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Os acordos de paz e as revoltas populares (2008/2010) e o Jornal O País

Para quem se interessa em estudar a história política e contemporânea de Moçambique, não pode deixar de constatar que a nossa história é estruturalmente uma sucessão de guerras, de instabilidades, de acordos de cessão de hostilidades e acordos de paz. Podemos, por isso, dizer que o teor mais profundo da história de Moçambique nos últimos 57 anos, para além do ideal de liberdade qui ganha corpo com a luta de Libertação Nacional encetada pela FRELIMO de 1964-1974, é o espectro da guerra e instabilidades permanentes. Ou seja, desde o inicio da Luta Armada em 1964, Moçambique, sendo um projecto ainda inacabado, não poucas vezes impreciso ou indefinido, tem sido um problema existencial para os povos que o habitam. Ao invés de ser um ideal de paz, de tranquilidade, de riqueza, de prosperidade e de projeção do futuro para milhões de cidadãos, Moçambique tem sido um tormento crónico. Tal como mostra Rousseau no “Contrato Social” e no “Discurso sobre a origem e fundamento das desigualdades entre os homens…”, o problema da paz não se pode confundir com a ausência da guerra. É muito mais do que isso, é igualmente tranquilidade e sociedade menos desigual. Se pensarmos nestes termos, podemos dizer que o problema de Moçambique desde a sua projeção enquanto nação foi de, no seu interior, ter sido produtor das contradições sociais, culturais, politicas e económicas que o levam à guerra e instabilidade quási-permanentes.

Esta situação impele-me, como não podia ser diferente, a afirmar que Moçambique vive uma situação de “estado de guerra”, pois a forma como tem sido construído, projectado ou criado tem fabricado todos os elementos que perigam a sua própria existência enquanto lugar pacifico e mesmo enquanto projecto nacional. É por essa razão que imaginar Moçambique enquanto terra pacífica não me parece ser possível enquanto não se repensar o que Moçambique se tornou hoje para a sua grande maioria; social e economicamente inútil ou quase isso. É necessário recolocar no centro da reflexão desse repensar Moçambique o ideal libertário da FRELIMO de 1962 e do Moçambique de 1975-1986. Isso implica, certamente, questionar com lucidez o Moçambique actual que ao invés de se constituir enquanto ideal para grande parte dos Moçambicanos, tornou-se o elemento que cria angustia persistente. Nessas condições, um país como Moçambique tem poucas possibilidades de se imaginar enquanto terra de tranquilidade. Sabemos que um dos graves problemas para a instabilidade em Moçambique, entre outras razões, tem sido, primeiro, ausência de uma reflexão profunda sobre o modelo de desenvolvimento nacional e, segundo, o agravamento das desigualdades entre as elites dirigentes e as populações que vivem no submundo da paupérie, da mendicância grave, da nudez, da instabilidade, da guerra, entre outras situações.

O Jornal O País significa, para mim, a “poesia de combate” que é cantada nos momentos de incerteza, dando esperança aos que vivem atormentados pela perplexidade do presente e do futuro. Participa, de forma extraordinariamente particular, na epopeia nacional, fazendo dos problemas de Moçambique não uma fatalidade, mas sempre uma abertura para repensar melhor o destino de Milhões de moçambicanos. É nesse sentido que ao conhecer o Jornal O País, estava a conhecer um projecto cujo fito era dignificar criticamente a construção do projecto Moçambique fazendo do jornalismo crítico o seu único critério e finalidade.

Tendo conhecido o Jornal O País, primeiro como semanário, e depois como diário, não deixo de fazer duas constatações. Primeiro, ao emergir no mercado dos Media em Moçambique, este jornal fez das questões de sociedade, de desenvolvimento, de cidadania, de combate à delapidação do erário público o centro nevrálgico da sua actuação. Foi por meio deste Jornal que muitos de nós moçambicanos, e não só, descobrimos a historia social imediata dos bairros desfavorecidos, da ausência de projectos para esses lugares, das desigualdades crescentes, da insalubridade, de larápios infiltrados no aparelho do Estado e não só.  Este primeiro elemento fez do Jornal O País dos poucos jornais no pós-1990 a fazer dos grupos desfavorecidos, sem expressão social, actores importantes nas suas peças jornalísticas. Ademais, este jornal conseguiu deselitizar os personagens do jornalismo moçambicano ao aproximar o jornalista daqueles grupos sociais vivendo nas diferentes periferias, que nunca tinham imaginado participar na esfera publica por meio do espaço que lhe era atribuído nas diferentes secções do jornal (sociedade, politica e economia).

