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O [Esquema] Poético da Poesia de Armando Artur – uma poética de Movimento e Liberdade – uma viagem pel’O HÁBITO DAS MANHÃS

Por Matos Matosse*

“Não se pode banhar duas vezes nas mesmas águas dum rio.” (Rousseau)

 

 

A razão – da escolha desta frase de Rousseau: “Não se pode banhar duas vezes nas mesmas águas dum rio.” – [para servir de entrada a este ensaio literário] – e, esta de Sartre: “Somos uma liberdade que escolhe, mas não escolhemos ser livre.”  – será compreendida pelo caríssimo leitor ao longo do ensaio. Para já, adianto dizer que elas irão sustentar a estética da poesia arturiana.

Reconheço que não é fácil escrever sobre a obra de Armando Artur, um poeta de reconhecido mérito. Dono de uma vasta obra poética, riquíssima: Espelho dos Dias (1986); O Hábito das Manhãs (1990) – [em análise neste ensaio] –; Estrangeiros de Nós Próprios (1996); Os Dias em Riste (2002); A Quintessência do Ser (2004); No Coração da Noite (2007); Felizes as Águas (2008); As Falas do Poeta (2012); A reinvenção do Ser e a Dor da Pedra (2018); MUERY – Elegia em Si Maior (2019; Outras Noites, Outras Madrugadas (2021).

Armando Artur é um poeta moçambicano, já, com 35 anos de produção literária. Tem seguintes prémios: Prémio Consagração Rui de Noronha (2003); Prémio Nacional de Literatura José Craveirinha (2003); Prémio BCI da Literatura (2019). Foi homenageado, este ano, 2021, durante a Feira Internacional do Livro de Quelimane. Recentemente, o escritor e docente da Literatura, na Universidade Eduardo Mondlane, Lucílio Manjate, coordenou um belíssimo trabalho que consistiu em seleccionar, criteriosamente, alguns textos da extensa obra deste poeta e agrupá-los numa antologia: O ROSTO E O TEMPO (2021), sobre a chancela de Alcance Editores.

As perspectivas de análise da obra de Armando Artur são várias, porém, a motivação que nos move [a mim e aos que se interessam por estudá-la] é a mesma: fazer que a obra deste autor seja conhecida pelo público leitor.

O Hábito das Manhãs é um livro de poesia; tem 49 páginas, 41 poemas e foi publicado pela Associação dos Escritores Moçambicanos, AEMO, (1989).

Neste livro, Armando Artur começa a sua viagem poética com o poema intitulado: INTRODUÇÃO, pág.: 7, “Se cada dia/ triunfa um voto de viver/ a vida não será senão/ uma viagem sem fronteiras?” ‒ Nele o poeta faz uma pergunta cuja resposta [creio] não será senão uma eterna reflexão sobre a nossa existência.

Este poema prepara-nos para a compreensão dos seus textos, a intensão poética do autor. O autor pretende embarcar connosco nesta viagem reflexiva sobre a vida, e, para tal, sugere-nos duas formas: religiosa e filosófica [metafísica].

 

 [Esquema] poético

Armando Artur não toma um esquema único para caracterizar a sua poesia. Os seus poemas longos apresentam um esquema que não é o mesmo que o dos curtos. Isto constitui um lindo exercício de fazer a poesia e o de procurar marcar a peculiaridade do poeta.

Em AGORA DURMO ACOCORADO, pág.: 8, por exemplo, o autor começa o poema com o pronome condicional [se], “Se este é o tempo/ de abrir o meu coração/ fá-lo-ei agora/ sem mais demora”. Se quiser chamar para o presente ensaio o poema de Fernando Pessoa, com o título [Se], com o tema de amor: “Levava eu um jarrinho/ p`ra ir buscar vinho (…)// correu atrás/ de mim um rapaz/ foi o jarro p`ra” o chão, (…)// se  eu não levasse um jarro/ nem fosse buscar vinho, (..) nem corresse atrás/ de mim um rapaz/ nada disto acontecia.”

