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“O livro é uma forma de eternizar as nossas experiências”

Roberto Chitsondzo lança, quarta-feira, às 18h, no Auditório do BCI, em Maputo, o seu livro-disco de estreia a solo: Kwiri. A obra, na vertente discográfica, contém 14 músicas, as quais vêm com uma mensagem que concorre para a construção de uma sociedade ideal. Quanto ao livro, além de um resumo sobre cada música do disco, apresenta, igualmente, uma biografia do autor, testemunhos e fotografias. Se, por um lado, o CD constitui a materialização da sua paixão pela música, o livro é uma forma de eternizar as suas próprias experiências, partilhando-as com os outros, como assegura o autor na entrevista que se segue.

 

Kwiri é o título do seu disco de estreia. Por que esta decisão de, agora, decidir aventurar-se a solo?

Não considero uma aventura a solo. Na verdade, penso que há um momento das nossas vidas em que somos o nosso ego. Um momento íntimo. Antes, tinha outras prioridades, por exemplo, Ghorwane ou produzir músicas para campanhas eleitorais do meu partido. Ora, houve momentos em que a discussão era garantir a continuidade de Ghorwane. Nessa altura, não me via na condição de arrancar para um projecto individual, quando a minha prestação era muito importante para o grupo. Era importante que o colectivo estivesse firme, porque, muitas vezes, as opiniões que vêm de fora abala-nos um pouco. Era necessário que eu não libertasse o meu ego, mas do colectivo, que está acima das minhas aspirações. Agora que sinto que a minha banda está bem e a opinião pública aceitável, sim… Sinto que ter deixado meu trabalho a solo para mais tarde contribuiu para a vitalidade do meu grupo. Quanto ao Kwiri, é o ventre da mãe, comparado a um pilão, por onde passa vários alimentos, com sabores diferentes. Do mesmo jeito, pelo ventre de uma mãe passam vários filhos, cada um com a sua história, desde a gestação até ao crescimento. Essa mãe não pode ter a capacidade de guiar o carácter de cada filho. Cada um tem sua paulada, como digo. Então, Kwiri funciona como mulher mãe, filha e esposa. É uma homenagem a figura da minha mãe e de todas as mães do mundo.

 

Assim sendo, admite a possibilidade de ser, igualmente, uma homenagem à mãe terra, como calha em Craveirinha?   

Alguns colegas meus têm estado a colocar a sua interpretação nesta perspectiva. Mas não considero muito esta hipótese. Eu pensei, sinceramente, no ventre da minha mãe. Mas admito que este exemplo possa se estender para outras situações.

 

Com este livro-disco reescreve, por via de várias entidades, a sua história de vida. O que mais lhe moveu neste regresso ao passado?

A ideia de partilhar experiências numa altura em que somos poucos a resgatar valores culturais e de vida. Acredito que este exercício não só faz bem a mim como constitui uma forma de deixar o legado para outras pessoas. O livro é uma forma de eternizar as nossas experiências. Além disso, percebi que, hoje, qualquer criança no início de carreira pode lançar um disco. Então julguei que seria interessante fazer algo diferente.

 

“Dondza”, uma das músicas do CD, conta com coros dos seus netos. Como acontece esta ideia?

Saí da faculdade à hora do intervalo e nunca mais voltei. Mas um dia desses volto para fazer o meu mestrado. Enfim, quis com a música lembrar que existem muitas pessoas que não têm a possibilidade de ter uma escola ou um professor. Se nós temos esta possibilidade, por que não aproveitar? As crianças, nos coros, entram para legitimar o conteúdo da letra. Se elas dizem que querem que façamos da escola um jardim e que cada criança seja uma flor, é um apelo muito forte. Daí ter buscado meus netos, alguns sobrinhos e a minha filha mais nova, na altura ainda pequena.

 

Além dos seus netos, tem uma música com sua mulher: “Xiwela mina”. Foi uma forma de tornar o CD algo íntimo?

Sim, trazendo estórias da minha avó. Minha mãe dizia também esse poema “Xiwela mina”. Aqui recriei o texto para resgatar aquela voz que só podia cantar no seu quintal ou para nos fazer adormecer. Serviu também para manter uma recordação. Hoje não tenho a minha avó e nem a minha mãe, mas tenho a minha esposa por perto, que já cantava na Igreja Metodista, onde o canto é uma coisa que vale a pena. E ela é de uma família de pessoas que cantam.

 

“Muhondzi” faz lembrar “Ha deva”, de Jimmy Dludlu, adaptada do original de Alberto Machavele. A mensagem é clara: somos todos passageiros neste mundo. O que acha que dificulta esta percepção, de modo que o mundo não seja uma aldeia global, com paz?

Esta música foi introduzida na Igreja Metodista, pelo Dr. André Bahúle, para a juventude. No entanto, eu aprendi do maestro Cadinho. Identifiquei-me com esta música porque o apego às coisas mundanas é algo desastroso. O mundo hoje envolve-se em guerras por causa deste apego. É bom termos em mente que no dia em que tivermos que deixar o mundo não o deixaremos com todas as coisas que damos tanta importância. Se acreditamos em Jesus Cristo, que deu a vida para remoção dos nossos pecados, devemos deixar à parte o materialismo, para que, no final do dia, possamos dizer: vim com mãos vazias e irei partir com mãos vazias. Assim não vamos exceder os limites da bondade de Deus.  

