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O Decenário do Ensino Superior Moçambicano –1962-1972[5/6]: Da génese ideológica do Status-Quo

Por: Patrício Langa & Jorge Ferrão

 

Um decenário corresponde a um período de dez anos. No prenúncio da celebração do sexagenário do ensino superior, em Moçambique e Angola, decidimos lançarmo-nos e, deste modo, convidar aos demais para uma reflexão sobre a génese, percurso histórico e vicissitudes do ensino superior em Moçambique. Fazemo-lo, de espírito aberto, para estimular o debate crítico-reflexivo, rumo à elucidação. Não o fazemos como um exercício de crítica furtuita, em busca de bodes expiatórios para os aspectos que se podem considerar problemáticos neste percurso, nem com o intuito de avaliar o desempenho de quem quer que seja. Se existe algum escrutínio no nosso raciocínio, este circunscreve-se à busca do sentido do percurso histórico do ensino superior como instituição social.

O decenário nos permite lançar um olhar retrospectivo, crítico e analítico sobre a constituição do ensino superior como uma instituição social no nosso país. Mormente, a dimensão crítico-analítica formula-se em torno da questão de saber a que projecto de sociedade serve a instituição do ensino superior? Por instituição, neste contexto, não nos referimos a cada organização, mas ao ensino superior como uma instituição social, regida por valores, normas e princípios, inerentes aos processos académicos e de governação, assim como ocorre com outras instituições sociais. Por outras palavras, questionamo-nos sobre os processos inerentes à vida das Instituições de Ensino Superior (IES) (ensino, investigação, extensão e governação), os valores e princípios que as governam e que tipo de cidadão visam gerar para que tipo de sociedade? Parafraseando o nosso filosofo-mor, Severino Elias Ngoenha, diríamos que nos questionamos sobre o estatuto axiológico do ensino superior, ao longo do percurso histórico das seis décadas que o ensino superior completa em 2022.

Ao concentrarmo-nos em cada década, pretendemos amplificar alguns dos acontecimentos e factos marcantes que consideramos que concorreram para definição do carácter do ensino superior em Moçambique, até ao momento, quando se celebra o sexagenário desta instituição social.  Estão lançados os dados!

Um início colonial e tardio 

Prefaciamos este exercício com a alusão ao facto de o ensino superior em Moçambique, assim como em quase todos os países africanos, entre o Sahara e o Maputo, ser um fenómeno raro no período colonial. Com efeito, nas colónias britânias da África Ocidental, a Nigéria, com quase um quarto da população do continente, o sétimo país mais populoso do mundo, tinha apenas uma universidade, a Universidade de Ibadan, com alguns milhares de estudantes.  Na década de 90, portanto, três décadas após a sua independência, a Nigéria contava já com cerca de 31 instituições de ensino superior e, actualmente, conta com mais de uma centena de IES.

Na África Oriental, a Universidade de Makerere era a única instituição que servia às colonias britânicas que hoje representam três países independentes, Uganda, Quénia e Tanzânia.  Actualmente, cada um desses países hospeda dezenas de IES e milhares de estudantes. O mesmo padrão de raridade se verifica nas ex-colónias francesas.

Angola e Moçambique, apenas no início da década de 1960, viram Portugal ceder à pressão interna – particularmente dos expatriados, filhos dos colonos Brancos, e externa, com o crescimento dos movimentos independentistas – e a estabelecer as primeiras IES em 1962.

O Decreto-Lei número 44530 que criou, nas provinciais de Angola e Moçambique, eufemisticamente designadas do ultramar para camuflar o colonial, os estudos gerais e universitários[1] é bastante instrutivo sobre a visão de sociedade na qual e para a qual o ensino superior era criado.

Angola e Moçambique eram provinciais de Portugal e não países independentes e soberanos. Com efeito, o estatuto de colónia destes territórios transparece no decreto não apenas na designação do mesmo, mas noutras passagens elucidativas das expectativas e vicissitudes de um tal estabelecimento.

“[…] O Governo entendia ter chegado o momento de instituir o ensino superior nas províncias de Angola e Moçambique, coroando assim um esforço extremamente honroso, levado a cabo no domínio da instituição. Ao ser tomada esta decisão, não deixou de estar presente a complexa problemática do ensino nos territórios em via de desenvolvimento, onde logo avultam as questões relacionadas com a ocupação escolar de base, pilar fundamental do portuguesismo dos povos”. (Langa et al., 2014, p. 279).

Ressalta no excerto acima que a decisão da criação decorreu de um “esforço honroso” de uma matéria considerada “problemática do ensino nos territórios em vias de desenvolvimento” entendido como “pilar fundamental do portuguesismo dos povos”. A função ideológica e a expectativa da contribuição do ensino superior para o alargamento da “Portuguesismo” é explicita no decreto.

A pressão interna a que nos referimos antes, estava relacionada à preocupação com a “ocupação escolar de base” de um crescente número de jovens Portugueses colonos que haviam concluído o ensino liceal e técnico, e cujo futuro na colónia era incerto. Para evitar que estes jovens se sentissem atraídos e aliciados a integrar os crescentes movimentos de contestação ao Estado colonial e fascista era necessário dar-lhes uma ocupação.

Iremos perceber como este contexto influencia o tipo de áreas de estudo e currículo da nova instituição, que desde já, terá uma tendência mais para as áreas   politécnicas e não para as humanidades e ciências sociais, por se considerarem de risco. Conforme disposto no artigo sétimo do decreto:

“Nos estudos gerais universitários, serão instituídos com prioridade, os cursos correspondentes aos domínios de actividade onde se verifique maior carência de pessoal habilitado com cursos superiores. Desde já, consideram-se prioritários os cursos relacionados com a ciência aplicada” (Langa et al, 2014. p 280).

