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O status de Jei-Jei em Museu da Revolução

Revolução significa construção, mas também implica sempre demolição.

in Perestroika, Mikhail Gorbatchov

 

A ciência da narrativa comprova que a personagem é um elemento imprescindível no universo da ficção. Definitivamente, cabe àquela entidade a acção da história materializada em determinados espaços. Se, por um lado, não existe um romance sem narrador, por outro, tem de haver personagem a realizar e/ou a sofrer acções.

Conforme entendem Ducrot e Todorov (1998: 210)[1], “a personagem é o sujeito da proposição narrativa. Enquanto tal, reduz-se a uma pura função sintática, sem qualquer conteúdo semântico. Os atributos, tal como as acções, desempenham o papel de predicado numa proposição e encontram-se ligados a um sujeito apenas provisoriamente”. No Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem, os dois estudiosos prevêem que, além das várias formas de manifestação, o nome da personagem já anuncia as propriedades que lhe serão atribuídas. Yves Reuter observa que o nome é, realmente, fundamental para personagem, pois realiza várias funções essenciais: “Antes de tudo, o nome dá vida à personagem, fundamenta a sua identidade e a distingue das outras personagens, o nome remete a uma época ou espaço geográfico”, (Reuter, 2002: 101-102)[2], embora isso não seja, muitas vezes, assim tão inteligível.

Em parte, os apontamentos acima condizem com a descrição e a função da personagem Jei-Jei (nome inspirado no trombonista norte-americano J. J. Johnson), em Museu da Revolução, o mais recente romance de João Paulo Borges Coelho. Em Moçambique, a 14ª obra de ficção do escritor foi editada pela Texto Editores e, logo à partida, é um exercício de memória a interligar diversos fenómenos históricos, políticos, culturais e socioeconómicos. Nas 484 páginas do livro lêem-se as linhas do tempo que vão urdindo situações com momentos de avanço e recuo. Atentando o título do livro e os seus silogismos, de facto, fica evidente o contínuo interesse de João Paulo Borges Coelho em trabalhar as trilhas da História, afinal, ainda incipiente.

No livro há, certamente, um Museu da Revolução. No entanto, a exposição analógica entre o discurso ficcional e a realidade sobrepõem-se ao papel de uma infra-estrutura localizada na Avenida 24 de Julho da Cidade de Maputo. O Museu da Revolução, essa construção ideológica a convocar tempos de um stalinismo exacerbado, ao invés de enaltecer actos de coragem, sendo a coragem uma questão igualmente ideológica, precisou de ser restaurado com recurso à narração fictícia. É aí onde se encaixa o poder criativo de Borges Coelho. Pensando a História como uma série de eventos inesgotáveis, o escritor, numa desenvoltura como já não se via desde Rainhas da noite (2013), revigora o passado através de uma visão muito actual sobre os fenómenos. Ou seja, embora recue para lá da independência de Moçambique, o romancista não perde de vista a vocação de pensar o tempo presente, pois “narrar já é ‘reflectir sobre’ os acontecimentos narrados”, (Ricoeur, 2019: 103)[3]. Nesse exercício, claro está, o Prémio LeYa 2009 redefine a sua escrita na qualidade de um evento que se apropria da diversidade construtora de um território nacional.

As histórias de Museu da Revolução passam-se em vários pontos geográficos, começando no Japão. Esse é o país de Toichiro Yamada, condutor de um Toyota Hiace usado para transportar peixe, que, mais tarde, é importado pelo Coronel Boaventura Damião, um importante empresário moçambicano. O veículo chega a Maputo via Durban (África do Sul), para transportar aventureiros estrangeiros desesperados em acertar contas com o passado, como se fossem exploradores de A cidade perdida de Z (realização de James Gray). Entre essas personagens viajam na viatura a sul-africana Elise Fouché, o vietnamita Phuong e os português Artur Candal e Leonor Basto, conduzidos por Bandas Matsolo pelo país adentro. As histórias destas personagens cruzam-se reciprocamente com a de tantas outras e ainda constituem percursos a um imaginário moçambicano. Todas essas personagens são cruciais para o vigor do romance, contudo, há uma que, de longe, se distingue na construção da narrativa: Jei-Jei.