Podemos ver como é que os dois poetas brincam ‒ permitam-me o termo ‒ com este pronome condicional. Em Artur, o efeito deste condicional dissolve-se, logo, nas duas primeiras estâncias; não sendo fácil encontrar a sua “fragmentação” pelo resto do texto. O mesmo já não acontece, em Pessoa. Neste texto, a “fragmentação” e o efeito lexical sentem-se até ao fim do texto. “Se eu não levasse um jarro, (…)/ nada disso acontecia.” Esta terminação e carregada de culpa, de arrependimento do sujeito poético.

Retomando a Artur, este pronome condicional ‒ que se dissolve nas duas primeiras estâncias, porém, não nos dando, digamos, o “fecho”, ‒ será substituído pelo emprego de advérbios de tempo [agora e hoje], que não é, senão a mera complementaridade da ideia desenvolvida na primeira estância.

Acontece, porém, tal como em Pessoa, que Artur, igualmente, transmite-nos diversos sentimentos, como podemos ver: na 1ª estrofe e nos versos 2 e 3 da 2ª estrofe: “…como um pássaro impaciente/ à espera da manhã”; ansiedade; na 3ª estrofe, “agora, pouco a pouco minha infância/ vai perdendo o seu sentido/ apesar do equinócio/ que me promete a memória.”, – a desesperança, angústia, aflição; na 4ª estrofe, – a certeza, a queda das incertezas e angústias que corroíam o espírito do sujeito poético, [expressos nas estrofes anteriores.]

Os advérbios de tempo [agora] – nas estrofes 1ª, 3ª e 4ª exprimem significados diferentes. É estranho, não é? Estes advérbios têm a carga emocional diferente. Acentuam o estado emocional do sujeito poético. Isto funciona assim. A poesia de Artur exige de nós, enquanto leitores, analistas, muita atenção e técnica de análise aprofundada. Aliás, às vezes, para uma boa análise dos textos de Artur não basta, apenas, trabalhar-se os versos no seu todo, ou mesmo toda a estrofe, mas também palavra por palavra. Só assim se pode ter a compreensão mais profunda da sua temática e estilo que o autor adopta.

Neste [esquema] poético – traçado por Artur – o texto (o da página 8) ganha uma forma, na qual as duas últimas estrofes trazem, inquestionavelmente, o desenlace, o sossego ao sujeito poético. Finalmente! Um sossego de espírito, ora, agitado: “hoje, o meu sonho/ tem a forma dum papagaio/ que voa até se desprender/ no horizonte.”; [Voar], sentido de liberdade.

Aqui, passo por cima da palavra [acocorado] e concentro-me na palavra [mudança], ‒ ver a 5ª estrofe ‒ para cujo sentido é transcendental. Ainda que possa brotar dela o sentido de esperança, projeta o sujeito poético a outras dimensões sentimentais.

Em (ABRO A JANELA), pág.: 10, e (PRAIA DA COSTA-DO-SOL), pág.: 11, o autor faz o cruzamento temático dos dois textos. Tomemos o texto da pág.: 10 como texto A e o texto da pág.: 11 como texto B, para facilitar a nossa abordagem.

Vamos por partes: na 1ª estrofe do texto A, o sujeito poético descreve um movimento monótono do nascer do sol: “Abro a janela/ e fixo o olhar/ no sol que espreita/ devagarinho.”; contrariamente, ao texto B, a manhã nasce: “…inteira,/ redonda e geométrica/ salgada como o perfume/ de sândalo.” Na 2ª estrofe, em ambos textos, há uma revelação da esperança, “(afinal, as manhãs sobem/ como um grito de esperança)”, texto A; “e os primeiros arautos/ da maturação do amor.”, texto B. Ressalta-me a alegria que invade o sujeito poético.  Na 3ª estrofe, texto A, expressa-se a ideia de migração, de liberdade; e, no texto B, a ideia de tranquilidade, expressa com a metáfora de pureza, maciez: “aqui a manhã/ chega-me pura/ com as suas asas lisas/ como as gaivotas de setembro.”

