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O tempo é um casal de apaixonados aos beijos

Já nem me lembro o que estava a sonhar, o toque do alarme estragou-me a vida do lado de lá. Um Moçambique mais humano era um bom sonho! Eu e David, meu primeiro colega de quarto que se tornou meu irmão, partilhávamos o mesmo quarto numa residência universitária de Lisboa. A escuridão que se apossara do quarto durante a noite começava a se dissolver. O meu desejo era continuar a dormir, mas algo me dizia que se dormisse mais um minuto chegaria atrasado.

Contrariado, desci da cama e fui me preparar. Não tinha mais de um mês em Portugal, ainda ia a todas as aulas, até as que não existiam.
Quase quarenta e cinco minutos depois, David continuava na cama embevecido pelo sono e sonho que me foram roubados pelo toque do alarme. Ele ia à escola duas horas mais tarde que eu. O dude parecia um daqueles carros avariados quando se tratava de acordar, levava muito tempo para arrancar. Nos primeiros dias combinámos que eu seria o seu despertador, o acordaria quando estivesse para sair de casa e depois seguiriam os seus outros milhares de alarmes até acordar.

Como nos outros dias, o acordei e ele me lançou um «puto, ainda é muito cedo, dorme». Todos os dias dizia-me coisas sem sentido quando o acordasse. Ignorei aquelas palavras e me pus a andar.
Na rua o nevoeiro cobria o ar e o frio gelava-me o cérebro. Até ali nada parecia estranho…

Quanto barulho numa só noite! O mundo tem tantas coisas bonitas! Já viste o teu sorriso? E porquê sou obrigado a ver isto, meu Deus! As nuvens nebulosas a sufocarem a lua me causam um nó na garganta e um sentimento de impotência do tamanho da alma das águas do dilúvio que se vêem nos olhos de gente triste. Se eu levantar para fechar a cortina perderei o fio da narrativa, mas se eu ficar aqui a ver as lágrimas daquela luz fluorescente, será pior, morrerei nesta página.

Merdas, deixa-te de preguiças e fecha essa cortina enquanto for tempo!
Entretanto voltei! Sabes, amanhã o dia tem vinte e cinco horas! O que será o tempo senão duas pessoas apaixonadas a se beijarem até tudo arder de novo? Um beijo a mais, um a menos, cabe sempre mais um beijo, menos um, mais um… até tudo arder de novo.

Mas é verdade, amanhã passaremos para o horário de Inverno. Parece algo chique, mas é uma chatice! Passo a estar duas horas mais longe de Moçambique! O povo por aquelas terras dorme muito cedo e eu que durante o dia desligo-me do telemóvel para esfalfar-me nas coisas do mundo chego enquanto está quase tudo a dormir!  

Como tu consegues fazer tanta coisa ao mesmo tempo?

Não me põe a responder perguntas deprimentes senão ainda penso na lua. Vou te contar um segredo, mas tens de jurar que isto fica entre nós.

Quando me sinto cansado vou ao salão cortar cabelo! Nos últimos anos, depois de cortar cabelo me sinto meio assim, deprimido. Para além de me sentir menos chuchu, sinto que boa parte de mim cai e vai ao lixo com aquele cabelo. Não te rias, estou a te abrir o meu coração.

Cá para mim aquilo é um remorso que eu tenho por andar a prostituir minha cabeça. Até vir estudar para Lisboa, a minha cabeça não conhecia mãos brancas, sabes? Quando vou cortar lá para os lados de Odivelas ainda me sinto bem. Mas quando vou aonde fui antes de ontem, saio de lá com o espírito a rastejar. Cortam-me tão mal, cada parte da cabeça com o seu tamanho e ainda fico parecendo calvo, como diz meu puto!

Mas com que intimidade chegamos a este ponto? Faz favor, continuar a narrativa.

Desde o metro que eu sentia a sensação de algo estar fora do lugar. Infelizmente só percebi quando pus os pés na escola e vi tudo fechado.

O meu telemóvel tinha se conectado ao fuso horário de Verão durante a noite e me estragara o sono! Uma hora a mais! O que será o tempo senão o que nós quisermos!

Esse barulho não pára! Bem-bem, parece que estão a fazer coisas de adultos no piso acima do meu. Sei que sou louco! Vou lá ver o que se passa, volto já.

 

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