***

O status de Jei-Jei

No universo ficcional, as personagens são essenciais na organização das histórias. Elas não só garantem a realização das acções, como as assumem, as vivem, ligando-as entre si e dando-as sentido. Este posicionamento de Reuter (2002: 42-43) revela que quanto mais importante for a personagem, mais possibilidades tem de aparecer em certos momentos e de se encontrar com numerosas outras personagens. Pois bem, isso é o que acontece com Jei-Jei, em Museu da Revolução, que subverte os padrões de uma personagem tradicional. Em Moçambique, África do Sul ou Alemanha, territórios nos quais se locomove à vontade, acumula conhecimento demiúrgico sobre determinados episódios contados por um narrador homodiegético, isto é, que participa na história como personagem.

Imensuráveis são os eventos cardinais em que Jei-Jei, maroto às vezes, sobrepõe-se ao conhecimento do próprio narrador. Este cenário não deixa de ser curioso, pois, não obstante a importância de Jei-Jei, Museu da Revolução é uma história abrangente, na qual o protagonismo das personagens é continuamente partilhado. Ainda no princípio do romance, Jei-Jei é descrito da seguinte forma, pelo narrador: “Jei-Jei era prestável, boa pessoa, sabia inglês e mecânica, havia estado no estrangeiro. Além disso, talvez precisasse de um emprego. Quem melhor do que ele para o ajudar? Tudo isto contou Matsolo a Jei-Jei, e este contou-me a mim”, (p. 47).

No excerto, o narrador revela que não é omnisciente quanto à sucessão dos eventos à sua disposição. A sua órbita é restrita. Assim, ao introduzir Jei-Jei, esclarece imediatamente como depende da personagem. Por exemplo, na seguinte passagem, Leonor Basto despede-se do namorado, ansiosa em ir procurar e conhecer a mãe abandonada pelo pai algures no Centro de Moçambique:

 

‘A sério, vou viajar’, insistiu ela [Leonor].

‘Para onde?

Pela cabeça dele [o namorado de Leonor] passou alguma razão burocrática relacionada ainda com a morte de Francisco Basto, um assunto da escola, alguém doente que ela se dispusesse a ajudar, coisas assim.

‘Vou a África.’

Jei-Jei protestou, desta vez de viva voz. Leonor já sabia que vinha a Moçambique. Retorqui que era sempre assim, os estrangeiros tinham dificuldade em referir os países africanos um a um, falavam sempre no continente como se fosse uma entidade singular (p. 189).

 

O que se lê nessa passagem denota influência da personagem sobre o narrador. Em outras palavras, quer isso dizer que Jei-Jei é mais do que um sujeito da proposição narrativa, reduzida a uma função sintática, sem qualquer conteúdo semântico. Jei-Jei ultrapassa a extensão do discurso, ora cronológico, ora anacrónico. Destarte, apenas ele tem o grande privilégio de se aborrecer com o narrador, de o contrariar, corrigir, elucidar ou informar sobre situações por ele desconhecidas. O poder ulterior daquela personagem sobre o universo diegético é deveras evidente, de modo a que o narrador não tem receios em anunciar que certas ocorrências foram-lhe contadas ao telemóvel por Jei-Jei. É esta personagem responsável por fornecer a matéria-prima ao narrador que, mesmo estando inserido no tempo e nos espaços da ficção, mal consegue suprir determinadas limitações. Claramente, o narrador homodiegético possui a liberdade no exercício da linguagem, daí a faculdade de manipulação discursiva segundo o seu próprio critério. Graças a essa emancipação, com efeito, o narrador também contradiz Jei-Jei, quando este parece descrever factos “imprecisos”. Portanto, ambas as entidades constroem o enredo em colaboração, com a personagem a aspirar ser narrador e este vestindo a capa de personagem:

 

Posto de outra maneira, a certeza de que Jei-Jei necessitava das histórias que criávamos para explicar tudo aquilo que acontecia foi perdendo força, transformada aos poucos na constatação do seu inverso, que julgo já de alguma maneira ter referido, de que era eu que necessitava dos acontecimentos que ele trazia para alimentar essas histórias (p. 474).