Note este jogo que o sujeito poético faz, no texto B, nas seguintes estrofes 1ª e 3ª: “Aqui a manhã/ chega-me inteira” vs “aqui a manhã/ chega-me pura”. A escolha das palavras inteira e pura não foi propositada, assim como a similaridade na construção e arrumação dos versos: o número de versos por estrofes. O paralelismo estrutural. (Os dois textos têm 4 estrofes; as estrofes têm 2, 4, 8 versos, menos as primeiras estrofes que têm número diferente: 4 e 5 versos, respectivamente. Note como o poeta construiu a segunda estrofe, texto A e a quarta estrofe, texto B, págs.: 10 e 11: “afinal, as manhãs sobem/ como um grito de esperança” vs “nela a fluorescência da memória/ e a incandescência da esperança.”)

 

O Movimento, a liberdade na poesia arturiana

Percorrendo este livro, encontramos palavras que nos fazem inferir que a poesia arturiana exprime o movimento, a liberdade. A ideia de [movimento] é expressa com as palavras: ondas, mar, rio; águas corredoras; barcos; abordo (…) do rio Congo; (asas – as aves que empreendem voo.) O sentido da dialética é-no-los trazido, aqui, leve e docemente. Uma dialética que nos leva à compreensão filosófica da vida. À epistemologia do nosso cosmos. E quanto à liberdade, Armando Artur recorre às palavras vento, asas, etc., todavia encontramos versos elucidadores: por ex.: “Não importa esta fronteira/ que em vão nos demarca/ quando a viagem prometida/ ainda se anuncia.”, pág.: 20; “…grite e se erga livre/ um pássaro sem nome.”, pág.: 33.

Em EXURSÃO PELO RIO CONGO, EXCURSÃO PELA MEMÓRIA, pág.: 14, em que o poeta descreve uma excursão pelo rio Congo, em Maio de 1987; cujas condições são, plenamente, afloradas na terceira estrofe: dor, sofrimento, morte, fome: “na memória desenha-se minha gente:/ crianças guardando a fome, a sede, o luto/ por detrás do amargo sorriso.”; e, na estrofe seguinte, verso 5: “suas chagas abertas ao tempo.” O sujeito poético mostra-se-nos melancólico. E denuncia o sofrimento do povo: “falo apenas da dor que me acompanha/ do sangue que nasce no Índico/ e desagua no meu coração.” Aqui temos um Armando Artur que, segundo Kierkgaard, enquadrar-se-á nos seguintes estágios éticos e religiosos. É simples, Artur preocupa-se pelo outro. Quer ver o outro ‘bem’. O bem-estar do outro será a sua maior realização. Ah, os versos acalmam-no: “(…) somente alguns versos/ e alguns rostos que contemplei.”

 

O lirismo poético de Armando Artur

O lirismo poético transcorre, visivelmente, por exemplo, nos textos: CONFISÃO, pág.: 25; AQUI MURMURAVA, pág.: 28; APAGA O SOL, pág.: 31, e outros. É um lirismo que evidencia a figura da mulher; a mulher ganha um lugar especial no coração do poeta: “Felizarda sejas tu, mulher/ que trazes nos olhos e no ventre/ a palavra anunciada: ‒ luz”, pág.: 23, do poema MULHER; “Eu pinto uma mulher nua/ correndo a rédeas largas”, do poema CENÁRIO, pág.: 44.

Mas, o sujeito poético não é tão alegre em todo o processo de “amar”, em APAGA O SOL, a palavra sol não lhe é atribuída o significado de luz que alegra, mas um impedimento [oponente] para a realização ou a concretização do amor: “Apaga o sol/ que te rouba o luar/ (…) para que o amor aconteça/ nas tuas crinas.”; a lua o [adjuvante] do sujeito poético para a concretização do tão desejado, amor. (Furtei as palavras, em colchetes, usadas no modelo actancial.)

