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O Deserto em Macau, a Universidade e agora o Mundo

Acabei o artigo anterior com a partida para Macau, e começo a escrever este a 29 de Outubro, quando se completam 28 anos (!) sobre a minha chegada, nessa altura, a um Território Chinês sob Administração Portuguesa, actualmente (desde 20 de Dezembro de 1999) designado por Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) da República Popular da China.

Chegámos então os 5, à Ilha da Taipa, numa noite depois de uma viagem em que atravessámos 2 continentes de ponta-a-ponta, cheios de malas pois vínhamos para o fim do mundo (…), mas tivémos sorte pois chegámos ao apartamento providenciado pela Universidade no edifício destinado a professores (muitas pessoas vindas de Portugal passavam vários meses em hotéis) e onde vivemos 22 anos até à mudança para o novo Campus em 2014. Logo cedo, na manhã seguinte, atravessei a rua e fui à Universidade, especificamente à Faculdade de Ciências e Tecnologia, que oferecia a licenciatura em Engenharia Electrotécnica, programa para o qual tinha sido recrutado, por 2 anos, como Professor Associado (Visitante – pois mantenho a minha ligação ao Técnico até hoje, com base em leis especiais para Macau), tendo sido mencionado igualmente que viria chefiar o Departamento. Grande surpresa, ninguém na Faculdade sabia da minha chegada (…), nem gabinete tinha, e o Director (Chinês) estava ausente em visita a Portugal (…). Constatei também que não havia Departamentos na Faculdade…e como o serviço docente já estava distribuído (pois o primeiro semestre já ia avançado) encontrei-me na situação de não ter nada para fazer, algo a que não estava habituado depois de 17 anos intensos no Técnico. Lembrei-me então que tinha sido recrutado por um responsável do ensino superior e decidi telefonar-lhe, ficou surpreendido por já cá estar (o processo de vinda foi muito burocrático e prolongado) e combinei ir falar com ele. Na muito breve conversa que tivémos informei-o de que não sabia que Departamento viria chefiar pois estes não existiam na Faculdade, ficou surpreso e disse-me que a mesma era jovem e ultrapassava uma grande crise pelo que esperava que eu pudesse contribuir para o seu desenvolvimento. De repente toca o telefone, ele atende, fala com a secretária e desliga, logo a seguir diz-me: “Prof. Rui Martins ainda bem que está aqui porque quero apresentá-lo ao Infante Dom Henrique!”…Infante Dom Henrique, só me lembrava do Navegador ou do paquete que nos tinha levado de LM a Lisboa. Nesse momento interiorizei instantaneamente: “Onde é que eu estou?”…mas a porta do gabinete abriu-se, entrou um sujeito, e fui apresentado: “Prof. Rui Martins, o Infante Dom Henrique!”…cumprimentei-o e despedi-me de ambos.

Regressei a casa, completamente desconsolado e sem saber o que fazer à vida, e disse à minha mulher para não desmanchar completamente as malas pois iríamos quase de certeza regressar a Portugal em breve…Passei uns primeiros dias bastante desorientado, como não tinha mais nada para fazer, coloquei os 3 filhos no Colégio Dom Bosco, uma das 2 escolas onde havia ensino em Português, e dediquei-me a jogar o Tetris numa pequena consola electrónica dos meus filhos (antes nunca tinha tido tempo para tal), numa semana bati os recordes todos enquanto pensava no que fazer, partir ou ficar…decidi ir estudar a Faculdade e ver como podia contribuir. Pensei escrever um relatório sobre o estado da Faculdade, dos programas e apresentar algumas propostas para o futuro. Escrevi então, em cerca de 1 mês e meio, aquilo a que chamei “First Impressions, First Proposals”, com um título estranho a que não estava habituado pois todas as minhas obras até aí tinham sido de cariz pedagógico, técnico ou científico, mas não tive inspiração para melhor. Ao revisitar esse relatório recentemente concluí que, e apesar das centenas de trabalhos que publiquei ao longo da minha carreira académica, esta tinha sido a melhor obra que escrevi em toda a minha vida, fui divinamente inspirado naquele momento precioso. Tirei “o retrato à Faculdade” e apresentei propostas para o seu desenvolvimento (apesar de ser jovem estava a perder alunos), e também para o lançamento das pós-graduações (havia apenas licenciaturas e assim propus o lançamento de mestrados e doutoramentos) bem como da investigação científica, inexistente na altura, e daí ser correcta a definição de “Deserto” mencionada anteriormente. Quando concluí o relatório, a 18 de Dezembro pouco antes do Natal, distribuí-o pelos responsáveis da Universidade e do Governo, e como era a única pessoa que estava no gabinete nesse dia às 9h da manhã, apresentei-o em primeiro lugar ao Reitor (Chinês), que apenas o aceitou sem fazer qualquer comentário. Quando cerca de meia-hora depois entreguei o mesmo ao Director da Faculdade este disse-me: “Muito Bom (!) trabalho, vamos apoiar em tudo o que nos fôr possível”, perguntei-lhe: “Como sabe o seu conteúdo se ainda nem leu?”, respondeu-me: “Sim, ainda não li, mas o Reitor já o leu e acabou de me telefonar referindo o que lhe acabei de dizer”. Recebi o mesmo apoio de responsáveis governamentais, mas alguns colegas internamente foram críticos interrogando a necessidade do esforço, pois Macau iria mudar de Administração e para além do mais o local era agradável, com boas ligações a praias de sonho na Tailândia, Filipinas, Indonésia, etc…pelo que seria melhor gozar a vida…Ignorei as vozes dissonantes, e apesar de ter apenas apoios verbais, mais nada, decidi-me a lançar “mãos-à-obra”, ou melhor a começar a “partir-pedra” (…). Uma das coisas que me entusiasmou fortemente, e está salientado no relatório, foi a motivação dos alunos, tendo escrito: “A good Student’s Corps, well interested with a very strong thirst of knowledge (completely different and better, in terms of interest, than the one that we’ve in Lisbon)”. Hoje, após quase trinta anos, estava certo, os sucessos que temos obtido, nomeadamente em Electrónica e a nível de topo no mundo a eles se devem, aos alunos de Macau e também da China Continental.

