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O TELEMÓVEL

(…)
E tu danças,
Apagando sinas, decretos, contratos,
Por dentro da gravidade da terra!
Melita Matsinhe, in IGNIÇÃO DOS SONHOS

À Virgília Ferrão
«17:50:21 Se não acreditas liga, irmão»
«17:25:05 Até exibia um ar de quem faz aquilo, há meses»

Paulo leu a mensagem enviada pelo primo Mateus sufocado por intensa luz do telemóvel, aturdindo-o no interior da viatura. Passava já das vinte e duas horas, a meta diária de trabalho, quando o turno de Paulo Ximboane terminou.

Paulo venceu a hesitação inicial, prosseguindo com a leitura da montanha de sms.
«16:49:44  Até agora não consigo acreditar, mano»
«15:29:12  Há quanto tempo ela faz isso?»
«15:09:03  Nem reconheci o rosto do tipo de fato preto»
«15:07:07  O casaco que a Cláudia trajava é aquele que ela vestiu na festa do meu aniversário»

Quem reparasse no Paulo podia ver para além do cansaço que lhe contraía o sorriso, a leveza sufocada, como se fosse um pássaro molhado por uma vaga de chuva tropical. O Paulo e os dezanove colegas tinham antes recolhido aos balneários. Depois passaram pelo refeitório para um tomar a pasta de frutas, ao que de seguida cada um rumou aos aposentos para o merecido descanço. Ele ainda lembrou-se de abrir o seu cacifo para dalí retirar os seus pertences, de entre eles o inseparável telemovél.

Rodou a chave preta na portinhola onde constam as iniciais do titular PX- 24. Depois de montar a pasta nas costas, retirou os auriculares e, de seguida o telemóvel.

Ligou o aparelho. Depois das sinaléticas da marca e cumpridas a ligações dos dados. A avalanche de quase de 30 mensagens veio logo a seguir para sufocar as emoções do moço, sem apelo, nem agravo, como fazem os ladrões a pessoas indefesas.

«14:47:00 É uma fia da mãe, porraaaahhh!»
«14:15:08 Ela anda a ferrar-te os cornos com um guarda- prisional»
«14:10:56 Pelo sorriso que eles trocaram notava-se que aquilo acontecia muitas vezes».
«14:09:07 Estava toda sorridente para aquele maricas… E até entregou um take away ao gajo».
«13:45:19 O que faz a tua mulher ali?»
«13:30:00 Mano nem queiras acreditar que vi a tua Cláudia na cadeia»
«13:15:40  A tua mulher  está na cadeia. A fazer o quê?»
«13:11:33 Tentei-me segurar mas não consigo. Tenho de abrir-me com alguém».
«13:10:02 Acho que temos abertura suficiente para conversar»

Paulo fervia furioso, sem saber o que fazer. Passava-se um filme horrível na cabeça do moço. Mesmo assim ele conservava os olhos em chamas fixos na avenida, conduzindo. Se fumasse já teria esgotado um volume de cigarros. E pelos vistos ele não tinha vontade de falar com mais ninguém. E, justo naquele instante, mais duas sms piscaram no telemóvel. Era a Cláudia:
«01:31:01Amo-te!»
«01:30:00 Ainda demoras, mor?»
De repente, os pneus do carro chiaram sobre o asfalto, numa tentativa de evitar um camião que abacava de cortar a prioridade à viatura do Paulo.

Por volta da uma e quarenta da manhã a Cláudia despertou ao som de uma chamada insistente e incômoda. Levantou-se com esforço, apoiando-se na cama, deslizando sobre os lençóis e atendeu ao telemóvel que estava sobre a cabeceira, ainda ensonada:
«Oi, amor?»
«Amor?»
«Não, senhora. Não é ele. Sou Papaíto. Apanhei o telefone no carro. Ele está muito mal, dona. A notícia que tenho para dar é muito triste. Socorremos o teu marido.

Ele acidentou, na esquila do mata-e-esfola junto ao quiosque da Rua do Doutor Pescoço. Ele não aguentou. Ainda nem chegamos ao hospital. Perdeu a vida».

Cláudia soltou um grito lancinante e desmaiou. Do outro lado da linha, quando a empregada doméstica foi ver o que se passava, ainda alguém dizia:
«Vivo na zona de Intaka. Trabalho nos Serviços Sociais do clube Desportivo». E de seguida a linha caíu.

Mais tarde os familiares do casal souberam por via do Papaíto daquela desgraça que se abatera sobre a família Ximboane. O jovem foi informando os familiares que estavam registados no telemóvel como «tios», «primos», «sobrinhos», etc. E quando alguns tios foram reconhecer o corpo lá estava Papaíto para testemunhar e entregar o telemóvel do Paulo aos familiares que acabavam de perder de uma vez um jovem casal que cumprira o matrimónio, há um ano e sete meses. A Cláudia não resistiu à carga de emoções. Ela estava já no sexto mês de gestação. Perdera a vida na flor da manhã do dia seguinte.

Depois da missa de 30 dias, a tia Joaquina, a mais próxima e amiga do casal Cláudia & Paulo, com ar severo reuniu com o Mateus para entre várias coisas perceber o teor dos sms´s que ela lera alertada, pelo Papaíto. O Mateus mordia-se de vergonha. Não conseguia dizer palavra alguma. Depois de vencer a mudez Mateus confessou-se à tia:

– Eu vi a Cláudia. Estava a conduzir. Abrandei a marcha e tentei perceber o que ela estava a fazer… Aconteceu-me um ciúme inexplicável, tia. Tentei alertar o primo, pensando que ele estivesse de folga.

A tia Joaquina, mesmo sem compreender a razão daquela atitude sentenciou:

«Mas tu não sabes que a Cláudia acabava de começar a trabalhar num escritório de advogados?»

 

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