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O Outono do Patriarca

John Dalberg-Acton, mais conhecido como Lord Acton, historiador, jornalista e político britânico, numa missiva que se tornaria lendária, dirigida ao bispo Mandell Creighton – chegou a ser Bispo de Londres -, disse a sua proverbial frase em 1887: “Power tends to corrupt, and absolut power corrupts absolutely in such manner that great men are almost always bad man” (“O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de tal modo que os grandes homens são quase sempre homens maus.”) Isto foi dito em 1887, há 130 anos, e permanece actualíssimo! Dir-se-ia: é um pensamento daquele, deste e de todos os tempos.

O escritor colombiano Gabriel García Márquez lembrou-se do Lord Acton e da sua lendária frase quando escreveu a sua obra seminal sobre o poder absoluto – sobre os ditadores: O Outono do Patriarca. Mas antes vira, na madrugada de 23 de Janeiro de 1958, em Caracas, o avião que levava Pérez Jiménez, a sua mulher, as suas filhas, os seus ministros e alguns amigos em fuga da Venezuela. O ditador, que tinha a cara inflamada por uma neuralgia – conta-se – estava furioso com o seu ajudante: na precipitação da fuga, este esquecera, no chão da pista do aeródromo, uma maleta com onze milhões de dólares. A queda de Jiménez, a primeira queda de um ditador naquela geografia mítica, levou o escritor colombiano a escrever aquele livro. Contou-o mais tarde a Plinio Apuleyo de Mendoza, seu amigo igualmente indefectível, numa conversa que está no livro de ambos – O Cheiro da Goaiba.   

Plínio Apuleyo de Mendoza: “Disseste-me que todos os teus livros têm como ponto de partida uma imagem visual. Qual foi a imagem de O Outono do Patriarca?

Gabriel García Márquez: “É a imagem de um ditador muito velho, inconcebivelmente velho, que fica só num palácio cheio de vacas.”
O tema do ditador e do caudilho é um tema importante na literatura latino-americana. Aliás, num texto exemplar sobre o escritor cubano Guillermo Cabrera Infante, que morreu no exílio em Londres, em 2005, o escritor peruano Mario Vargas Llosa considera a América Latina o “continente dos ditadores”. À época em que García Márquez publicou o seu famoso romance – que ele dizia ser o seu melhor livro, mesmo tendo escrito antes o soberbo Cem Anos de Solidão, o cubano Alejo Carpintier publicara O Recurso do Método, o paraguaio Augusto Roa Bastos, Yo, El Supremo, e o venezuelano Arturo Uslar Pietri, Oficio de Difuntos, entre outros. O poder, o poder absoluto, é um tema fascinante para o escritor colombiano. Por que tanto se interessava pelo tema?  
Gabriel García Márquez: “Porque sempre acreditei que o poder absoluto é a realização mais alta e mais complexa do ser humano, e que por isso resume, ao mesmo tempo, toda a sua grandeza e toda a sua miséria”. Aliás, Márquez não deixou de lembrar o aforismo certeiro de Lord Acton – “O poder absoluto tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. “É um tema inevitavelmente fascinante para um escritor”, sentenciou o colombiano.

Mario Vargas Llosa também escreveu um romance notável sobre o tema – A Festa do Chibo -, baseado na figura do ditador dominicano Rafael Leónidas Trujilo. Para mim, tanto O Outono do Patriarca (1975) do colombiano, como A Festa do Chibo (2000) do peruano, são as duas obras magistrais sobre o tema na literatura latino-americana. Tenho-me recordado tanto destas obras nestes dias!

África também tem ou teve muitas figuras literárias deste escopo. Recordo-me de ver o escritor nigeriano, Wole Soyinka, a falar no dia da morte de Sani Abacha, a 8 de Junho de 1988, e eu a pensar que seria inevitavelmente um tema literário aquele homem que acabara, inesperadamente, naquele dia. Soyinka estava então exilado, como muitos escritores africanos acossados, ou porque optaram pela sedição ou porque foram forçados a fugir perante regimes autoritários dos seus países, e não foram poucos. A literatura é o domínio da liberdade. As ditaduras ou os poderes despóticos ou monolíticos querem a desinência dos escritores – dos intelectuais. Não o contrário.

