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O Rosto e o Tempo, de Armando Artur*

Por: Albino Macuácua

 

A leitura desta antologia que sintetiza o conjunto das obras dos 35 anos de produção literária de Armando Artur devolveu-me, à primeira, às reflexões baumgartenianas. No século XVIII, Baumgarten teria fundado a ciência das sensações, ou seja, a estética, sob uma reflexão filosófica antes inexistente, com o objectivo de estudar o belo, cuja finalidade é a perfeição do conhecimento sensível. A emancipação do belo (ou, se quisermos, do estético) como o ponto mais alto do sensível e, por inerência, dos sentidos e suas sensibilidades acontece com a separação entre o belo, que resultaria da combinação das nossas representações, e obem, que constituiria o utilitário ou, por outras palavras, o ético. Esta cisão, no meu entender, estritamente teórica, é igualmente reforçada pela revolução científica e tecnológica e pelo desenvolvimento da ciência experimental que, até então, se arrastava, o que dá maior autonomia, em termos científicos e até filosóficos, ao campo das artes.

Ora, num primeiro momento, a poesia de Armando Artur parece suspender a realidade objectiva, aliás, para mim esta não é uma poesia de visão plástica como seria, por exemplo, a poesia de Cesário Verde e parte da poesia de José Craveirinha,e isto sustentaria, deste modo, o lirismo e o belo puros, baseados na visão de Baumgarten. Porém, logo a seguir emerge, entre as fissuras que as palavras e expressões contêm,um mundo social diverso que situa os poemas de Armando Artur entre o que se convencionou chamar arte desinteressada (quatro décadas mais tarde defendida por Immanuel Kant no seu livro Crítica da Faculdade de Julgar) e arte militante ou engajada.

Para a minha segurança, ao ler O Rosto e Tempo, pareceu-me mais fácil começar por tentar esclarecer os conceitos inscritos nos termos rosto e tempo. De resto, no poema intitulado “O Rosto”, desta antologia, o poeta refere-se ao rosto e ao tempo e à sua relação quase que denegada, dizendo o seguinte:

“O rosto e o tempo

Cruzam-se num espelho

Rachado. E dialogam.

É uma conversa de surdos.

O rosto e o tempo divergem

Na mesma vertigem do absurdo.

Ambos não se reconhecem.

[…]”

(Artur, 2021, p. 117)

Existe, entre estes, um espelho rachado”, mediando as experiências da vida, metonimicamente representadas pelo rosto e que discorrem pelo inexorável tempo. Este rosto surgecomo a parte visível da acção do tempo que o sujeito poético parece não aceitar ao invocar o espelho rachado. Então, que rosto e tempo são estes?

Na entrevista concedida a Lucílio Manjate, o poeta Armando Artur define [o] tempo como “o lugar, o invólucro, onde o ser se realiza em busca da sua essência” (Artur, 2021, p. 53). O tempo, uma categoria importante na filosofia existencialista, cobre tudo, cobre o ser, transfigurado, no caso desta antologia, em rosto que, em última instância, é o Homem, que se constrói e se busca permanentemente, o Homem que consiste num projecto. É o tempo da correlação passado, presente e futuro, é o tempo em que estamos todossubmersos, é o tempo a que estamos sujeitos, é o tempo comoo eixo estruturador das nossas possibilidades como seres humanos.

E o rosto? Este equivale à facticidade, ou seja, é o que de facto é. Portanto, o rosto, sujeito ao tempo, é aquilo que é, e, como já o dissemos, representa o ser humano nunca acabado eque se foi esculpindo a partir experiências ao longo do tempoou de um tempo.

Esta relação entre o rosto e o tempo explica, por um lado, os 35 anos de actividade poética de Armando Artur. Temos, objectivamente, o rosto que é o poeta e o tempo que é o período que esta antologia procura sintetizar. Por outro lado, esta relação é parte do que fundamenta e caracteriza a poesia de Armado Artur, que procura compreender o homem na sua totalidade, na medida em que o considera um ser de possibilidades, ao demonstrar os diferentes matizes da sua existência num “transbordamento do humano” [expressão emprestada do poeta (numa entrevista conduzida por Jorge de Oliveira e Marcelo Panguana) em afirma que a sua poética procura abarcar a vida em toda a sua extensão e densidade].

