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Ondjaki e as respectivas estações do íntimo

Primeiro O Céu: espaço ilimitado em que se movem os astros, mas também, e destaco: parte desse espaço limitado pelo horizonte, ou seja, pelo olhar de quem o observa. Segundo Não Sabe Dançar, sendo que esta é uma qualidade mais humana, visto que os homens inventaram a música e decidiram dar saltos ou passos cadenciados conforme o ritmo (haverá quem considere a dança uma qualidade mais animal e os vídeos do YouTube, ao mesmo tempo que nos divertem com animais de estimação em alegóricas coreografias, parece quererem, exactamente, negar tratar-se de simples fábulas modernas). Terceiro Sozinho, O Céu Não Sabe Dançar Sozinho, ou seja, absolutamente só, desacompanhado, isolado. Socorrendo-me de Kant, na sua Crítica da Razão Pura, ao considerar que está-nos vedado o conhecimento dos objectos, coisas, conceitos, realidades em si, senão através da nossa sensibilidade, ou seja, dentro do nosso horizonte possível, resolvo a curiosidade do título do livro sugerindo que, em última instância, quem não sabe dançar sonzinho somos nós, homens e mulheres. E se a música é a arte e ciência de combinar sons, então a dança pode exigir uma arte e ciência de combinar os saltos ou passos. Uma combinação exige harmonia, diálogos e afectos; ou seja, felizmente, somos seres irremediavelmente condenados a viver e estar com um outro semelhante. Creio que esta ideia encontrará algum eco na epígrafe do livro: «em qualquer estação, / é perto que mais somos.» A epígrafe faz de nós sujeitos solitários em viagem permanente pelas estações da vida, pelas estações que fazem de nós o que somos. Ora, sugere a epígrafe, que seremos à medida que nos aproximarmos do outro.

O Céu Não Sabe Dançar Sozinho é um livro de contos que têm a particularidade de levar títulos de locais conhecidos e/ou imaginados pelo autor pelas estações, arrisco-me a dizer, da sua própria vida, incluindo aqui a vida de escritor. Vejam-se títulos como «Buenos Aires», «Budapeste», «Madrid». Não é, pois, por mero acaso que o narrador destas histórias as conte como as viveu, algumas vezes como protagonista, outras como testemunha. São histórias, portanto, que revelam paisagens de uma viagem pessoal. No entanto, não se trata aqui apenas de contar histórias de viagens. O tom pessoal destes relatos revela-nos um outro investimento que parece complicar a ideia simplista de serem experiências de viagens. É que Ondjaki elege o sonho como outro grande tema do seu livro, ao qual vão se subordinar micro-temas, como os da premonição, do medo, da morte, da obsessão, do insólito, da memória, da identidade, da alteridade. Ou seja, sonho e viagem andam de mãos dadas, os sonhos são uma espécie de viagem pelas estações do íntimo e as viagens começam por ser sonhos, que nos sobram depois como memórias. O sonho é também a metáfora da estrutura dos seus contos; isto significa que estes contos são imagens de sonhos: breves, densos mas poéticos, abertos, regra geral sem a consciência do espaço e do tempo em que efectivamente as personagens se movem, se constroem, se tornam ambíguas e volatilizam. Desta estrutura resulta que estes sonhos em viagens ou estas viagens sonhadas captem, pelas esquinas de «Macau», «Praga» ou «Moçâmedes», aspectos da vida que escapam às leis da regularidade e da harmonia, pois Ondjaki trabalha poeticamente o trivial, o corriqueiro. Tem de haver um significado profundo nas coisas aparentemente banais da vida. E assim fechamos o triângulo dos grandes temas sugeridos neste livro: o sonho, a viagem e o trivial.

As personagens de Ondjaki também obedecem à densidade e ambiguidade estruturantes dos próprios contos. Sem contornos definidos como acontece nos sonhos, elas valem sobretudo pelo que dizem e revelam-se entidades tensas e perturbadas, o que pode ver-se, com destaque, na primeira parte do livro, em que vemos um investimento por parte do autor nos diálogos, chegando mesmo a aproximar-se da forma dramática. A segunda parte do livro faz o inverso da primeira: vemos um investimento na narração e diminui o enfoque no diálogo, facto que não obsta que cheguemos de forma particularmente interessante ao conhecimento das personagens, pois, como dissemos, elas relatam as suas próprias experiências ou as de outras personagens, que elas testemunharam. Na terceira parte do livro, o autor abandona as estratégias das duas primeiras e traz-nos uma narrativa, digamos, mais descritiva, fotográfica, suportada pela pontuação que parece congelar o fluxo de consciência do narrador. É uma espécie de inventário do horizonte do narrador que observa o mundo fragmentado à sua volta.

Diálogo, narração e descrição revelem-se, por conseguinte, investimentos técnico-compositivos distintos na primeira, segunda e terceira parte do livro, respectivamente. Ou os sonhos são em si realidades fragmentadas ou estas correspondem às várias estações da viagem do primeiro e último narrador destas histórias, Ondjaki, no seu desejo de estabelecer diálogos, de contar e reter o mundo nestas páginas. A quarta parte do livro faz como que uma espécie de síntese das três primeiras, trazendo um pouco das três. Aqui, a memória está presente de forma assumida, como se fosse um despertar para o que nos sobra dos sonhos ou das viagens, e é quase uma memória institucional:

«Vêm buscá-la à hora do jantar. As crianças já to- maram banho. A mesa está posta. Tem tempo ape- nas de apagar o fogo do fogão e deixar os bifes arrefecerem na frigideira.

Quatro homens armados. Um bote de borracha.

As ordens que tinham.

Foi vestir-se melhor, buscar uns sapatos.

As crianças já tinham tomado banho. Já estavam à mesa, sentadas.

? A mamã não vai comer connosco?

? A mãe já vem. Tem que ir falar com uns cama- radas em Luanda.

Quatro homens armados levam a mulher para o bote de borracha. Os vizinhos olham. O pai disfarça, vai até à cozinha, traz a frigideira com os bifes. O arroz já está na mesa. Uma vizinha vem ajudar. Toca as crianças na cabeça, inventa uma conversa.

O mar está calmo. Quase escuro. A luz fluorescente da varanda não deixa ver o brilho da lua sobre o mar. O bote de borracha atravessa a escuridão em direção a Luanda. Uma das crianças diz que já não tem fome, mas que vai comer. O pai diz que ainda tem fome, mas não irá comer. A vizinha tem fome e vai comer.

? Como é, tudo nos conformes? – o vizinho distraído não sabia o que se tinha passado. – Tenho ali preparado o champagne para a meia-noite.

? Vamos ver… Vamos ver… – diz o pai, com voz triste.

O pai olha o mar. Apesar das luzes fluorescentes da varanda, o pai sabe que o mar está escuro. Pensa na mulher sozinha no barco de borracha, acompanhada pelos quatro homens armados. Olha o relógio. Irá olhar o relógio muitas vezes nessa noite.»

Obrigado!

Lucílio Manjate

 

 

 

 

 

 

 

 

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