Alguns pormenores interessantes da interacção com uma Cultura muito diferente, quando escrevia o relatório tive de consultar muita documentação relacionada com a Faculdade, criada recentemente em 1989, e que atravessava um período de instabilidade grande, pelo que contactei o funcionário administrativo responsável, ficámos amigos e baptizou-me com um nome Chinês de 3 caracteres: “Mǎ Xǔ Yuàn”, o primeiro Mǎ significa “Cavalo” (signo do Zodíaco Chinês) e relacionado com as 2 primeiras letras do meu apelido, os 2 seguintes Xǔ Yuàn significam “Faz um Desejo”, ou seja “O Cavalo faz um Desejo” (Foi o que fiz quando escrevi o relatório)! Nome este que se revelou ao longo destes anos uma excelente escolha e tem sido quase profético, pois sempre que alguém Chinês o lê fica surpreendido e diz-me que é um nome brilhante…Como referi, no dia em que cheguei não tinha nada para fazer, mas pouco depois quando comecei a “partir-pedra” e até hoje a situação inverteu-se e passei a não saber como arranjar tempo para fazer tudo o que desejava fazer, pois todo um mundo de oportunidades se abriu. No princípio costumava ir frequentemente ao Mercado Vermelho (um mercado famoso no norte da cidade) comprar peixe, no entanto, com o tempo o número de vezes que lá tenho ido reduziu-se significativamente, mas o “nosso” fiel peixeiro (Chinês de Zhongshan aqui radicado e que aprendeu um pouco de Português) diz sempre “Muito Gōng Fu (Trabalho)”, como quem diz: “Muito trabalho, vens cá pouco”…Como referi também antes, quando cheguei não tinha gabinete na Faculdade, mas com o tempo a minha vizinha, administrativa no Instituto de Estudos Portugueses, disse-me que havia um gabinete do Instituto vago noutro edifício e se eu estivesse interessado podia ir para lá, como não tinha alternativa aceitei, mas o gabinete era pequeníssimo, longe de tudo, com mobiliário ultra-rudimentar (ou seja, descartável…), era tão deprimente que várias vezes fechei a porta para chorar sozinho, pensando nas condições que tinha deixado para trás no Técnico…um dia, em que tinha a porta aberta, um professor Chinês, de Taiwan, que tinha estudado e trabalhado nos Estados Unidos, já velhote e que fumava muito naquele local, veio até à porta e perguntou-me quem eu era e o que estava ali a fazer, lá lhe expliquei muito desalentado a minha situação, e ele diz-me: ”Está descansado, este gabinete é extraordinário, pois possui um “Feng Shui” fantástico (foi a primeira vez que ouvi o termo e não sabia de que falava), está de costas para a montanha (a Universidade estava construída numa montanha e a minha janela era virada para lá), que significa Poder, e em frente ao mar (a porta do gabinete apontava para uma janela no fundo do corredor virada para o mar), que significa Dinheiro. Vais ser uma pessoa influente aqui com muito Poder e bastante Dinheiro para gerir. Pensei, já não está bom da cabeça…cerca de 1 ano depois fui nomeado Sub-Director da Faculdade e só nessa altura consegui aí um gabinete, uma tarde o mesmo professor Chinês espreita pela porta desse novo gabinete e diz-me: “Eu não te dizia? E, olha, o Feng Shui deste gabinete é ainda melhor”, tinha mesmo razão e passei a acreditar piamente no “Fluxo de Energia Chinês”!  Quando aguardava pelos bilhetes de avião para viajar até Macau pensava, como é que irei sobreviver num Território ínfimo de 30km2 (…). Mas é nessa exiguidade que reside a Magia do local, como aqui se diz, abençoado pela Deusa Chinesa A Ma e pela Na. Sra. de Fátima, em Macau conheci Portugal todo e o Mundo melhor do que quando vivia em Lisboa, e voltei de novo a África, nomeadamente a Maputo e a Moçambique. Já agora, um pequeno detalhe, ao longo do tempo o interesse dos Chineses pela língua Portuguesa tem vindo continuamente a aumentar, e nunca aqui se falou tanto a língua de Camões como agora, no entanto, o Português mais puro (com melhor sotaque) falado por Chineses continua a ser daqueles que nasceram ou viveram em Moçambique, nomeadamente em LM (Maputo).

 

Rui Martins.

Macau, 2 de Novembro de 2020.

P.S. – Não podia concluir sem explicar quem era afinal aquela personagem misteriosa designada por Infante Dom Henrique…Não é que era ele mesmo? O responsável governamental, era e ainda é monárquico (ficámos amigos), e a referida pessoa era o Infante Dom Henrique, irmão do Dom Duarte, Duque de Bragança, que encontrei também mais tarde.

 

 

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