 

E por que acha que “Custa dizer amor”, um outro título do CD?

Custa muito dizer amor porque não estamos a saber construir esse sentimento. Não amamos o próximo. Quando saímos do culto religioso quase que esquecemos o que fomos lá fazer. As famílias que têm um pouco mais esbanjam mesmo sabendo que o vizinho ao lado está a morrer de fome. Além disso, acho que devíamos levar em conta o exemplo do Presidente da República, quando sai de casa, de forma desinteressada, para ir às matas de Gorongosa encontrar-se com um irmão e com ele conversar sobre a paz no nosso país. Todos devíamos ser assim, com toda a sinceridade. Deste modo, não custaria dizer amor, e, dentro dos nossos lares, não haveriam conflitos. Porque muitas vezes os problemas sociais partem de casa.

Na mesma onda, temos em “Timpondho” a desvalorização do dinheiro. Na música, uma voz diz: “O seu dinheiro não pode comprar uma mulher, porque ela compra-se com amor”. Como pensa na relação dinheiro vs. amor, nos tempos que correm?

Temos muitos casos de homens que violentam as mulheres por terem “lobolado” a sua esposa. Mas o dinheiro não pode, de forma nenhuma, comprar uma mulher. A ideia nessa música é dizer que vamos construir um lar com respeito mútuo.

 

Além de adaptar um poema de Leite de Vasconcelos, fez o mesmo com um texto de Ungulani meste CD: “Waxukuvala”. É um grande apreciador de literatura?

Sou apaixonado por leitura e gosto de aprender por via dos livros. Lembro-me, inclusive, do primeiro livro moçambicano que li: Nós matamos o Cão-Tinhoso, de Luís Bernardo Honwana. E, de lá para cá, nunca mais deixei de ler. Aliás, tenho dito aos meus colegas que devemos investir na leitura porque temos uma poesia muito bonita. Não precisamos perder tempo com coisas que não têm qualidade. Só lendo podemos ter melhor inspiração. E eu já cantei José Craveirinha e Mia Couto também.

 

O que mais lhe deu gozo, o CD ou o livro?

Gosto muito de cantar. Mas, quando nos deparamos com um texto de alguém que escreve alguma coisa a nosso respeito é muito comovente. E fiquei muito surpreendido. O livro dá-nos a imagem de uma pessoa que passou por vários caminhos, com algumas referências que já não me lembrava. Voltei a reencontrar alunos meus da escola e amigos. É um livro sobre a minha vida, de facto. E, como sabe, não sou aquele menino recto. Como pessoa, também tenho os meus males, inclusive, como cidadão. Por exemplo, eu desobedeci o meu pai, que não queria que eu fosse músico. Os pais não gostam de saber que os filhos estão numa profissão que não dá dinheiro. Mas, se o meu pai estivesse vivo e pudesse ver o nosso apelido numa prateleira, se calhar tivesse se surpreendido.

 

Qual é o maior reconhecimento para um músico com uma carreira como a sua?

O maior reconhecimento é o sorriso de todas as pessoas que nós encontramos. É verdade que os meus filhos não vivem desse sorriso, mas é algo que nos faz muito bem. Costumamos dizer que se cada sorriso que recebemos fosse uma moeda seríamos muito rico. Mas somos ricos na mesma, porque ser reconhecido é mais que qualquer beleza, por exemplo, como sugere uma máxima changana.

 

“Hafa” é uma música que nos dá um quadro doente da nossa sociedade. Como podemos curar o nosso país?

É necessário continuarmos a cantar as bondades. Não devemos ficar calados se tivermos um vizinho com vida errada; não devemos ficar calados ao ver uma pessoa na rua a comportar-se mal. Devemos falar, sem medo.

 

“África está livre, mas falta alcançar o progresso”. Esta mensagem é de “Freedom”. Como se chega lá?

Com paz, porque assim podemos gritar bem alto os nomes dos nossos heróis, desde Nkwame Nkrumah aos mais jovens. Precisamos de uma libertação espiritual e da ignorância, o que se garante com leitura.

 

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro toda a obra de Paulina Chiziane, qualquer livro de Mia Couto e a obra de Ana Boene, que nos traz a história dos libertadores da pátria.

 

Perfil

Roberto Maximiano Chitsondzo nasceu no dia 9 de Agosto de 1961, na actual cidade de Xai-Xai. É professor e músico há muitos anos – faz parte da banda Ghorwane. No passado recente, Chitsondzo foi deputado na Assembleia da República, pela bancada da Frelimo. Com Kwiri, o músico estreia-se a solo, e o livro conta com textos de Ungulani Ba Ka Khosa, Paulina Chiziane, Cremildo Bahúle, Amosse Macamo, Mia Couto, Marcelo Panguana, Ivone Soares, Elísio Macamo, Carlos Serra, Silva Dunduro, Childo Tomás, Elvira Viegas, Hortêncio Langa, Joel Libombo, Moreira Chonguiça, Nelton Miranda, Paulo Chibanga, Jimmy Dludlu e Nelson Saúte.

 

 

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