Paradoxalmente, seis décadas depois, as ciências aplicadas continuam a ser vistas como uma área prioritária, com recurso ao mesmo tipo de argumentos usados no período colonial. As ciências sociais, tanto no regime colonial como nos sucessivos governos pós-independência, tiveram um lugar no mínimo de suspeita, ainda que os números tenham crescido no período pós-colonial, mas também a percepção da sua inutilidade, ou utilidade perversa, e de perigo para os defensores do status-quo.

Enquanto isso, a preocupação com a pressão externa anticolonial é notável no seguinte excerto do decreto que cria o ensino superior:

“(…) Tudo isto que se entende corresponder a uma visão realista da situação, e tendo ainda em conta as pesadas incidências que as circunstâncias da conjuntura internacional têm nos orçamentos das províncias, torna evidente que tem de prever-se, criteriosamente, os recursos necessários para um programa de ensino que se deseja tão completo quanto possível. Mas tendo isto em conta, e na certeza de que se trata de um domínio onde todos estarão dispostos a fazer os sacrifícios necessários, pensou-se que não se devia adiar a execução do projecto relativo à instituição do ensino superior nas referidas províncias” (Langa et al, 2014. p. 279).

Um certo “realismo” e pragmatismo em relação a leitura da conjuntura internacional, cuja pressão se reflectia na viabilidade financeira das províncias (leia-se Colónias) e que, por isso, exigia concessões e sacrifícios. Portanto, parece evidente que a criação do ensino superior em Angola e Moçambique não foi um acto de benevolência civilizadora, antes pelo contrário, foi um acto de sobrevivência de um regime colonial que se percebia, cada vez mais, sem opções de perpetuar o status quo.

Uma estratégia de sobrevivência era o reforço do discurso ideológico da Unidade Nacional.

“Um ponto que se afigura fundamental, e nunca poderá ser esquecido, é que a Universidade de facto é uma instituição intimamente e perpetuamente ligada à definição e ideia da unidade nacional, que os Portugueses vivem hoje com intensidade, mas poucas vezes atingida no passado” (Langa et al, 2014. p. 279).

Ė interessante notar que as palavras de ordem do vocabulário do status quo colonial, nomeadamente, “contribuir para o desenvolvimento”, “responder a conjuntura internacional” e “reforçar a unidade nacional”, continuam hoje, ainda que em contextos distintos, praticamente as mesmas.

Mudaram-se os tempos, os regimes e o estatuto de colónia para país independente, mas persiste o parolar ideológico da vontade do poder. Nesse vocabulário, se mistifica a função ideológica e o papel da universidade de perpetuar o status quo, como se nota no seguinte excerto do decreto:

“Basta meditar no que representou, para a preservação dessa unidade, a velha e gloriosa Universidade de Coimbra, ao lado da qual enfileiraram dignamente as demais, para todos compreenderem a importância decisiva que a Universidade tem na vida da Nação” (Langa, et al, 2014 p. 279).

A criação da universidade na colónia era percebida como um acto necessário ainda que de grande risco, para o qual se deveria tomar todo o cuidado para não colocar em causa a estabilidade e a dignidade do País, neste caso, Portugal. Como refere o decreto “Trata-se, pois, de um domínio onde não deve improvisar-se sem perigos graves para a dignidade do País, para os seus interesses vitais e até para a estabilidade social dos povos” (Op. cit).

 

E remata o decreto:

“Daí o inconveniente de o ensino superior ser instituído em qualquer parte do território nacional, em termos de os seus diplomados virem a sentir-se socialmente diminuídos pela circunstância de aos títulos obtidos não poder ser reconhecida igual à dos concedidos por outras instituições de ensino superior”. (…). Por isso, se entende que o ensino superior nas províncias ultramarinas deve ser feito em estreita associação com as Universidades existentes, as quais, dando mais uma vez a prova do seu acrisolado devotamento ao interesse nacional, não se pouparão a sacrifícios para assegurar a tal ensino uma total dignidade (Langa et al, 2014 p. 279).

Concluímos esta breve introdução, sobre a génese ideológica do Status quo do ensino superior, mas não a análise do período. No período entre 1962 e 1972, cronológico decenário, ocorreram actos significativos que alteraram o carácter inicial da necessidade e do projecto e cujas datas não cabem, necessariamente, dentro do decenário, mas cujos actos podem à aquele estar estritamente associados. Por isso, no título, acrescemos os anos 1975/6, respectivamente o ano da independência de Moçambique da colónia Portuguesa e o 1976 o ano no qual a única IES e rebaptizada em homenagem a Eduardo Mondlane, primeiro presidente da Frente de Libertação de Moçambique. Entretanto, o ano de 1968, que cabe dentro da década da génese, também constitui um marco importante dada a elevação dos Estudos Gerais e Universitários (EGUM) ao estatuto de Universidade que se passou a designar de Universidade de Lourenço Marques, então capital da colónia. (Parte 1: Continua).

 

 

[1] Langa, Patrício, Cumaio, Garciano e Rafael, Duarte. P (2014) (Eds). Cinquenta anos de legislação e políticas públicas do ensino superior em Moçambique 1962-2012. Disponível Online: (13) (PDF) Cinquenta anos de legislação e políticas públicas do ensino superior em Moçambique 1962-2012 (researchgate.net)

 

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