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O encontro com a História em “Comboio de sal e açúcar”

(…) respeitar as leis, defender os desvalidos e desprezar o dinheiro, porque os heróis nunca esperam recompensa
Isabel Allende

“Não vamos esquecer o tempo que passou. Não vamos esquecer o tempo que passou. Não vamos esquecer o tempo que passou. Quem pode esquecer o que passou?”. A canção (com a letra) é a antiga, e é das mais conhecidas do repertório “revolucionário”. Mais que aquela, só mesmo o Tiyende pamodzi ndi mtima umodzi, por esboçar imagens de Tete, Niassa, e, claro, por nos recordar Samora. Lembranças não se apagam, porque esquecer é deixar de existir no instante; lembranças não se calam, porque o silêncio pode trazer do passado a dor escusada no presente. Então, vamos ou não esquecer o tempo que passou? “Comboio de sal e açúcar”, de Licínio Azevedo, responde categoricamente: De modo algum. Esquecer é errar pela segunda vez, e um erro deve ser assumido para se tornar uma lição. Se quisermos ir por aí, esta é uma das mensagens do filme que ficciona a realidade sinistra porque passaram vários moçambicanos numa altura em que a esperança quase morreu na tosse de uma kalashnikov.

A partir de um comboio, com momentos de avanço e de pausa condicionados pelas emboscadas na linha férrea, Licínio Azevedo leva à tela as consequências que a guerra entre o Governo e a Renamo teve na vida, quer dos que manipularam as armas quer dos que desses artefactos necessitaram para se sentirem protegidos. O comboio metaforiza o país inteiro, mais ameaçado por heróis que, ao servir o povo, esperam ser bem recompensados. Dinheiro e prazer parecem ser a paga ideal. Por isso, temos um alferes Salomão (Thiago Justino) prepotente, quem, por exemplo, arranca a mulher de um civil para a abusar vergonhosamente. Como calha em “Mayombe”, de Pepetela, “Comboio de sal e açúcar” tem cuidado ao insinuar que nem sempre o verdadeiro inimigo é apenas quem julgamos sê-lo. Dando crédito à ideia, revoltada com o que os soldados “governamentais” fazem, uma personagem bufa agastada: “Às vezes, aqueles que nos defendem são piores do que aqueles que nos atacam”. Logo, desenrascar até chegar ao destino (Iapala e Malema, para alguns, Ribaué, Cuamba ou Malawi, para outros) é a palavra de ordem.

Este filme é uma estória sobre a sobrevivência, que nos conduz à nossa História recente, feita de rancor, ganância e muitas falsidades, afinal, poucos, como tenente Taiar, estão deveras preocupados com a causa nacional. Bem visto, Taiar, no meio de tantos lobos maus, é a esperança ténue, por ser amável, mas também é a desilusão, quando o mal triunfa sobre ele e Rosa, sua namorada, ficando sem pétalas. O momento em que isso acontece, merecia melhor representação de Matamba Joaquim (Taiar). As suas feições, o modo como anda e fala depois de ser baleado pelo seu camarada Salomão, com quem disputava os encantos da Rosa, não convencem. Ali o actor angolano poderia ter dado o melhor de si, para que estivesse ao nível de Melanie Rafael (Rosa), quando abraça a dor.

À parte a narrativa muito bem contada, com diálogos maduros entre as personagens, este “Comboio” tem êxito no que ao casting dos actores diz respeito: distribuição dos papéis bem elaborada. Se Taiar e Rosa distinguem-se pela doçura, Caravela (Victor Raposo) e Omar Imani (Abdil Juma) dão-se bem com o medo. E o que dizer do comandante Sete Maneiras (António Nipita) daquela tropa que protege o comboio de Nampula a Malawi, com tatuagens macondes na face? O comandante é a personificação dos homens leais aos antepassados, o exemplo de que uma guerra não se faz apenas com coragem. Há sempre mistérios cuja essência os mais imberbes são incapazes de compreender. Ao configurar o fantástico a partir do comandante, com poderes sobrenaturais, o filme enaltece a cultura bantu, lançado um debate sobre o que não existe, mas nos mexe.  

Este “Comboio” de Licínio Azevedo, sem deixar de ser um retrato do contexto das rotas comerciais de sal e açúcar; sem deixar de ser um registo histórico dos erros cometidos no passado; e, acima de tudo, sem deixar ser uma bela obra de arte, que investe com sucesso na componente emoção, é um veículo que nos devolve a letra da canção, para não cairmos no mesmo precipício: “Não vamos esquecer o tempo que passou. Quem pode esquecer o que passou?”.

Título: Comboio de sal e açúcar
Autor: Licínio Azevedo
Filme
Classificação: 18

 

 

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