Segundo, este jornal ao fazer isso, permitiu-me ver que o nosso país era uma fábrica de desempregados, de marginais, de drogados, de doentes… pois ao mostrar a realidade crua do estado real da nossa sociedade permitia mostrar que o desenvolvimento em Moçambique não estava a beneficiar a todos. Urge igualmente realçar que me permitiu ver o potencial que tínhamos como país.

Foi a partir das suas peças sobre as manifestações de fevereiro de 2008 e setembro de 2010 que me apareceu a ideia segundo a qual o problema da instabilidade, da guerra em Moçambique não poderia ser resolvida apenas com a integração da Renamo, que a Renamo não era o problema mais perigoso em Moçambique. O grande problema de Moçambique era o número de pessoas que viviam excluídas de todo e qualquer desenvolvimento, pessoas que viviam cobertas da míngua, da forme, da inópia, da lazeira. Este era o perigo que me parecia mais radical. Os depoimentos publicados pelo O País foram nisso uma contribuição estruturante para que eu chegasse à essa ideia.

Revoltas Populares e os acordos de paz a partir d’O País

Moçambique é um país cujo processo democrático ainda está em vias de “consolidação”. Muitos aspectos de “sociedades não abertas ou fechadas” (Bergson, Popper, Hayek) ainda pairam da cultura politica nacional, como a limitação do exercício das liberdades fundamentais, por exemplo a de imprensa. Porém, em fevereiro de 2008 e setembro de 2010 duas grandes revoltas populares eclodiram em Maputo, revoltas que marcaram um momento político particular; a contestação social e politica de cidadãos indefesos contra um Estado fortemente armado, e com características autoritárias muito pronunciadas. Tudo o que o governo de então queria é que os moçambicanos não tivessem acesso à informação detalhada o evento. Foi nesse contexto que, mais uma vez, o Jornal O País mostrou não só a sua lucidez, profissionalidade mas também a sua determinação em defender as liberdades fundamentais, a sociedade aberta, portanto, ao reportar com detalhes tudo o que acontecia naqueles eventos, sem tomar partido e dando objectivamente as informações sobre o curso dos eventos. Vimos uma cobertura imparcial, rigorosa e multifacetada, o que permitiu que tivéssemos uma perceção mais ampla do fenómeno, das razoes que tinham levado aquelas pessoas a se revoltarem. Isto permitiu ver que o discurso do combate à pobreza não estava a produzir os efeitos desejados, pois enquanto o número de indigentes, desvalidos aumentava e o custo de vida piorava, os governantes mais ricos e afortunados ficavam. Tornavam-se parasitas. Esta posição do jornal marcou imensamente a minha perceção da utilidade do jornalismo, tendo eu mesmo passado pelo grupo Soico e escrito para O País entre 2009-2010, pois ali víamos o pleno sentido do jornalismo; informar com objectividade e rigor. E, hoje, como académico e intelectual, este jornal constitui ainda uma referência quando me quero informar sobre o país.

Um outro assunto que me marcou pela forma como O País cobriu, são os acordos de paz de 2014 e 2019. Historicamente, a cobertura desses assuntos não é fácil, sobretudo, quando uma das partes pretende dar a impressão que todos os erros são imputáveis à sua contraparte. Moçambique, em todos os processos de paz, nunca fugiu à essa tendência. Sabendo que era um assunto que definiria o destino de Moçambique e que todos os actores estavam ansiosos em ver o seu papel aclamado, este jornal fez das suas peças jornalísticas não a extensão de nenhum dos actores, ou ainda espaço de recados, propagandas de quem quer que fosse. Com todos os perigos que se corria ao dar igualdade de tratamento à Renamo e ao Governo, vi neste jornal o principio fundamental para qualquer jornalista; equilíbrio no tratamento das informações. Aqui, mais uma vez, tive a possibilidade de ver as múltiplas versões desse processo, as discussões à volta do que cada um dos actores pensava do processo. Isto permitiu reforçar a minha ideia de que os órgãos de informação, como O País, representam o que há de melhor no sistema de Media nacional.

Para terminar, quero dizer que esses dezasseis anos de existência foram marcados, como bem indica o nome, pela vontade de falar de todo o país a todo o país, sem regionalismos e elitismos. Ao negar-se toda e qualquer interferência de quem quer que fosse, este jornal contribuiu para a minha formação intelectual e, certamente, de muitos outros.  Esses dezasseis anos são, para mim, marca de resistência, de destreza, de rigor e de coragem, mormente, quando sabemos que exercer um jornalismo livre em Moçambique é ainda uma aspiração que muitos sonham. Não se pode pensar na democracia em Moçambique sem se reconhecer o papel determinante que O País tem desde a sua fundação.

 

 

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