 

Na verdade, embora no fim da história Jei-Jei apareça, de certo modo, desinteressado, ele tanto precisa do narrador quanto este dele. A conexão entre as duas entidades textuais garante ao romance um vigor estético-literário. Não é o enredo em si ou as situações sobre a História de Moçambique o que mais vale, é a criatividade enunciadora em sintonia com a apropriação dos lugares e de figuras históricas. Se Borges Coelho ficciona João Albasini, em O olho de Hertzog (2010) e Samora Machel, em Crónica da Rua 513.2 (2006), em Museu da Revolução chegou a vez de trabalhar os registos de Ricardo Rangel e Eduardo Mondlane. Ao torna-los personagens do seu romance, o escritor, de alguma maneira, combate o esquecimento, reavivando essas distintas personalidades moçambicanas.

Ora, há outras ocorrências do Museu da Revolução em diálogo com obras anteriores de Borges Coelho. Por exemplo, a forma como o espaço social é configurado na alusão à Cidade de Lourenço Marques e, depois, Maputo, é uma continuação do que o escritor faz na novela Hinyambaan (2008). Nos dois casos, Borges Coelho coloca cidadãos estrangeiros a apreciarem a capital moçambicana, considerando dois momentos diferentes: antes e depois da independência de Moçambique. Em Hinyambaan, na avaliação, destacam-se as famílias Odendaal e du Plessis e em Museu da Revolução Artur Candal. Aí estão outros ângulos na apreciação do espaço urbano real, no entanto, com recurso à visão de seres imaginários. João Paulo Borges Coelho investe tanto na configuração do espaço quanto na caracterização das personagens. Logo, as viagens por África, Ásia e Europa internacionalizam o mapa literário do autor.

Voltando ao narrador, o seu estatuto homodiegético e as intrusões permanentes conferem uma pacífica ligação entre quem narra e quem lê, logo, entre os universos ideal e real também. No caso, as intrusões não servem apenas para acrescentar eventos secundários, mas também para refrescar a memória do leitor relativamente a acontecimentos antes enunciados. Em termos de futuro, tão-pouco sobeja o que dizer quanto às intrusões. Afinal, a viagem no Toyota Hiace (uma bela maneira de inventar coerências à volta da importação de viaturas japonesas pelos moçambicanos)  por diversas campanhas sociopolíticas e geográficas de Moçambique acontece ao ritmo de Jei-Jei. Quando esta personagem se farta de contar ao narrador o que se passou com outras personagens no regresso de Tete a Maputo, o narrador percebe que já não há mais nada a dizer. A história fica estagnada nesse exacto momento. O narrador até improvisa, porém não consegue prosseguir. Estando no universo diegético, sai da sua zona de conforto e vai ao Museu da Revolução procurar por Jei-Jei. Ali pede para a personagem iluminar zonas de penumbra. Jei-Jei, gozando do seu status, contraria a ansiedade do narrador e este poe-se a despedir-se sem esconder o desejo de continuar a contar.

Abreviando, Jei-Jei, ao cumprir a função prevista pela narratologia, extravasa a dimensão de personagem comum. Jei-Jei é a fonte, a ligação entre as outras personagens (que, algumas, o narrador nem sequer conhece) e o próprio enunciador do discurso; é a ponte entre espaços geográficos, entre figuras e momentos históricos. É ele o pretexto para a alusão aos percalços dos madgermanes, regressados da Alemanha, ou às excentricidades do Apartheid, na África do Sul. Enfim, se, segundo Benjamim (1987: 54), “escrever um romance significa descrever a existência humana, levando o incomensurável ao paroxismo”, em Museu da Revolução está claro que João Paulo Borges Coelho valida essa asserção.

 

Título: Museu da Revolução

Autor: João Paulo Borges Coelho

Editora: Texto Editores

Classificação: 17.5

 

[1] Ducrot, Oswald e Todorov, Tzvetan (1998) Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem, 3ª ed. São Paulo: Perspectiva.

[2] Reuter, Yves (2002) A análise narrativa. Rio de Janeiro: DIFEL.

[3] Ricoeur, Paul (2019) Tempo e narrativa 2: a configuração do tempo na narrativa de ficção. São Paulo: VMF Martins Fontes.

 

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