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O parto

A enorme vaga de água lamacenta surpreende as três barrigudas fechadas na circular palhota que faz de “casa de mãe espera”. Hanidjo é a mais velha. Esta é a sua quarta gravidez. As outras duas são marinheiras de primeira viagem. 

Empoleirada numa carroça puxada por dois burros, Hanidjo deixou a casa, o marido e as três filhas numa remota aldeia a vários quilómetros da sede do posto administrativo. É desta que acredita que vai ter o rapaz que alimenta os sonhos e as fantasias do marido. Ele quer um filho varão para lhe ensinar a ser homem, a ir à caça, a dominar os contornos da vida e, acima de tudo, para perpetuar o apelido da família.

As duas estreantes são de aldeias mais próximas. Também estão em gravidez terminal e vieram para aqui em busca de um parto seguro. O tempo é passado a ouvir as sábias experiências de Hanidjo: de como a dor do parto não tem paralelo com mais nenhuma; de como na hora da verdade todas as fantasias esfumam-se e apenas a força interior da mulher consegue demover todos os pedregulhos; e de como a mão divina está sempre por perto para dar o impulso que o novo ser precisa para se fazer à vida.

A chuva ininterrupta, os ventos e as trovoadas fortes chegaram antes dos bebés. É de madrugada. A cobertura e toda a estrutura da palhota dançam. O chão virou uma nascente. A água fervilha. Não há ninguém no posto de saúde para apoiar. 

O albergue das três mulheres vai abaixo e dissolve-se como açúcar em água quente. Não sobra nada. Todos os destroços seguem viagem ao ritmo da corrente. Relampeja. As mulheres estão agora totalmente ensopadas e entregues às vontades da chuva e dos ventos fortes. A corrente de água atinge-lhes a cintura. Ainda assim, elas mantêm o equilíbrio e, de mãos dadas, arrastam lentamente as suas enormes barrigas para o edifício principal do posto de saúde.

Não há como buscar abrigo no interior. As portas estão gradeadas e trancadas a sete chaves. É a única forma de proteger o posto dos energúmenos que, vezes sem conta na calada da noite, tomam-no de assaltado para surripiar medicamentos e vendê-los num tchungamoyo da grande cidade, e assim obter alguns trocados para comprar cabanga

As três mulheres estão agarradas às grades do portão. O seu choro, em coro, oculta-se no roncar dos céus, no uivar da ventania e no borbulhar da torrente de lama. O inferno desceu à terra!

Sem aviso prévio, as chapas de zinco, que cobrem o posto de saúde, levantam voos espontâneos e sincronizados. Uma a uma. É como se se tratasse de um esquadrão de caças-bombardeiros, que obedecem a um comando para descolar de um porta-aviões. Atravessam os ares em voo rasante, transbordando vigor e tenacidade. Difícil é saber onde cada chapa irá aterrar. Até pode ser no pescoço de qualquer incauto em fuga.

Um ruído forte abafa o som da trovoada. A estrutura do pequeno edifício estremece. Hanidjo assusta-se. Os nervos sobem à flor da pele num arrepio avassalador. As mulheres compreendem que a parede traseira cedeu. Abriu-se um acesso. Sempre de mãos dadas, fazem uma marcha lenta e sincronizada na direcção da parede que ruiu. O nível da água continua a subir.

O susto provocou sensações estranhas em Hanidjo. Entra em contracções. Começa a ser difícil arrastar os pés. Ela sente algo quente massageando-lhe as pernas e misturando-se com a água lamacenta. A experiência ensina-lhe que é a bolsa que rompeu. O seu bebé já está perto.

No interior do edifício principal do posto é um total alvoroço. A força da água precipita tudo para fora. As três mulheres buscam o equilíbrio possível. Não pára de chover. Há um enorme tampo de madeira, de meia altura, fixado junto a uma das paredes. As outras duas ajudam Hanidjo, que já não se aguenta, a trepá-lo.

A água ultrapassa ligeiramente a altura do tampo. Hanidjo deita-se de costas. Metade da barriga está submersa. A outra metade está fora. Ela quer entregar um novo ser a este mundo. Um mundo que hoje se confunde com as trevas.

Não há apoio médico. Há apenas duas jovens inexperientes que procuram ajudar. Hanidjo quer ser mãe. Quer dar ao marido o filho varão que não tem. Quer continuar a plantar rosas sem espinhos e colorir o mundo com o dom da vida.

A água turva roça-lhe as coxas num imenso turbilhão. Ela chora. Grita. As duas jovens não sabem fazer de parteiras. Também choram. São ecos que não se sobrepõem ao som dominador que a mãe natureza faz: o assobiar dos ventos, o relampejar do céu e o tamborilar de cada gota da intensa chuva.

Mas o bebé tem de nascer. Deus tem de ser misericordioso. A crença tem de prevalecer. A energia positiva das três mulheres tem de vencer. O ciclone tem de deixar espaço para que a vida sorria, e que o raio que risca os céus ilumine a pétala de uma voz que quer ser ouvida.  

O bebé sai disparado do ventre de Hanidjo num mergulho directo para a água turva. Não precisa da tradicional pancada no rabinho para chorar. Solta a sua voz de macho e anuncia-se ao mundo. Sobreviveu, tal como a Rosita do ano 2000.

 

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