Trata-se de uma poesia que explora a relação do Homem com o amor (ao retirar homem da condição de utensilidade), a relação com o outro, num acto de intersubjectivação, a relação com a morte, mas não como o fim absoluto das possibilidades do homem. Estas todas relações, Armando Artur fá-las como que de forma naïf, através de poemas, em geral, breves, mas de grande carga poética, recorrendo a uma linguagem simples, alheada de rodeios e que redimensionam os signos, cujos sentidos estão, por um lado, virados para si, fundamentando o papel primeiro e tradicional da poesia, ao construir realidades tendencialmente mais abstractas e conceptuais.

Por outro lado, Armando Artur explora a palavra que aponta para o que é exterior, para a realidade social ecircundante que o inquieta e que também lhe provocaadmiração através de coisas pequenas e simples na sua essência como as pedras, a areia, as folhas das plantas e das árvores, a infância, a luz, etc., numa busca permanente de simesmo. É o subjectivo que redimensiona e sustenta o objectivo; e os olhares subjectivos presentes nesta antologia são formas de engajamento, pois nunca são isentos, sobretudo quando toda a tentativa de isenção é já um exercício tácito de engajamento. Um exemplo disso é o seguinte poema:

Reabitámo-nos

com desvelo e desencanto

e estrangeiros de nós próprios

imigrámo-nos.

Ser ou não ser

agora pouco nos importa.

O destino que parte

e se reparte

eis o nosso desassossego.

(Artur, 2021, p. 87)

É nisto que Armando Artur, na sua obra, persegue as questões do ser, da sua existência, da sua construção, por entender que tais se referem à compreensão do homem, à compreensão do que somos e à compreensão da nossa essência. Por isso, não é imprudência nenhuma afirmar que a sua obra se caracteriza, em grande medida, por um humanismo que correlaciona a fragilidade e grandeza do homem, tal como atestam os seguintes poemas:

Infância

Sempre o mesmo desejo

de voltar às praias

da infância:

argúcia dos dedos na areia

alegria dos olhos na espuma…

mas como voltar aos trilhos

apagados?

e como voltar às fontes

incendiadas?

(ao invés deste desejo

eis-me espiando o futuro)

que nunca vivo!).

(Artur, 2021, p. 65)

E para que o nosso sonho renasça

com a levitação do vento e do grão

eis-nos aqui de novo,

passivos como os espelhos,

no tear da nossa existência.

(Artur, 2021, p. 95)

(pragmatismo existencial)

«O amanhã! o amanhã!…»

com esta obstinação

aprendi a esmagar o tédio,

o medo e a angústia

e juntei-me à caravana

dos que ateiam archotes

ao meio-dia!

(Artur, 2021, p. 67)

Aliado a esta dimensão existencialista e, por isso, humanista, a poesia de Armando Artur é uma poesia das essências das coisas. Não é uma essência predefinida, mas a que torna o Homem homem, se entendermos que “tornar-se” implica transformações incessantes à busca do que somos.

Esta questão das essências (ou quintas-essências) devolve-nos ao início, ou seja, à questão do rosto e do tempo, na medida em que o diálogo entre estas categorias nos mostra que a essência, além de estar sujeita ao tempo, é por ele estruturada.

Em suma, poesia de Armando Artur é uma morada do ser. Esta asserção é baseada em Martin Heidegger que, no livro A Caminho da Linguagem (2003, p. 121), afirma que a linguagem é a morada do ser e é a essência do homem, e os guardiões desta morada são os pensadores e os poetas. Portanto, estará subentendido, nestas palavras, que a literatura, que é uma forma de linguagem, é igualmente uma morada do ser, e a poesia de Armando Artur é um claro exemplo disso.

Para terminar, leio um poema dedicado aos poetas, um poema sobre o papel dos poetas, sobre a essência dos poetas e, sobretudo, sobre o homem que os poetas devem ser:

Aos poetas

Levamos connosco a memória

colectiva da terra e dos homens.

Somos os que acendem archotes

não para verem a Lua em pleno dia,

mas os contornos do mar e da leveza da espuma.

Sabemos de cor o rumor do sangue

e a chama da sede que queima de longe.

Somos os que conhecem por dentro

o murmúrio das horas e a respiração das pedras

em noites de estio.

(Artur, 2021, p. 109)

Obras/autores citados

ARTUR, Armando. (2021). O Rosto e o Tempo. Maputo: Alcance Editores.

BAUMGARTEN, Alexander, Gottlieb. (1993). Estética: a Lógica da Arte e do Poema. Tradução de Mirian Sutter Medeiros. Petrópolis: Vozes

HEIDEGGER, Martin. (2003). A Caminho da Linguagem. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schubak. Rio do Janeiro: Vozes.

.Texto apresentado na cerimónia de lançamento de O rosto e o tempo, de Armando Artur, dia 27 de Outubro de 2021.

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