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“O cão na margem” ou a poesia à imagem do mundo?

Não basta só interpretar o mundo, é preciso muda-lo também.

Karl Marx

O mundo já foi e continuará a ser interpretado de diferentes formas: por mentes iluminadas, infantes ou imberbes. Mas o que isso acrescenta a um Pragmatismo de Charles Peirce no apogeu da subversão ousada ao farol kanteano? Talvez, muito pouco, daí a relevância dessa sugestão de Marx, quando se refere à necessidade de se investir na mudança do mundo onde habitamos. A questão é: por quê mudar…? A resposta pode ser encontrada no livro mais recente de Luís Carlos Patraquim, O cão na margem, lançado recentemente pela Kapulana do Brasil. Não à laia de pressuposto teórico, que nem suposto é, mas na manifestação da linguagem – ora pesada e densa ora leve e suave – constituída por repulsa e indignação em relação a uma realidade que de tanto palpável, deixa de mexer com as pessoas.

Esta proposta poética de Patraquim representa o espírito de entidades que se atribuem a missão de reconstruir infra-estruturas melancólicas para dar azo à violência e à indiferença, não com o propósito promocional, mas com repúdio irrevogável. Esta é uma voz que se levanta, em parte, “Porque atiramos pedras à janela/ de onde a criança olhava o som/ dos pássaros diurnos” (p. 22); é a voz de quem não sossega quando se apercebe que não gozamos a vida como bênção a completar-se com convivência, sem animosidades. Por essa razão, eventualmente, há sensação do poeta ter escrito os poemas com lágrimas na pena, por exprimir o que o mundo tem de menos afável, incluindo a dor de se encontrar distante dos lugares/contextos sobre os quais se escreve. Assim, neste Patraquim, “Chegar é estar longe” e “Se nascemos/ é para distância inominada” (p. 24).

No mesmo instante em que “O cão na margem” – primeira das três partes que constituem o livro – nos provoca, ao fazer-nos sentir passivos, mortos como os mortos, uma clara demonstração de inércia, bem explícita no poema “Os filhos de Lumumba”, tenta contagiar-nos com um baril de repúdios, pronto a explodir pelo inconformismo de se ver quem ousa fazer dos inocentes, vítimas mortais. No poema “Bellum injustum”, por exemplo, o eu poético não só cospe a baba asquerosa como se distancia de qualquer doutrina de “guerra justa” defendida por um Agostinho de Hipona ou por Tomás de Aquino.

Na segunda parte do livro, a linguagem das entidades textuais altera de forma acentuada. Na homenagem à “Omuhípiti” – outra forma de dizer Ilha de Moçambique, em emakhuwa – Patraquim escolhe palavras mais favoráveis na partilha dessa admiração pelo lugar. Nesta secção, a poesia é mais paisagística, emotiva e menos acutilante. Em “Omuhípiti”, os ecos da palavra absorvem o barrulho das ondas do mar e ressuscitam aquele que um dia a tratou por Ilha de próspero: Rui Knopfli, no mesmo estilo que o poeta eterniza José Craveirinha, em “Metamorfose”, numa alusão oportuna.

“Omuhípiti” não é tanto de nos manter cativo, estupefactos. Importa porque também não impede que o “O escuro anterior”, última parte do livro, se imponha, com os sujeitos a exprimirem o que viram emergir numa espécie de backstage do mundo, onde mora a opressão e morre o sopro, esse sentido de vitalidade. Aqui, a poesia intriga, estimulando a necessidade de se compreender cada coisa dita, bem como a razão de ser dita às metades. “O escuro anterior” corroí-nos por isso.

Então, é este O cão na margem, de Luís Carlos Patraquim, livro que mostra o mundo tal como é: com dissabores e belezas. Diríamos que a colectânea pode ser lida na perspectiva de aceitarmos as imperfeições de que somos feitos de lês-a-lês, captando-as com as nossas sensibilidades de modo a colori-las. Patraquim coloca-nos na margem social para sentirmos o que significa lá estar e aí apropriarmo-nos do inconformismo de lá continuar. Este é o livro para nos fazer mudar, iluminando o nosso “escuro anterior”, interior, com as cores de “Omuhípiti” tão feitos de encantos.

 

Título: O cão na margem

Autor: Luís Carlos Patraquim

Editora: Kapulana

Classificação: 15
 

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