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“Os ângulos da casa” – o retorno à essência das coisas

A casa é amizade construída aos poucos
Zélia Duncan

Na Janela para o oriente, de Eduardo White, e no Livro do desassossego, de Bernardo Soares (um dos heterónimos de Fernando Pessoa), a casa é um lugar distinto para a imaginação poética. É nela que a viagem para o exterior inicia em múltiplas dimensões, porque lá é o ponto de partida para um voo errante, desinibido. Não obstante, a casa não é o começo para aqueles poetas apenas. No seu livro de estreia, Hirondina Joshua sublinha a sua ligação virtual com o espaço que habita dentro e fora de si. São estes alguns cenários encontrados em Os ângulos da casa, um livro de poesia em que a palavra assume-se como um signo empenhado em gerar imagens e sentidos ao que no campo do ser poeta cabe.

Logo no primeiro texto do livro, Hirondina Joshua introduz o leitor à sua poiesis, repleta de salas, paredes e móveis, uma atmosfera feita de nada, no entanto, suficientemente capaz de urdir um sentimento ou tanto ou quanto nostálgico. É uma sensação esquisita esta de ler a autora nas circunstâncias em que faz da moradia um fertilizante na busca de uma combinação estética feita de muita naturalidade. Escrevendo sobre os compartimentos da sua própria moradia intangível, Joshua leva-nos de volta para nossa própria residência de modo a recuperarmos a essência das coisas “vãs”, paradoxalmente constituídas de tanta significação quando bem aproveitas. Os ângulos da casa recicla a poesia com coisas minguantes e sem se deslocar tanto do lugar, afinal partir, aqui, não implica necessariamente ir, também pode ser regressar a um plano que nos torna mais preparados para captar o que desperdiçamos em nós e em nosso redor.

A partir destes ângulos Hirondina sai para apresentar-se ao mundo, explorando exaustivamente a palavra, sem temê-la e sem poupá-la, pois a sua sintaxe é sempre o começo do que se pretende dizer. Então, as 83 páginas que fazem o livro sintetizam a determinação em apostar no ofício, porque, citamos: “Se for para entrarmos [na casa da poesia, pode-se entender] entremos com o corpo todo e depressa e usando a porta da frente” (p. 20).

A melhor Hirondina Joshua deste livro é essa que reconstrói a casa com o poder do verso, nesse retorno ao pormenor. Eventualmente, mais focada ao espaço e ao que a partir disso pode ser feito. Infelizmente, a aposta em retirar da paisagem domiciliar versos revestidos de muita humanidade é rapidamente substituída ao dar-se expressão a entidades textuais mais presas às experimentações do “eu”. Ainda bem que não varia o cuidado com o ritmo, a salvaguardar o equilíbrio da métrica, sobretudo quando o corpo do poema é mais acentuado.

Além disso, vale reparar que Os ângulos da casa é obra escrita por uma autora que não expõe as silhuetas dos seus sujeitos poéticos, mas a alma, de tal forma que cada uma pode trajar-se de qualquer sexo e ser um pouco das nossas entidades adormecidas. O poema da página 81 pode ser usado para notar este traço que impede a prevalência de imagens cor-de-rosa, vulgar em muitas poetisas: “ – Sou igual a todos os humanos. Capaz de amar e matar na mesma intensidade.// Do falo a escrita não precisa, ela por si pode urinar e fazer amor.// Ai, dói isto de pensar que a escrita precisa de um corpo táctil. E erecto”.  

Título: Os ângulos da casa
Autor: Hirondina Joshua
Editora: Fundação Fernando Leite Couto
Classificação: 13

 

 

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