Nos anos 80 líamos com fascínio os escritores latino-americanos e exultávamos com as suas obras. Muitas vezes me interroguei por que razão não éramos capazes de escrever livros mais arrojados. Ou de ter posições públicas mais livres. Parece-me evidente que há constrangimentos: a proximidade do poder, por vezes a relação concupiscente com o mesmo, a auto-censura, a noção do preço da dissensão, a complacência, a resignação mesmo diante de um evidente opróbrio. O silêncio como forma de não pôr em causa o fim último. Tenho para mim que discordar não faz de quem diverge necessariamente anti-patriota. Antes pelo contrário, revela-se interesse e não descaso. Mas isso não serve perante os prosélitos do regime.

Tenho pensado muito, nestas semanas, em dois belíssimos escritores zimbabweanos. Dambuzo Marechera, que morreu prematuramente, em 1987, aos 35 anos, e Chenjerai Hove, que morreu no exílio, na Noroega, em 2015, aos 59 anos. Marechera era um iconoclasta absoluto – poeta e contista notável. Morreu cedo injustamente, vítima de SIDA.

Zimbabwe perdeu ali a sua esperança mais potente em termos literários nos anos 80. Ficou um marco – o livro de contos The House of Hunger.
Conheci, em Harare, em 1989, Chenjerai Hove. Colaborei, pela mão do Mia Couto, na Agência Internacional de Notícias – IPS, alternativa, sediada regionalmente no Zimbabwe, que tinha Chenjerai como coordenador. Hove era um homem probo, optou pela sedição e pela denúncia do que era e é absolutamente inaceitável. Acabaria por ser o mais importante escritor do país do pós-independência, não só pelo livro Bones, mas por uma imensa obra, que incluía poesia e ensaio, para além da ficção. A sua dissensão valeu-lhe o exílio. O vetusto Patriarca não se permite a tolerar liberdades, muito menos críticas.

Gostava imenso de ler o que eles escreveriam ou como eles descreveriam estes tempos que marcam, inelutavelmente, o fim do velho e alucinado Patriarca no seu país. O Outono deste Patriarca. O Inverno deste Patriarca. Felizmente, a notável escritora NoViolet Bulawayo não só escreve, como é lúcida e ferozmente crítica. Numa entrevista ao The Guardian, de Londres, há quatro anos, disse sobre o velho Patriarca: “There was a time when he was good for the country but I feel like that time is gone”. Não poderia haver melhor tradução para aquilo que intuía Lord Acton: “Houve um tempo em que ele foi bom para o país, mas eu sinto que esse tempo se esgotou…” (tradução livre).

É esta percepção que me parece ineludível. O seu tempo está esgotado. O Patriarca está fora do seu tempo e vive alucinado com e pelo poder. Poderia ser, evidentemente, um tema literário. Mas é muito mais do que isso. Porque aquelas imagens patéticas e cómicas encerram, indubitavelmente, uma grande tragédia. Não só por aquilo que foi, provavelmente, a grandeza deste homem – e sou capaz de reconhecê-lo -, mas a sua miséria, agora escancarada. Ou, sobretudo, a miséria humana e material a que condenou aqueles que agora o querem ver apartado do poder e gritam-no livremente nas ruas.
Como teria advertido Lord Acton, na célebre epístola ao futuro Bispo de Londres, quando falava do poder absoluto e dos seus efeitos devastadores, um grande homem que se tornou inevitavelmente num homem mau.

PS – O Patriarca haveria entretanto de resignar, depois de redigido este texto. O júbilo dos zimbabweanos comoveu-me até às lágrimas. Há muito que eu não vivia algo tão exaltante. Eu sou um implacável sonhador da liberdade. A ignomínia com que se cobriu no fim este homem releva da estupidez que o poder absoluto e a corrupção são pródigas em impor.

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