A temática da poesia de Artur

A poesia de Armando Artur é de intervenção social. Amor. A Temática de guerra é trazida de forma subtil, receosa: vale-nos as isotopias denunciadoras de tal atitude do poeta: em PAISAGEM INTERIOR, pág.: 43, “(…nenhum descampado?/ nenhuma relíquia/ dum projecto incendiando?// de longe/ somente uma brisa leve/ amortecendo a espera.// entretanto, o sangue/ e a neblina de fumo/ vão ganhando forma.”

Outra temática por entre linha

Por entre linhas, fica a temática de felicidade. Justiça. Este bem que é manifesto desejo de Armando Artur de vê-lo alcançado por todos os Homens.

 

Recursos estilísticos usados

Metáfora, parataxe, sinestesia (“…chega-me o perfume adocicado”, pág.: 10; “amargo sorriso”, pág.: 14), repetição, paralelismo estrutural, adjetivação, comparação. Contraste. Particularmente, a parataxe e a repetição são muito marcantes nos poemas deste poeta.

Armando Artur explora os elementos da natureza: arco-íris, espiga de milho, lagos, algas e outros aos quais já me referi, anteriormente.

 

O estilo

Antes de entrar, propriamente, no estilo arturiano, – se me permitir –, começaria por trazer a definição do conceito [estilo], segundo Von Rumohr, [Hegel, Estética, O Belo Artístico ou Ideal, 1964]. Estilo é uma adaptação, que se torna um hábito, às exigências internas da matéria em que o escultor esculpe as estátuas, com que o pintor compõe as suas formas.

No entanto, Armando Artur adopta um estilo próprio [tal como acontece, também, com outros escritores. Cada escritor tem o seu próprio estilo.] o estilo distingue uma obra artística da outra e um autor em relação a outro. Na pintura, é comum chamá-lo de traço.

Artur escreve versos curtos, mas profundos. Versos de cuja hermenêutica não se nos configura fácil. Concorre para isso a técnica usada pelo autor para a estruturar os seus textos; ele é bastante rigoroso na escolha de palavras, às vezes, e, propositadamente, com alguma repetição das mesmas palavras em vários textos, para sublinhar ou marcar [acho eu] com elas as isotopias que nos remetem à temática central da sua poesia. [‒ como vimos nos § anteriores.]

Para além do descrito, acima, torna, ainda, o seu estilo do poeta Artur o seguinte: riqueza lexical; jogo de palavras, através de criação de campo semântico, usando a combinação de substantivos e verbos; amor à Natureza. Uso de parênteses nos seus versos, abundantemente.

 

Síntese e fecho: O leitor deve ter notado a razão que me levou recorrer à frase de Rousseau, sobre as águas do rio para com ela iniciasse este ensaio e, a de Sartre. Era, exactamente, para sustentar esta ideia de movimento e a de liberdade que encontramos na poesia de Artur; a ideia da dialética. Da natureza. Da valorização da pessoa humana.

A sua ideia poética pode ser sintetizada no seguinte poema cujo teor é metafísico: (FUTURO: ESSA TRANSCENDÊNCIA), pág.: 39:

Onde

começam os caminhos

da transcendência?

 

no grito

inadiável sobre o tempo

 

ou no pequeno gesto

que sempre se principia?

 

onde

a imagem e o retrato

do sonho que nos habita?

 

ou ali onde a vida

se adia constantemente

e o mar e a madrugada

se enamoram nas areias?

 

 

Então, alguém pode perguntar-me: por que razão não é o poema que dá o título ao livro ‒ o centro da ideia poética deste autor? Não respondo. Deixo para reflexão.

Continuemos a estudar a poesia de Armando Artur. Esta poesia devia ser de leitura obrigatória nas nossas escolas.

Aquele abraço!

* Professor, escritor e ensaísta literário

Chonape.matosse@gmail.com

 

 

 

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