. Ouvir o Kok, na redacção ou em reportagem ou em convívio, fazia com que um jovem jornalista, como eu, sonhasse ainda mais alto com o alto sentido – sei que estou a ser prolixo – da missão de ser jornalista. Ali estava um homem de grande gabarito. Um verdadeiro Mestre. Um grande e inesquecível Mestre.

Ele fez inúmeras reportagens na sua longuíssima trajectória de repórter fotográfico. A que mais me impressionou, foi uma realizada na Zambézia, no Ile: são fotografias pungentes, imagens lancinantes, que denunciam a miséria humana, a indigência material, a sordidez que fomos capazes de experimentar. Aquela denúncia era também uma grande lição para mim. Nos dias de hoje, faltam fotógrafos como o Kok Nam, capazes de nos interpelar com imagens que possam indagar o sentido das coisas, capazes de nos desassossegar, capazes de pôr tudo em causa. Capazes de serem uma referência moral. O Kok  Nam foi-o até ao fim. Um profissional probo – o que hoje não avulta por aí. Aliás, parece que o jornalismo dispensou um dos seus melhores domínios: a fotografia. A fotografia do repórter audaz. Parece-me tudo complacente. Parece-me que tudo afina pela mediania. Há jovens fotógrafos de grande talento, mas não vejo nos jornais fotografias inescusáveis.

O Kok Nam (1939-2012) começara na profissão num estúdio, a Focus, uma extinta casa de fotografia na baixa da capital, no mesmo prédio onde funcionava, afortunadamente, a delegação do Diário de Moçambique. O diário convidou-o para ser repórter e ele abandonou o estúdio. Foi, posteriormente, fundador da revista Tempo, nos primórdios dos anos 70, onde o iria encontrar nos finais dos anos 80. Ele tinha reportado tudo quando lá cheguei: guerras, fome, misérias, humilhações, o tempo transitivo da revolução, a abertura política, a paisagem da liberdade que se afigurava. Quando, no final de 1990, abandonei a Tempo, viviam-se na revista tempos de incerteza, vivia-se o ocaso, o prenúncio do fim, chegara ao fim uma época, muitas vezes empolgante, quase sempre fascinante, que tínhamos vivido, que eu vivera ali, mesmo sendo no fim. O Kok, de algum modo, também estava de saída. Falava-se num jornal privado. O Carlos Cardoso – outra grande figura –  chegou a falar-me disso e a convidar-me para o projecto. Mas eu já estava de partida para outros hemisférios. Não acompanhei essa aventura do Kok e de outros companheiros – muitos dos seus fundadores tinham sido meus colegas na Tempo. Ele seria o director do Savana. Antes o Cardoso fizera o inovador Mediafax. Não era a primeira vez que um fotojornalista chegava a director, havia o caso do Ricardo Rangel, que o fora no semanário Domingo. Creio que, como na Tempo, no tempo em que eu lá permaneci, o Kok Nam seria a alma do semanário Savana. Estou convencido disso. Não é por acaso que o nome dele figura ainda hoje no jornal como diretor emérito.

Recordo-o aqui hoje, recordo a sua gargalhada estridente, recordo a sua camaradagem afectuosa, o seu profissionalismo e rigor, a sua exigência sem soberba, o seu espírito crítico, a sua capacidade de ensinar e de aceitar os mais novos, a sua coragem de repórter, o seu olhar fulminante, a forma como capturou instantes importantes da nossa história recente, a sua fleuma – dir-se-ia asiática, mas isso é uma redundância -, a sua generosidade, a sua liberdade, o seu amor pela liberdade. Fica como uma das lições mais gratas que tive como jornalista. Não me lembro de ter saído mais vezes em reportagem com o Kok Nam, além daquela greve, mas tive o privilégio de conviver com ele na redacção da Tempo. Tenho uma forte lembrança da sua magistral figura – a de um homem atento e crítico, sábio e generoso, fraternal. Insubmisso. A imagem de um homem livre, apenas comprometido com as causas em que acreditava e pelas quais exerceu a mais bela profissão do mundo – a de ser repórter -, como me haveriam de ensinar os meus mestres, entre os quais ele figura, indubitavelmente.

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