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O beijo na mão

Quando o chefe do quarteirão a notificou para um encontro a dois, Celeste desconfiou logo do Sr. Raimundo. Afinal, a notificação chegara em suas mãos, no dia após ela lhe ter “dado corrida”. Ela não lhe podia coser o zíper das calças encardidas, sem que ele as lavasse e lhe fosse entregar para que Celeste, a seu tempo, procedesse ao seu ofício, ao contrário do imposto por Sr. Raimundo:

– Mas dona Celeste, não tenho outras calças! O que lhe custa coser o zíper enquanto eu as tiver vestido?
– “Enquanto eu AS tiver vestido”? Sr. Raimundo, onde é que aprendeu a falar assim?! Heheeeee, é para eu me render? Já te disse que eu não coso roupa de ninguém, quando alguém vestir essa roupa! Você quer ser cosido? Não me arranja problemas, eu. Por que não amarra capulana da tua namorada?
– … me empresta você sua capulana, quando eu tirar minhas calças no teu quarto…

Dona Celeste era modista de roupa masculina, por essa razão é que apenas homens entravam em sua casa. Sr. Raimundo costumava contar os homens que entravam em casa de dona Celeste por dia e cronometrava o tempo de estadia. De lá, os homens não saiam em menos de uma hora e todos eles beijavam a mão de dona Celeste, em jeito de despedida.

Moçambicanos beijarem mão? Wha, isso só pode ser coisa da cabeça dela! – analisou Raimundo.

– Dona Celeste, dona Celeste, dona…
– O que foi Sr. Raimundo?!! – gritou dona Celeste, quando sentiu a mão de Sr. Raimundo no seu pulso. 
– Não sei se… — foi interrompido por dona Celeste, quando erguia sua mão em direcção à boca. 
– O que é isso, Sr. Raimundo! – repeliu-lhe a mão.
– Afinal não é assim que se cumprimenta a Sra?
– Por favor! – atirou o antebraço para trás, enquanto se distanciava do Sr. Raimundo, que ficou para trás, desfrutando daquele abanar de ancas, que na alternância, ajudavam a formar uma concavidade que fazia daquela loxodromia propensa a acidentes. Raimundo queria merecer beijar aquela mão.

Depois dos seus “biscates” habituais, Raimundo passou a frequentar aulas de português, na igreja presbiteriana do bairro. Queria fazer de tudo para cativar aquela à quem ele deveria ser amante… também.

O padre ofereceu-lhe roupas novas. Para que dona Celeste lhe visse nelas, passou a sentar-se no seu banquinho lá fora, a espera de ver dona Celeste à porta, a ser beijada a mão, pelos seus clientes. Raimundo passou a gritar “Dona Celeste”, acenando-lhe a mão, cada vez que um cliente saísse. Depois de um tempo, dona Celeste já não saía. Os clientes fechavam a porta sozinhos, olhavam em direcção ao Sr. Raimundo, como se já soubessem o motivo da sua quase inércia. Um dia, um deles ia caminhando em sua direcção. Sr. Raimundo levantou-se, como quem estivesse a recolher-se. Quando alcançava a fechadura da sua casa, o cliente de dona Celeste disse:

– Não fuja, sr. Raimundo!
– Diga?
– Não fuja, venho só dar-lhe um recado…
– Estou muito atrasado, não vai dar para ouvir recado de ninguém! – exaltou-se defensivamente. 
– … a dona Celeste quer vê-lo!
– O quê? Passa-se alguma coisa com ela? – puxou as calças à cintura enquanto arrastava os seus chinelos de borracha preta, de fabrico artesanal. 
– Não! Ela disse que está livre para lhe coser as calças … – disse o Sr., sorridente, como se soubesse que Raimundo há muito que esperava por tal serviço!
Envergonhado, Raimundo olha para o Sr. e sorri, acompanhando sua trajectória, sem que se mexesse. 
De seguida entra à correr para a sua palhota, veste a primeira camisa que encontra e vai à correr para a casa da vizinha. 
– Raimundo! – grita Celeste, numa voz altamente debilitada. 
Raimundo corre para o fundo do corredor da rica casa de cimento, de onde calculou ter ouvido a voz desgastada. Quando entra para o quarto, não acredita no que vê …

Dona Celeste estatelada no chão, nua, trémula, a sangrar da vagina.

– Mas o que é isto, caramba, pah? Só me chamas para isto?
– Por favor, Raimundo, chama a polícia! – chorava a dona Celeste. 
– Tens certeza que isso não é menstruação? – pergunta Raimundo, enquanto anda de um lado para o outro pelo quarto, cogitando sobre o que fazer. Segundos depois pega nos braços da senhora choramingona e grita:
– E se eu continuasse o serviço daquele alí, hein? Porque só me chamas para porcarias? Não sou elegante para ti? Não sou elegante, né? Já não tenho aquelas calças podres! Já não preciso ti para me coseres nada! O que vais fazer comigo se não te foder agora, hein?

Raimundo sai à correr, na promessa de ir chamar um táxi. Ninguém do bairro deveria saber do sucedido. Seria um segredo deles. 
Dois dias depois, dona Celeste teve alta. Pela janela, Raimundo a viu chegar. A Sra. olha para a palhota de Raimundo, hesitante se para lá se dirigia ou entrava primeiro em sua casa. Seguiu em frente, na segunda hipótese.

Decepcionado por notar que homens continuavam a entrar em casa da dona Celeste, Raimundo voltou a sua resguardada posição, dentro de casa, de joelhos no seu banquinho, a acompanhar dona Celeste por aquele tímido ângulo da sua cortina.

Raimundo tirou alguns dias de “folga” pois perdera ânimo. Já não se pendurava tanto no banquinho. Passava mais o tempo no seu colchão, a olhar para o tecto, escutando música de Roberto Carlos, com o volume muito alto. Ouviu a voz de dona Celeste chamar por si. Coisa da sua imaginação. Virou para o lado. Depois ouviu baterem à porta violentamente.

– Entra! – gritou. 
Raimundo levantou-se apressuradamente do colchão, quando viu dona Celeste a estender-lhe um prato de comida. Dirigiu-se à sala e desligou o aparelho.

– O que estás a fazer aqui? – perguntou ele, cabisbaixo, coçando a barriga. 
– Vim ver como está o meu amigo, dar-lhe um pouco de comida porque nunca mais lhe vi, nem na baixa, nem sentado la fora e… trouxe-te umas calças, feitas por mim!
– … afinal coses? – perguntou Raimundo admirado!
– Sou modista e não prostituta, Raimundo… vamos comer?
– E aqueles homens todos?
– Nunca dormi com clientes, eu… da minha livre e espontânea vontade!

Fim
 

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